VOLATILIDADE
 
 
          Ele não fazia a menor idéia de onde estava. Nem porque tomara aquele atalho. Fundira o motor do carro; deixara-o pra trás. Olha para o relógio Rolex. Uma hora. Caminhava já há mais de três horas naquele ambiente árido e não vira viva alma. Um calor insuportável. Mesmo os insetos recusavam-se a aventuras naquele ambiente. Apenas silencio, calor, e ele, vagando, na insolação. Pensa em sentar-se à sombra d’alguma árvore, mas nenhuma, naquela vegetação rarefeita, era suficiente para abrigá-lo, sem contar que podia sentir seus pés em brasa. Estava a imaginar se encontraria o responsável pela abertura das portas do grande inferno.

          Continua caminhando, conseguindo forças, não se sabe onde.

          Quase três horas. Algo lhe chama a atenção. Seria outra miragem?

          Aproxima-se devagar, já quase sem forças. Observa o local. Não. Aquilo era real. Tinha que ser. Uma casa de alvenaria, coberta de palha de babaçu. Uma abertura na frente sugeria que o local já fora usado como venda. Mas pela situação atual, via-se que isso fora há muito tempo atrás. Um poste à sua frente, uma lâmpada, sob um prato empoeirado, e um fio que o ligava a um pequeno motor aos fundos, que parecia não ser usado há muito tempo. Nada ao redor. Nenhum sinal de vida. Nem o vento parecia existir. Aproxima-se mais. Pela abertura, vê uma mulher sentada em um tamborete, imóvel, olhos semicerrados, um dos braços apoiado numa mesa. “Parece morta” – pensa ele – “Só me faltaria essa agora”.

          - Água... água – balbucia ele.

          A mulher permanece imóvel. Ele começa a se desesperar, quando ela move os olhos em sua direção. Olhos negros e fundos, em um corpo esquelético, que em uma ocasião normal assustaria qualquer transeunte. Ele parece não se importar com isso.

          - Estou morrendo de sede. Por favor, me dá um copo d’água.

          Calmamente ela olha pros lados, e em câmara lenta se levanta, indo até um pote de barro do outro lado da sala, pegando uma caneca de alumínio, dentro da qual estava algumas castanhas verdes de cajuzinho do campo. Ela olha dentro do copo, pensa um pouco, o que pra ele parecia uma eternidade. Ela despeja as castanhas sobre a mesa, limpa com os dedos algumas formigas que insistiam em ficar por ali. Ele lembra-se de Shakespeare: “A horse, a horse, my kingdom for a horse!” – Até aquele momento ele entendia apenas superficialmente Ricardo III, mas começava a entender realmente o que era o desespero.

          Havia pouca água no pote. Ela consegue tirar pouco mais que meio copo. Com um olhar apático ela estende o braço em direção a ele.

          Ele bebe toda a água, quase que num só gole. Ela já ia se virando pra voltar a ocupar sua posição de ócio quando ele insiste:

          - Mais água, por favor! Estou desde cedo sem beber nada.

          Ela olha pra moringa. Olha através da janela, com os olhos semicerrados. Com a morosidade que se mostrara até o momento, pega um balde debaixo da mesa e sai. Ela sai descalça. Ela usava apenas um vestido surrado, com alguns remendos e estava descalça. Ele a observa por alguns instantes enquanto se afasta. Em seguida se deixa vencer pelo cansaço e deita à frente do casebre, onde já fazia alguma sombra.

          Não sabe quando tempo exatamente durou seu cochilo. Quando a mulher voltou, ele olhou no relógio, era pouco mais que quatro e meia. A sede ainda o castigava. Ela o serviu com mais um copo. Agora ele pode notar que a água era um pouco barrenta. “Sabe-se lá onde coletam a água que bebem”. Pouco importava agora. Ele bebe toda a água e agradece por ter com o que aplacar a sede. Agradece àquela senhora por ter-lhe socorrido. Pensa em lhe oferecer dinheiro. Talvez algo que melhore o padrão de vida dela. Deveria levar uma vida miserável, pelo que podia perceber. Sim, alguém que salvara sua vida merecia ter uma vida melhor. Seria isso que faria quando pudesse.

          Barulho de passos que se aproximam o tiram de seus pensamentos. A mulher vai até o homem que chega e este entrega a ela dois preás e a arma com que os caçara. Ela fala algo e o homem vem conversar com o visitante.

          - Tarde, moço!

          - Boa tarde, senhor!

          - O que é que o moço tá fazendo aqui presses lados?

          Ele relata o acontecido até aquele momento e de como foi “tão bem” recebido por aquela mulher que ele supunha ser esposa daquele homem.

          - Sim, é minha esposa. E muito boa pra mim. Mas o senhor disse que tá perdido e que ir pra cidade. A cidade fica a uns trinta quilômetros daqui, indo pro norte. O único meio de chegar até lá é a pé ou na minha carroça ali ó – diz apontando com os lábios.

          - Pois eu lhe pago o que quiser. Vê esse relógio? Eu lhe pago o que quiser e ainda lhe dou esse relógio de presente.

          - Moço, pra que que eu ia querê esse treco aí? Isso aí num ia me servi di nada. Eu e minha muié tamos aqui sem tê pra onde ir. Tamos sem rumo moço. O que a gente precisa é ter como trabaiá e ganhá nosso sustento pra ter uma vida mió.

          - Se é só isso, tá arranjado. Conheço muita gente. Se quer trabalhar na indústria, posso lhe arranjar um emprego em uma de minhas fábricas. Se quer trabalhar no comércio, falo com um de meus amigos e você estará bem colocado. Tenho amigos com fazendas na região também. É só você escolher.

          - Isso é bom demais moço. É tudo que nóis qué moço, eu e minha muié. Trabaiá!

          - E eu lhes serei eternamente grato por me ajudarem.

          - Só tem um coisa moço. Tamos desde ontem sem comer. Tô varado de fome. Trouxe o de comer agorinha mesmo que a muié tá fazendo pra comê com farinha. E o sinhor é nosso convidado.

          Cerca de uma hora depois estão dentro da carroça, puxada pelo velho burro. Ele nunca comera com tão bom apetite. Comera preá com farinha. Uma iguaria exótica. “Nunca esquecerei tamanha gentileza” – pensava ele.

          Ao se despedirem na entrada da cidade, ele disse ao homem:

          - Esteja pronto. Já já alguém estará lá pra lhe buscar de mudança pra um lugar melhor. Considere-se em um emprego novo.

          - Brigado, doutor – responde o homem, com um sorriso largo.

          No outro dia bem cedo, aquele homem e sua mulher já haviam separado toda sua mudança e aguardavam alguém que os buscassem, esperançosos em nova vida.

          Na cidade, um empresário acorda por volta do meio dia. Lê seu jornal. Não sabe se vai ao clube ou fica em casa descansando. Pensa na aventura do dia anterior. Pensa nos dois pobres diabos que o ajudou. Mereciam vida melhor. “Como podem criaturas viverem naquelas condições? Bom, mas cada um tem o destino que merece. Se bem que prometi emprego pra ele. Será que ele quer mesmo trabalhar? Hum... Qualquer dia penso melhor sobre isso. Acho que agora vou descansar um pouco e depois ler um livro”.
 




Out/2012 



Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 13/10/2012
Código do texto: T3930222
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