Independência e ventilador

-Sei não – comentava, apreensivo, Dom João VI com sua consorte, Dona Carlota, que arregalou os olhos, na esperança vã que voltassem a Portugal e que ela conseguisse seu intento de refazer o caminho junto à Espanha, sua terra natal.

- Não sabe o quê, homem de Deus? Decidiram me trazer pra esse navio nojento e agora levam a mim e a nossos filhos pr’aquela terra cheia de pernilongos e índios...Ora, faça-me o favor...

- Não sei se vamo-nos a acostumar com o calor do Rio de Janeiro. Um dia alguém ainda há de inventar algum apetrecho que nos refresque com mais eficiência do que estes leques que os vassalos empunham. Como hei de fazer? Talvez apele ao engenho inglês...

Obvio, pensou Dona Carlota, que aos franceses é que não apelariam. Ela porém calou-se e se conformou com seu trágico destino.

Chegando ao Rio, o bafo quente e úmido reforçou as apreensões de Dom João. Desde que pisou no solo do Rio, sua ideia fixa da engenhoca refrescante o fez mudar algumas coisas: criou universidades e bancos, trouxe expedições científicas, formou ao seu redor uma verdadeira corte europeia. E a todos, silenciosamente, encomendava algo que pudesse minimizar o calor infernal daquela terra cheia de sol e umidade. E também de pernilongos, que faziam com que Dona Carlota jamais saísse debaixo de seu dossel de tule.

Quando as coisas se acalmaram na Europa e Portugal passou a exigir o retorno da corte para seu local de origem – afinal, esse Rio de Janeiro estava ficando por demais europeu pra ser uma colônia –, Dom João chamou seus filhos e ordenou-lhes que fizessem suas malas.

- Eu não vou – disse Pedro.

- Ora pois, meu filho... como assim?

- Gosto do calor. E além do mais, pai... Santos é uma cidade belíssima, à beira mar, onde sopra uma fresca brisa o ano todo...

- Sei – disse num sorriso maroto Dom João. – Daqui a pouco encontras uma santista ajeitada e... pobre Leopoldina... Mas vá lá que seja, filho, ficas como regente.

E retornou Dom João com sua consorte ao clima fresco da Europa.

Tempos depois, voltando de sua parada obrigatória em Santos – onde havia de fato conhecido recentemente uma luso-brasileira ajeitadíssima – parou às margens do fresco Riacho Ipiranga, para que ele e sua extensa comitiva aproveitassem as margens arborizadas para refrescar-se e fazer suas necessidades. Estava ele em meio a isso quando chega uma carta de Dona Leopoldina, entregue pelo major Cordeiro.

- Raios – disse Dom Pedro – ela me encontra sempre quando estou com as mãos ocupadas...

Outra carta, esta de José Bonifácio, lhe foi entregue, e então ele não teve mais dúvidas; impulsivo do jeito que era, ajeitou a braguilha, sacou da espada e bradou:

- Independência ou morte!

A comitiva, meio assustada, levantando-se de sua cochilada ou saindo do mato às pressas, subindo calças, perguntou em uníssono:

- Quê que foi, ó regente?

- Independência. Pronto. É isso. Chega de dizer amém a Portugal. Vamos fazer um país independente da coroa, vamos começar hoje. Não volto pra lá de jeito nenhum. Gosto desse riacho, gosto de Santos...

Muitos viraram o rosto de lado para algumas risadas sarcásticas.

-... e acho que tem muito o que fazer por aqui. Inclusive o engenho com que meu pai tanto sonhou. Estão me mandando voltar. Não vou. Em janeiro eu já tinha dito que ficava, agora é que vou ficar mesmo. Aliás, já estou ficando!

- Sei... respondeu major Cordeiro.

Poucos anos depois, morreu-lhe dona Leopoldina (muitos disseram que foi de desgosto) e Dona Domitila, a luso-brasileira ajeitada, virou Marquesa de Santos. Até que, por falta de sangue nobre, foi substituída por D. Amélia, essa sim, princesa da Baviera.

Nem Dom João nem Dom Pedro puderam usufruir do frescor de um ventilador, que só foi inventado em 1882 nos Estados Unidos. Treze anos depois, o Museu do Ipiranga começou a ser construído e até o fresco riacho foi canalizado entre duas margens nada plácidas de cimento.

........................................................................................

Este texto faz parte do Exercicio Criativo "Às margens do Ipiranga"

Saiba mais e conheça os outros textos acessando:

http://encantodasletras.50webs.com/asmargensdoipiranga.htm