OS NÁUFRAGOS

Primeira Parte

Dois náufragos chegaram a uma ilha.

Detalhar suas vidas em busca de fatos interessantes suscitaria voltar no tempo e se afastar do que pretendemos mostrar. Portanto, amado leitor, segure a sua curiosidade. Por enquanto vamos explorar a ilha, pois os dois infelizes não suportam ficar nem mais um minuto segundo dentro das águas geladas do Pacífico. Não é muito grande. Do ponto mais alto pode-se ver até onde vão seus limites. O que nos chama a atenção e a visível divisão da ilha em duas partes aproximadamente iguais e totalmente desiguais. Eu explico. A parte do lado sul é coberta por uma vegetação rica, verdejante e muito variável. Muitas árvores frondosas, de madeira valiosa ou frutífera. Um rio as alimenta perenemente. A parte do lado norte é completamente árida. O solo é seco e viceja uma vegetação rasteira ressequida e esparsa. Sei que o leitor pode me explicar que essas esquisitices acontecem na natureza, mas diante das circunstâncias impostas pela fatalidade, não parece que alguém infinitamente poderoso preparou um palco para uma representação especulativa? Não precisa responder. Que entrem os autores.

Os dois náufragos se aproximaram do ponto mais alto da ilha. O mais forte deles apontou para um lado e para o outro evidenciando a diferença geofísica.

—Somos civilizados. Não vamos brigar pela posse da ilha. Sou um técnico em comunicações e nessa bolsa tenho material suficiente para construir um comunicador com o continente. Logo sairemos daqui, disse o mais forte. E foram os dois para o lado mais verdejante da ilha.

Colaborando um com o outro construíram um abrigo com folhas de palmeira e madeira que cortaram com um machado de pedra. O mais magro trouxera consigo uma bolsa com alguma roupa e lençóis. Aliás, a bolsa foi a salvação dos dois, pois serviu de bóia durante o penoso esforço de nadar até a ilha. Mas isso não é romance, é um conto, vamos logo aos fatos.

O técnico em comunicação na primeira oportunidade retirou de sua bolsa o material a fim de construir um comunicador. O magro se encarregou de preparar um café para espantar o frio. Alimentaram-se de frutas e adormeceram ouvindo a brisa do Pacífico zunindo nas folhas das palmeiras.

Não estava fácil combinar as peças para fazer o aparelho que os haveria de levá-los a se comunicar com o continente. Devido ao trauma do naufrágio o técnico não conseguia se lembrar da combinação necessária para construir o comunicador.

E assim se foi uma semana.

Nesse período os dois se ajustaram às contingências presentes. O técnico, extrovertido bem humorado, logo deu a conhecer as linhas, as páginas, as diretrizes de sua vida que considerava boa, apesar de agitada e marcada por altos e baixos a que estava acostumado. Era um homem de sorte. A tragédia não atingiu nenhum familiar. Não tinha esposa e os pais moravam em um país tropical muito distante. Trabalhava para uma empresa de comunicação e tinha um patrimônio razoável. O outro se sentia mais desafortunado. Também não perdera nenhum parente. A mulher e os dois filhos ficaram no continente com a esperança de segui-lo assim que lhes enviassem dinheiro suficiente para as passagens. Tinha a profissão de garçom e esperava prosperar naquele país que era considerado a terra dos sonhos.

A fartura de alimentos encontrada nas frutas nos peixes e animais permitiu aos náufragos certa tranqüilidade. Digo certa tranqüilidade porque estaria sendo incorreto com o amigo leitor se dissesse que ambos estavam satisfeitos. Atormentava-os a solidão. Era de se esperar que os dois se tornassem amigos que pudessem consolar mutuamente, fato que parecia inevitável e desejado. Porém nem sempre a racionalidade humana obedece aos ditames da consciência, e o que parece obvio descamba para o inusitado.

Para quebrar a monotonia e afastar a solidão, o técnico mergulhava nos seus estudos científicos na esperança de resolver o problema do comunicador. Passava horas e horas experimentando novas combinações. Chips pra lá, chips pra cá, um fio aqui, outro acolá, refazia esquemas, consultava fórmulas, porém cada vez mais se sentia confuso e o medo de passar o resto dos seus dias naquela ilha deixava-o nervoso.

Aos poucos ia perdendo o bom humor.

O garçom tinha o espírito prático e funcional dos que exercem esta profissão. Era ele quem providenciava o preparo da comida e se preocupava com a arrumação Do local. Para não ficar olhando a foto da esposa e dos filhos, o que o deixava triste, punha-se a planejar e aplicar medidas que tornassem o lugar mais agradável. Desse modo arrebanhou na pequena mata madeira mais consistente com as quais substituiu as folhas das palmeiras. Com o barro encontrado numa ravina fez argamassa com a qual atapetou o chão do abrigo e ainda o enfeitou com pele dos animais silvestres que serviria de comida.

Certo dia o garçom levou ao conhecimento do companheiro o que poderiam fazer quando afinal conseguissem se comunicar com o continente e viessem buscá-los.

—Veja bem colega, aproveitei o dia estiado e dei uma volta completa na ilha. Aquele lado do norte realmente não tem nada que se possa aproveita, mas essa parte onde estamos tem muita coisa boa pra render dinheiro pra gente.

Feliz ou infeliz observação?

Não poucas vezes o rumo da história se altera por causa de uma inusitada palavra, ou melhor, uma frase mal colocada, um suspiro debochado, uma insinuação desprovida de maldade ou malícia, mas que encontra um terreno propício ao desentendimento e à contenda. Dizem que a cobiça só precisa de um pequeno sopro para fazer romper o muro que a represa. Uma vez libertada se agiganta destruindo tudo de bom que encontra pela frente.

Diante do interesse do técnico o garçom passou a detalhar melhor suas idéias. Então lhe falou das gigantescas uvas e de uma grande área coberta por maçãs.

—As frutas abasteceriam por mais de dois anos uma cidade como a minha. A madeira das arvores é de primeira e o rio está cheio de peixes e camarões. Temos uma fortuna aqui.

—Não diga, disse o técnico coçando o queixo, preciso realmente concluir este comunicador o mais rápido possível.

De onde brotam os desejos mais escusos da alma? Ante tal observação um pensamento de maldade no espírito do homem seria rechaçado imediatamente pela razão ou abafado completamente pela solidariedade própria dos seres humanos. A oportunidade faz o ladrão. Os momentos que antecipam conclusão do fato ilícito equiparam-se ao gozo da criança na expectativa de ganhar o presente prometido. Dois homens perdidos numa ilha desconhecida, sem comunicação, poderiam passar o resto de suas vidas ali. Mas um deles tinha a possibilidade de alterar o destino. A questão se apresentava nítida e exigia uma resposta. Teria o direito de alterar o destino? Estaria tudo escrito nas páginas de algum escritor onisciente? Poderia algum navio alterar a sua rota para encontrá-los e resgatá-los? Aquela fortuna toda poderia ser apenas de um. Porque repartir com um estranho? Um garçom. Afinal todos pensam que estamos mortos. Sim, aquilo tudo devia ser seu.

A cobiça se instalou definitivamente no espírito do técnico, gerando expectativas excitantes. Mas uma coisa é querer que alguém morra e desapareça, outra coisa é ser o autor e responsável por isso. Como fazê-lo? Lá no fundo da alma restava um resquício de bons sentimentos. Afinal, se não fosse a companhia dele teria perecido no mar. Decididamente não tinha coragem de assassinar o colega, mas poderia dar uma força ao destino, criando uma situação que o levasse à morte.

Levou mais uma semana para aperfeiçoar seu plano.

Depois do almoço naquela tarde:

—Cheguei a conclusão que devemos dividir o produto da ilha entre nós, disse o técnico aproveitando a sonolência costumeira após a refeição, assim, quando o pessoal do continente chegar poderemos levar cada qual o que é seu. Mandei que viessem com um barco grande.

—Mas você acha que eles vão trazer mesmo um barco assim?

—Não se preocupe. É o pessoal da companhia aonde trabalho que vem nos buscar. Ficaram tão alegres que não pensaram duas vezes quando lhes pedi o barco. Agora, para que fique tudo certinho e não haja injustiça para nenhum de nós, vamos colocar no papel o nosso acordo. Veja o que escrevi como proposta.

O garçom pegou o papel que o técnico lhe entregara. Tentou ler o que estava escrito, mas as letras começaram a tremer.

Fim da primeira parte.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 27/08/2012
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