Primeiros relatos

"A hora mais escura do dia é a que antecede o amanhecer". Frase bonita! Filosofando, tudo soa belamente. Mas, o sentir na pele é diferente. E só quem esteve imerso na escuridão completa sabe a agonia de não poder com a esperança da luz. Onde ele se encontrava não existe amanhecer. É o mais escuro de tudo.

Toda negrura era um universo inteiro dentro de duas pupilas, já dilatadas ao máximo. Como se, por desespero, buscasse uma luz que teria. Pois, há muito não lhe tocava mais os sentidos. Ele não tinha mais ânimo para a vida e, por espasmo de existência, procurava, mas não veria um fóton sequer. Pois, sua alma, de tal forma, se fez em trevas que nem mesmo o sol desenharia sombra a partir daquele corpo. Tampouco as raras estrelas daquela noite sem lua.

Ele se movia. Mas, em seu movimento, em pouco diferia de uma planta onde qualquer vento lhe faria curva. Respirava como quem negava os suspiros e toda atividade mecânica do corpo. E então, no extremo, no limiar da existência, investia violentamente contra essa fronteira, como quem quisera tomar por força o outro lado.

Estes foram os sintomas finais de um corpo que veio morrendo aos poucos e que, no estágio final, se assemelhava mais a morto que vivo. Era a configuração última de um suicida, onde cada ação seguinte intentava unicamente a destruição do próprio corpo. Era questão de tempo para que se perdesse uma preciosa vida.

A razão de sua desgraça?: Talvez, por ser um infame que confiou a liberdade na leviandade de uma paixão dita amor. Ele era tão belo e cheio de vida! Mas, não contente com a paz, trocou o "em si e por si" pelo "nisso e por isso", abnegando sua plenitude para viver aos trapos. Um escravo do amor, em outras palavras.

É uma terrível ironia, dessas que fazem odiar o mundo: O ser mais nobre de antes se vê agora o pior decadente, como um herdeiro de nada, falido, vivendo entre irmãos prósperos. É bem compreensível a sua vontade de morrer!

Ele sofreu como um bruto e, não podendo com a dor, quis encurtar os seus dias. Por ingenuidade, confiou à pressa a cura de seu pranto. Quis adormecer por meses e acordar num futuro distante como quem, por milagre, estivesse curado. Jamais conseguiria. Então, ele se desligaria de tudo, inexistindo até o momento último, quando, por coragem, quereria somente o fim. Seria o momento de seu suicídio. Estaria a um movimento da paz. Mas, ele hesitaria no segundo exato, por razões de sua natureza particular: Não é dessa casta de pessoas que tomam violentamente a liberdade. Seu espírito nunca conheceu a violência. Ele era nobre, conquanto sua noção de nobreza não lhe permitisse pôr fim a própria vida.

Esta foi a razão daquele ser catatônico, imóvel, dependurado na sacada do terceiro andar. Tinha no olhar um tom sombrio e distante. Como se, repleto de vida, fora feito de morte. As mãos trêmulas, se contraíam como se, por desespero do corpo, como último recurso, quisera se agarrar a qualquer coisa que tivesse vida.

... Sobre heróis e espadas

Três pessoas contemplavam aquela cena de morte. Eram a única esperança em contê-lo, e somente teriam êxito com o improvável, algo até então não pensado. Ele imergiu na morte de tal forma que o fez romper com os sentidos superiores. Tudo que dissessem seria em vão e qualquer movimento era perigoso. A verdade é que nada podiam fazer.

Por sorte, havia uma quarta pessoa em casa, naquela noite. Alguém dormia na rede, no terraço da casa. Quando acordado pelo alvoroço, correu logo a ver com que se dava.

Quando tomou noção de tudo, não teve outra reação senão a mesma que os demais: caiu em desespero.

Contudo, ninguém sabia da sua presença. O que lhe permitia alguma ação surpresa. Mas, o que fazer quando o menor movimento pode acarretar a pior tragédia? Ele sabia que se entrasse na sacada, ainda que sutilmente, teria o reflexo em todos. Ele nada sabia, na verdade. Mas a intuição gritava que não havia muito tempo. Algo teria que ser feito de imediato.

Ainda que impossível, ele não deixaria de tentar. Pois, entre seus vários dons havia um heroísmo natural que, de tão dilatado, tomava-lhe o lugar da inteligência. Ele era jovem e destemido. Não acatava muitas regras senão as que vinham naturalmente do seu feeling. Este caminho o levou a salvar uma vida noutra ocasião, quando cinco anos mais novo. O que ninguém compreende é como isto o fez rico posteriormente. Mas, é história para outra ocasião. Pois, naquele instante, seu heroísmo o impelia a outro feito magnífico.

Uma combinação perfeita lhe tomou o gênio: era demasiado burro e, na mesma medida, altruísta. Daria a própria vida sem relutância para salvar qualquer um que beirasse a morte. Contudo, era o seu amigo em perigo, o que o faria mais cauteloso, apesar de ainda burro.

Rapidamente, elaborou um plano. Era simples: a varanda ficava ao centro, entre dois quartos. Por se tratar de uma casa antiga, de cidade de interior, era comum que tivesse um beiral que percorria toda a frente. Era um lajeado estreitíssimo que daria acesso à sacada. Só teria que se equilibrar milagrosamente sem cair e se matar também (ele era demasiado grande, tanto para cima quanto para os lados).

Após alcançar a varanda, não poderia simplesmente agarrá-lo. Não teria equilíbrio e cairiam os dois. Outrossim, se o empurrasse, jogaria-o para dentro mas cairia se matando. Ele não arriscaria morrer antes de vê-lo a salvo. Seria necessário um golpe certo com algum objeto que o estonteasse e que, pela leveza do movimento, não causasse sua própria queda.

Ele correu à cozinha, pegou a vassoura... mas, era leve demais. Pegou o rolo de massas... pesado demais. Sentiu que não havia mais tempo. Então, abriu o armário, pegou a primeira panela e seguiu seu plano.

Certamente, o suicídio se faria naquele instante. Pois, não havia mais recursos para contê-lo. O pai, dentre os três presentes, se viu em desespero e sem ação. Seria para sempre atormentado por aquela imagem, que estava prestes a ver. Ele aguardava numa agonia silenciosa pelo pior momento.

De repente, estranhamente, sua feição mudou como se os olhos agora sorrissem, a boca entre abria esboçando um sorriso e os pulmões se encheram aliviados. Aquele semblante era como se o pai gritasse em silêncio: “Obrigado!”. A mesma feição se fez fielmente nos outros dois presentes.

Mas, todo alívio foi apenas um segundo. Pois, logo em seguida os olhos se arregalaram, as bocas abriram verticalmente e gritariam se restasse ar nos pulmões. Desenharam em seus rostos a expressão última do desespero.

A razão de tudo: No primeiro instante, surge à beira da varanda uma cara larga que parecia ter um plano. O suicida estava de costas para a rua segurando em balaústres e, também, se equilibrando no beiral. Saltaria de costas se alguém tentasse detê-lo. E nessa ocasião, surgiu, numa posição fora de seu campo visual, o jovem herói (foi quando todos pensaram “aleluia”). O desespero subsequente foi quando viram o que ele faria.

Naquele instante, nenhum dos três pode usar a razão. Apenas saltaram em desespero rumo ao herói, inusitadamente esquecendo o outro. A razão de tamanho sincronismo foi o objeto que este trazia em mão para deter o amigo: uma panela de pressão. Pois, na pressa em que se viu não teve tempo de alcançar a frigideira. E foi quando projetou a panelada, no ponto exato da nuca, que os três saltaram para ele.

O Jovem suicida, não percebendo o todo apenas lhe veio a intuição de que os três saltariam em seu lugar. Ele queria morrer. Contudo, jamais quis a morte de outro. Logo, instintivamente se projetou em sentido aos três. E este foi o movimento crucial para toda a história. Pois, com o deslocamento súbito, a panelada lhe pegou de raspão na cabeça. De forma que, não foi suficiente para matá-lo, mas serviu para que o conduzissem desmaiado ao hospital, aparentemente em coma.