Veridiana - Parte I

Tantas sensaborias desde que lha deram consorte: cria já não viver. O que fazia, fazia-o por vassalagem.

Em menina, acostumara-se à autocracia do gênero. Os ditames do pai e os rigores dos ideologismos lhe impunham sobrevida, tornando-a servil e arredia.

Contava nove irmãos. Uma família grande, qual era uso naquele tempo. Das quatro moças, a mais jovem.

Nascendo, Veridiana fora logo provada por penoso parto. Não queria vir à luz. Quis parecer à velha benzedeira que a menina não se dispunha ajudar porque sentada, numa posição pouco natural aos filhos de Deus. Tais as rezas, miraculosas fórmulas e invocações, os elementos concederam que rebentasse.

E como ainda resistisse por respirar da atmosfera, saiu enlaçada. Estrangulava-a o cordão umbilical. Mais a puxassem para cá, dela teriam dado cabo. A antiga tesoura cumpriu seu papel. Cumpria-o por gerações.

Rubro-escura pelo pouco ar, não surtira efeito a primeira palmada da velha. Só chorou depois de nova ladainha das assistentes e por insistirem em lhe espalmar as pequenas nádegas. Aos poucos, clareou-se a tez.

Sua mãe, exangue do esforço pródigo, viu aquela coisa, coisinha, que lhe custara penitência. Não sorriu. Virou-se, em resguardo.

E foi crescendo em meio à disputa eterna entre bem e mal, certo, errado, isso ou aquilo. Aprendeu a mostrar-se como convém e a aspirar somente o que conveniente fosse a uma garota burguesa e educada nesse propósito - o de procriar, ser casta e prendada.

Da Escola Doméstica São Rafael à Escola Normal do Instituto de Educação, inconclusa - a formação necessária e mais que bastante para qualquer virgem, virgem permanecesse.

Trançaram-se quarenta e três anos duma vida de regras e cordas.

Casando-se aos dezesseis anos, a mesma tesoura apenas a desvencilhara de um dos filhos. Os outros dois não nasceram em casa.

A natureza quis dar à Veridiana a compleição e o viço que a idade e a prole pretenderam esmaecer.

Trajava costumeiros austeros vestidos e saias, quase um palmo adiante do joelho. Saísse à rua, uma brisa marota revelava alvas coxas rijas, luzidias.

Nada lhe sobrava.

Exalava sempre deliciosas notas de pêssego. Não entendia de essências, mas sabia-se aquela e, sinestesicamente, o seu sabor, se um dia as carnes lhe devorassem.

Entrar às ocultas no banheiro após uma toilette de Veridiana, provar daquela umidade, cheirar as toalhas de que se servira, as vestes que despira... ah!... era um deleite e um transporte dos sentidos.

Não sou dado a fetiches, mas uma lembrança de dimensões terceiras, relevo, textura, profusão de impressões que se nos impregnam - queremos ficar, sorvendo e absorvidos...

Masturbava-me ali mesmo, embriagado.

Sou o primeiro filho dum seu sobrinho.

Aos quinzes anos, decidiram que eu devia tomar o rumo da cidade grande, cursar preparatórios à Escola Militar.

Relutei à intenção de me fazerem hospedar em casa do velho Ciro, funcionário da Receita, sexagenário em vias de se aposentar, avaro e mandão - o marido de Veridiana.

Também resistira ele em receber-me. Se o fez, foi por ajuste de préstimos à minha família. Outrossim, porque se lhe afiançou uma mesada a fim de custear-me a estada.

Velho mesquinho! E não sei que embolsava dois terços dos meus proventos? Precisasse de sapatos, fossem, escrevia a meu pai. Deixava-me a pé, o sovina! Até o Preparatório eram doze quadras, todos os dias, indo ou voltando.

Por esse tempo, o mais moço de seus filhos partia para estudar Teologia em seminário capuchinho: ia haver-se frade. As duas moças casaram-se em dia exato, num treze de maio, como aprouvesse à santíssima e melhor gozo desse à avó materna - piedosa devota da Companhia Cristã de Fátima.

Sobrava a ama de Veridiana, beirando os oitenta, quase cega. Pleiteava o velho mandá-la a um asilo beneficente - pouparia uns bons vinténs, já que a pouco ou nada se prestava a anciã. - Não o fez por muitos e sentidos rogos da mulher.

Adentrando a casa, evolava-se odor bolorento de círios e antiga mobília. Era um museu de motivos sacros. Da porta se via um óleo da samaritana, junto ao poço, falando ao Messias: "Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?" - parecia dizer a pintura.

No domingo em que cheguei, um céu nimboso me veio acolher à plataforma. Chovia. Não trouxera roupas de frio. Enregelavam-me vergastadas de vento apanhadas de face, enquanto aguardava meu anfitrião.

Meia hora. Quarenta minutos. As mandíbulas buliam-se-me.

O atro céu alumiou-se, o calor se me quis devolver, justificada toda espera, apenas o deparar com aqueles olhos que vinham perquirir se era eu o tal. - Tal não fosse, sê-lo-ia!

Olhos negros. Alencar, quiçá os visse, lembrar-se-ia da graúna - bem preferisse ele os cabelos. - Mas não era a cor. Era outra coisa. Ignoro, inda hoje, idos onze anos, como verter em palavra o que com palavras não se basta. Olhos de santa? De mãe? De esposa? De puta? - Édipos e Jocastas à parte, não vi Laio que eu pudesse esganar! - Olhos de qualquer uma, menos de tia-avó!

Não. Definitivamente não se poderia dizer matrona aquela mulher! Nela não se poderiam entrever anos de vida insípida, de cruz e trilhos.

O talhe feminil, suas formas desenhadas com o cinzel do mestre que se tenha cansado de vulgares belezas; suas maneiras, sem a afetação da origem; a voz deliciosamente roufenha das madres e das amantes - Volúpia!

Maçãs se colhiam daquele rosto, mesmo que duma safra de outros outonos.

Siriguelas maduras, de estação preterida e, até por isso, mais doces, podiam chupar-se naqueles lábios.

E tudo isso se evocou no escoar de instantes.

- Ah, coitadinho! Sente frio? Foi bom ter trazido a mantinha! - E me envolveu com uma espécie de xale. Senti-me ridículo naquilo. Mas tão solícita e fagueiros me acercaram seus braços, aninhando-me junto de si, que me deixei embalar. Fomos andando.

A primeira vez em que a possui, soou-se o primo acorde. E, em concerto, fiz-me homem.

2007, 22 Fev

(continua)