TRAGÉDIA URBANA

Passos firme em direção à farmácia. O grito dos vendedores de relógios, algazarra de estudantes, o ronco dos motores, mulheres seminuas oferecendo o corpo, meninos entorpecidos de cola, tudo desaparecia ante seu excitamento interior. Repassou lembranças. A voz dela zumbia nos ouvidos. A mão trêmula procurou no bolso o lenço inseparável. Enxugou o suor na testa com gestos desconfiados. Tinha a impressão de estar sendo vigiado. Tolice. Ninguém sabe de nada. Ninguém podia saber que estava de romance com a mulher do amigo. Ninguém podia imaginar a loucura que o fazia delirar nas noites quentes do Recife. Passava horas perambulando entre a Praça da Independência e a Avenida Dantas Barreto, refazendo percurso que ela poderia ter feito. Criava diálogos fáceis, imaginando encontrá-la no ponto do ônibus ou em frente às vitrines das lojas. Alguém que lhe observasse os gestos, o movimento dos lábios, o ar desconfiado poderia classificá-lo como uma vítima da cidade grande.

Fulminantes trocas de olhares estabeleceram um código íntimo e assustador, transportando-os para um mundo de fantasias e desejos alucinantes. Tentou fugir, esquecer, apagar do pensamento as idéias malucas, mas só conseguiu aumentar desesperadamente a paixão desenfreada e apegar-se loucamente a esperança de possuir o seu corpo escultural.

Agora a oportunidade chegara.

Não fora fácil suportar aquela paixão por três anos. Embora o tempo parecesse não existir, ele definhava de amor e de desejo, alimentando-se das ilusões e das poucas oportunidades em que a via em companhia do marido.

Às vezes, com um pretexto idiota qualquer, buscando um raro momento de comunhão amorosa, mas nunca a encontrava sozinha. Quando não era um dos filhos, ou os dois, era a irmã tagarela ou um dos irmãos que já andava desconfiado daquelas visitas inopinadas.

Numa manhã de setembro, aproveitando a hora em que os meninos estavam na escola, conseguiu passar-lhe um bilhete marcando um encontro. Ela recusou excitadíssima, porém, duas noites depois, fez chegar até ele uma carta onde se declarava perdidamente apaixonada. Durante uma semana não se alimentou direito. Caía pelas ruas como um epilético. Noites e mais noites chorando de felicidade, beijando o bilhete da mulher.

Muitas vezes desejou ir embora, desaparecer da vida dela. Não era justo trair um homem daquela maneira, freqüentar-lhe a casa, desfrutar de sua intimidade e roubar-lhe a mulher cinicamente como o mais miserável dos homens. Mas bastava o amigo chamá-lo para uma partida de buraco e lá estava ele vibrando de felicidade, arrependido por haver pensado em abandoná-la.

Antes de chagar à farmácia parou em frente a uma livraria. O rosto dela estava em todos os livros na vitrine. Procurou a carteira e tirou um bilhete que recebera dela. A letra era pequena e nervosa:

—Plínio viajou, aparece.

Na segunda-feira, mal anoitecera, correu para a casa do amigo. Chegou desconfiado, temendo encontrar mais gente. Ela estava com os dois filhos. Tentou conversar intimidade sem sucesso. Os filhos não saiam de perto da mãe. Sentindo que não adiantaria insistir, despediu-se prometendo voltar outro dia trazendo algumas balas para os garotos.

***

O funcionário da farmácia tinha os olhos vermelhos e empapuçados. Da sua pele branca exalava um odor de éter. Henrique lembrou-se de uma sala de hospital.

—O que deseja?

—Por favor, eu queria algumas balas...

—Balas? Aqui não vendemos isso. Aqui é uma farmácia!

O senhor não entendeu. Quero um tipo especial de confeito contendo alguma coisa que provoque sono.

O homem arregalou os olhos.

—Se quiser fazer alguém dormir é só colocar um pouco de narcótico no café ou no suco, é muito mais simples.

—Eu sei, mas não se trata de adultos. Minhas filhas têm pavor de viajar de avião. Eu sempre lhes dou desses confeitos. Elas dormem como crianças, literalmente.

—Bem, tenho uma pastilha que poderia quebrar seu galho, mas não sei se podem ser usadas em crianças. Usamos em pessoas idosas que têm medo de tomar injeção.

—Ótimo! Mostre-me as pastilhas!

Henrique gostou da embalagem dourada. Desembrulhou uma e passou a língua.

—Gosto de chocolate! Muito bom, vou lavar um vidro!

—Em casa dê uma lidazinha da bula, aconselhou o farmacêutico, enquanto tirava a nota fiscal de balcão.

Ele saiu satisfeito cantarolando pela rua uma musica de Djavan. Os oitizeiros da Rua Riachuelo salpicavam o asfalto com as folhas amareladas. As luzes acesas anunciavam a chegada da noite.

***

O amor. Impossível definir tanta explosão de sentimentos. O vento uiva nos coqueiros que cercam a casa, mas seus ouvidos só escutam o palpitar acelerado dentro do peito. Os olhos se devoram, as almas se fundem numa cachoeira caudalosa que vai crescendo, crescendo. Que importa a noite lá fora com seus fantasmas? Que importa o ranger desesperado de velhas dobradiças? Que importam as risadas diabólicas dos velhos demônios ao redor da cama, se tudo sucumbe ante as ondas avassaladoras da paixão? O amor corrige distorções, abafa elucubrações moralistas, sufoca o medo e destrói o nada, ultrapassando a barreira da fantasia.

Henrique amou Célia até as quatro horas da manhã. Antes de sair deu uma rápida olhada nos meninos que dormiam como dois anjinhos. Benditas pastilhas. Deu um último beijo na mulher e mergulhou nas últimas sombras da madrugada.

Antes de conciliar o sono meditou profundamente no que poderia acontecer dali pra frente. Até quando manteria em segredo aquele amor? Talvez fosse melhor abrir o jogo de uma vez. Contaria tudo ao amigo e assumiria as conseqüências definitivamente. Não seria o primeiro nem o último caso. A vida estava ai com tantos casos parecidos. Plínio haveria de compreender, talvez até agradecesse por se livrar da mulher. Os garotos o adoravam, não seria difícil explicar o fim do casamento. E ela? Como reagiria a essas idéias? Sabia do seu medo doentio do marido, da sua formação conservadora e recatada, do seu pavor de um escândalo conjugal, mas teria de enfrentar a realidade dessa vez. É. Estava decidido. Quando o marido voltar da Bahia saberá que perdeu a mulher.

Dormiu flutuando em sonhos coloridos, repletos da imagem de Célia. O dia acabou e ele entrou pela noite acordando altas horas da madrugada. Quis sentir raiva por haver dormido tanto, mas a lembrança da noite anterior exorcizou o pensamento negativo. Relendo as cartas de Célia adormeceu novamente despertando com fortes pancadas na porta.

—É o senhor Henrique?

—Sim. Quem são os senhores?

—Nós somos da polícia, disse o mais forte, exibindo a identidade, queremos lhe fazer algumas perguntas.

—Polícia!? O que foi que houve? Eu...

—Queremos saber se esteve na casa do senhor Plínio de Arruda, no dia 23 do corrente, ou seja, anteontem.

—Anteontem? Sim, eu dei uma passadinha por lá, mas o que aconteceu?

—Ainda não sabemos o motivo, mas a senhora Célia de Arruda foi encontrada morta, juntamente com seus dois filhos. Parece que ela envenenou os garotos e suicidou-se com veneno para rato.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 27/08/2012
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