O amor surpreende:suddenly you're in Love

O amor surpreende:suddenly you're in Love
(leia o conto Ouvindo a musica)

Não sei por que voltei aquele apartamento, acho que foi por saudade, apenas para não perder as lembranças. Abri a porta com dificuldade, à fechadura nunca funcionou direito, o fedor de mofo impregnava o ambiente, acabei tossindo um pouco e esfregando os olhos, algumas coisas nossas ainda estavam ali: o velho sofá de dois lugares, alguns brinquedos espalhados, a cafeteira e o velho armário de cozinha. As paredes encardidas, sujas, como se nunca tivessem sido limpadas, no entanto, tudo dentro da minha cabeça estava tão limpo, branco, como os dentes e a face dela no leito de morte. O Amor por Raquel me tirou de um abismo, fui atras de um sonho, ser feliz com minha mulher. Não poderia esquecer o nascimento dos filhos, fruto de uma paixão inesquecível, mesmo que agora tudo fosse lembranças, que não restasse muito.
Peguei a cabeça da boneca no chão, lembrei, nitidamente, como estava vivo e respirando, naquele instante, o dia que comprei aquela boneca. Às vezes nem sabemos por que compramos um presente, uma coisa engraçada, mas cada brinquedo que compramos para nossos filhos têm uma história, cada um tem o seu drama, lembrei-me daquela boneca. Minha filha, tão parecida com a mãe, estava com sete anos, trouxe o boletim dizendo ao mesmo tempo que me beijava.
-Papai, consegui! Tirei todas as notas máximas, menos artes, mas você falou que artes não conta.
Coloquei a cabeça da boneca no bolso do jaleco, havia saído da farmácia, só para caminhar, era noite e caminhar a noite me faz bem. Andei muito, os ventos ou o meu coração levaram até velho apartamento, onde estavam as minhas melhores memórias. Lembro quando fui a última vez ao hospital visitar Raquel, ela estava tão magra, depois das sucessivas infecções, quase nada restava dela, o vício,o cigarro, a bebida, tudo tinha contribuído para que a minha linda mulher virasse uma figura desesperada a beira da morte.
O tempo todo eu sabia do vício dela, sabia que ela tinha crescido em um lar onde pai e mãe eram pessoas importantes. Isso parece um lugar comum, mas ricos confundem conforto com carinho. Raquel que nunca teve o carinho de nenhum deles, apenas os presentes, as festas, boas escolas, mas a presença? O contato físico se reduzia muitas vezes, ao beijo de boa noite. Aos treze anos começou a fumar maconha, aos quinze, para desespero da mãe, usava crack, ficou internada três anos, idas e vindas, fugas, mais de vinte internações em clínicas diferentes.
Conheci Raquel em uma festa na universidade, ela estudava sociologia só para ficar mais perto dos fornecedores principais de drogas, o que na universidade era mais um boato, as drogas se achavam em qualquer lugar, os traficantes que rondavam o centro de ciências humanas. Raquel não quis estudar direito, estudava sociologia para sacanear o pai que era advogado conhecido, a mãe, era juíza e ambos haviam estudado no mesmo centro universitário. Raquel já não falava ha dois anos com a sua mãe. Esmeralda, mãe de Raquel, sempre foi uma mulher ocupada, juíza, achava que Raquel usava drogas para envergonhar a família.
O dia que conheci, ela estava usava um vestido com flores tropicais, com decote imperceptível, parecia uma menina de dezesseis anos, sorrindo para mim, um sorriso cor de céu, que de tão bonito ficou marcado para sempre como a minha lembrança principal, o meu troféu.
-Cláudio? Você é o Cláudio, o bonitão que estuda farmácia?
-Vindo de quem vem! Uma princesa. Olha você sabe quantas vezes passei sem ser nem notado por você, deixa eu contar no dedo, não dá, várias vezes e você nem me notou. – Ela sorriu novamente, o jeito mais fácil de saber se estava feliz, nunca sorria a toa.
-Estava bêbada, cega, ou drogada. Sabia que você é muito tímido, estou te olhando faz uns minutos, metade dos caras já teriam partido para cima logo, sabe que eu gosto dessa timidez?
Aquela noite ela bebeu demais, caiu no sofá da minha casa, carreguei ela no colo e levei para a casa dos pais, o pai dela abriu a porta.
-Essa menina! Bebida?
-Sim senhor, bebeu um pouco demais.
-Você está sóbrio? –Ajudei a colocar Raquel no sofá. – Um amigo da minha filha que não usa drogas, nem bebe, que tipo de milagre é esse, seria uma boa influência? – ele pareceu lembrar-se de alguma coisa. – Já sei! Você é o estudante de farmácia, minha filha esteve de olho em você, só que acho que você tinha uma namorada.
Havia algum tempo que Raquel e o pai estavam em uma fase de recuperação. Dr Lucas falou para mim que não adiantava outra abordagem, amava a filha, deixou ela sozinha tempo demais, agora queria apenas conversar, aprendi muito com ele sobre Raquel.
Magda, era a minha namorada, dois dias depois acabaria com um namoro de cinco anos.
-Você vai me deixar por uma viciada? -Magda saiu jogando as coisas no chão, nem tinha ideia que ela era temperamental assim.
-O coração não escolhe, escolhe?
-Coração não escolhe merda nenhuma, você deve estar usando drogas, sempre desconfiei desse olho vermelho e apertadinho de chinês. - Ela estava muito alterada. - Nunca mais fala comigo! Cinco anos de minha vida, Cláudio, quem você pensa que é? Estala o dedo e diz, olha não quero mais, estou apaixonado por uma putinha drogada?
Ela não precisava pedir para não procurá-la mais, eu nem me lembrava de mais nada dela.
Quando conheci Raquel, estudava farmácia, mas uma profunda depressão corroía meus dias, andava achando tudo sem sentido, mesmo meus livros. A ideia da morte parecia um caminho mais viável para aliviar o meu sofrimento, minha mãe trabalha ainda em três turnos como enfermeira, meu pai, depois de uma queda não andava nem falava, fui adotado com cinco anos, nunca conheci os meus pais biológicos, isso não tinha importância, como filho adotado achava que era um fardo para os meus pais adotivos que eram pobres. Quando fiz dezoito anos passei no vestibular e comecei a fazer o curso de farmácia, namorava com Magda, nunca havia gostado de ninguém até conhecer Raquel, nem mesmo de mim, por isso mesmo, contra a vontade de sua mãe casamos um ano depois.
Raquel teve a sua primeira recaída quando o pai morreu de infarto, estava num recital de música, nunca teve nada, todos os exames estavam normais, apenas caiu e morreu. Nesse dia, ela sumiu, fiquei com minha filha, sozinhos por três dias, procurei em todos os lugares, polícia, hospital e até no necrotério, ela apareceu depois do terceiro dia.
-Onde você estava?
Não me respondeu, bateu a porta do quarto e ficou lá por uma semana, pegava um chocolate na geladeira e água, fumava todas as pedras de crack que conseguia comprar, vendia tudo que tínhamos em casa. Nesse ano não tive um dia sequer de sossego, fui a polícia duas vezes e no hospital uma dezena. Minha filha com dois anos, ficava a maioria do tempo com uma babá chamada Leila. Um dia encontrei Raquel caída na porta da nossa casa, com o vestido todo rasgado.
-Cláudio, me larga, leva nossa filha pra longe.
-Não vou te largar, a gente está nessa juntos, quando um cair o outro cai.– Ela chorava, está pior que os outros dias.
-Voltei a fazer programas, os caras dizem que tenho que largar você. – As lágrimas não caiam, elas sangravam pelo seu rosto. Segurou o meu rosto, aquilo me chocou, acho que foi a primeira vez que fiquei realmente com raiva, minha tentação do monte das oliveiras, quando ela disse que estava fazendo programas, deixei ela no chão, fui para dentro do quarto, minhas lágrimas desciam pelo rosto, a arma que havia comprado para mim, quando ainda sofria de depressão, estava no armário, queria pegar aquela arma, dessa forma dava fim ao meu sofrimento, aquela vida sem sentido. O que poderia fazer agora? Minha filha estava em segurança com avó, peguei a arma coloquei na boca, quando ela entrou cambaleando, novamente me salvou.
-Se você tiver que atirar em alguém, atira em mim. – disse aproximando seu rosto. Uma luz acendeu, havia assumido serenidade, não estava mais com o aspecto de uma drogada na sarjeta, tinha um ar de quem levantou de um pesadelo, como se ela ao me ver no desespero mudasse.
– O amor que tenho por você, nem mesmo eu sei o que é, as vezes o demônio toma o meu corpo, mas ele não toma a minha cabeça. – Ela apontou para a cabeça.
– Aqui tenho uma esperança, se você atirar, digo uma coisa para você, essa bala vai matar duas pessoas. Cláudio, com você eu tenho esperança, lá dentro, esperança.
Fui salvo, aquele dia entendi tudo o que tinha me passado até ali, num só instante, ela me salvou. Eu é que não consegui salvar Raquel no hospital. Em seu último dia ela me disse:
-Lembra-se daquele ano, a gente teve um grande ano quando Pedro nasceu.
Pedro, nosso filho caçula, veio para unir todos, até a juíza, louca pelo neto aproximou-se da filha, resultado, um único ano, intenso e maravilhoso, vivemos em harmonia. Sem álcool, sem drogas, sem brigas, mostrando que tudo que as pessoas precisam é de uma chance nessa louca vida, um único ano vale muito mais que muitas vidas inteiras, se nele existir amor?
Aquele valeu muito, o aniversário de Pedro de um ano, o momento mágico dos primeiros passos para sair correndo atrás de um balão. A primeira vez que Raquel abraçou a sua mãe, chorei, que dor, amargura, que orgulho é esse? As pessoas se amam, necessitam uma das outras, mas se afastam como inimigos.
O ano seguinte foi o que ela descobriu o câncer e morreu em julho.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 26/09/2012
Reeditado em 09/09/2013
Código do texto: T3901937
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