Consciência Desabrigada

-Dây nhau!

O grito, seguido por um tapa no rosto, serviu para me alertar de vez. Era uma voz diferente da que eu estava acostumado a escutar pela manhã. Assustei-me ao recobrar os sentidos. Eu estava em um casebre quase em ruínas; infiltrações por toda a parede, fazendo bolinhos de mofo em alguns cantos. O cheiro de miséria daquele lugar invadiu minhas narinas, provocando-me ânsias de vômito.

Tentei levantar, porém senti uma fisgada na perna direita que me fez contorcer de dor. Foi então que flashes de memória começaram a invadir minha mente.

Gritos, tiros, explosões... Um avião caindo... Era tudo tão confuso. Minha última lembrança clara era uma luz meio avermelhada, depois a escuridão.

-Ban có khát không? – o jovem à minha frente disse em um tom um pouco desconfiado. Fiquei olhando para ele, tentando entender o que disse. O rapaz me olhou com pena e saiu do quarto.

Realmente era tudo o que eu queria. Além de estar neste inferno, teria que ficar preso em um quarto mofado com um estranho que eu não consigo nem entender o que ele quer. Olhei para o teto, e fiz um sinal com o dedo, agradecendo a Deus por isso. Mas eu deveria ter imaginado que tal coisa poderia me acontecer ao embarcar para uma guerra injusta contra um povo que, segundo aqueles ativistas de roupa engraçada, eram inocentes. Isso que dá querer impressionar garotas. Aquelas piranhas da escola me pagam. Assim que eu sair dessa enrascada eu volto pra América e dou uma surra nelas. “Você deve ficar uma graça de uniforme militar, Roger!” disse uma. “Se eu te vir na rua usando um daqueles uniformes camuflados, sou capaz de te arrastar para o primeiro beco e te fazer coisas que você nem imagina.” disse outra, com os olhos lascivos. Hmpf, agora estou aqui, nesta enrascada; sem mulheres e com a perna arrebentada. Tento olhar minha perna e avaliar o tamanho do estrago. Talvez eu nem precise procurar o médico do regimento.

Consigo, com muito esforço, levantar o corpo o suficiente para ver minha perna envolta em uma espécie de curativo improvisado com colchas brancas. Bom, ao menos não estou com um camponês ignorante. E pelo visto sua intenção não é me matar, senão nem teria se dado ao trabalho de fazer este curativo rústico.

Deito-me novamente, um pouco mais aliviado. Quando o rapaz irrompe pela porta segurando um cantil militar apontando-o e, depois, para mim. Faço que sim com a cabeça. Ele me estende o cantil, mantendo uma certa distância. Tento me erguer para pegá-lo, porém sinto uma outra fisgada que me faz deitar imediatamente. O rapaz, então, aproxima-se e, apoiando minha cabeça, vira o cantil em minha boca. Nunca pensei que iria sentir tanto prazer em beber uma simples água. Parecia que eu estava em um deserto há dias, sem uma única gota para saciar minha sede. Apenas termino, o jovem deita minha cabeça novamente. Foi quando notei uma plaquinha que pendia de seu pescoço. Era uma plaquinha de identificação militar, igual a muitas que eu vi nos pescoços de meus companheiros de guarnição. Procurei pelo quarto por algo mais que identificasse melhor o lugar em que eu estava. Talvez este fosse um quarto de uma enfermaria de uma prisão de guerra e eu não sabia. Talvez eu fosse um prisioneiro de guerra e esse rapaz fosse o meu enfermeiro-carcereiro. Talvez eles estivessem apenas esperando que eu melhore para me usar em alguma troca ou talvez para me torturar e saber nossas posições e planos de ataque. Meu Deus... o que estaria me esperando pela frente?

Comecei a me debater, tentando me levantar para fugir daquele lugar. Ignorei completamente as fisgadas da minha perna e saltei da cama para o chão. O jovem gritava algo, afastando-se com medo. Ele deve estar pedindo reforços. Só pode ser isso, ele está chamando por reforços. Merda, eu não consigo me levantar. Está doendo muito. A queda deve ter piorado a situação da perna. Passos. Eles estão vindo, vão me torturar agora. Ouvi o engatilhar de um fuzil.

-Vocês não irão conseguir nada de mim. Não vou entregar ninguém. Minha guarnição estará aqui a qualquer momento e me libertarão. Eles vão matar todos vocês.

-Por quê? Por que você nos quer mortos? – perguntou uma voz feminina, quase infantil, vinda da porta. Finalmente, alguém que fala meu idioma nesse lugar. Estranho, não sabia que recrutassem mulheres para trabalhar em prisões de guerra. Tentei me virar de barriga pra cima, para identificar quem estava falando comigo, e quantos teriam vindo para acudir o moço. Para minha surpresa, estava o moço parado na porta, com os olhos assustados, uma garotinha escondida atrás de suas pernas e a dona da voz, segurando o meu fuzil apontado para mim, tremendo um pouco. Isso me deixou bastante confuso. Fiquei parado, por um tempo, olhando para o teto, tentando entender alguma coisa.

-Nós salvamos sua vida, e você nos quer mortos? – perguntou ela. – Nós cuidamos de você, e é assim que você nos retribui? Dê-me um só motivo para que eu não faça com você o mesmo que vocês americanos estão fazendo com o meu povo...

-Você não é uma assassina. Se fosse já teria me matado ao invés de cuidar dos meus ferimentos. – disse eu, ainda deitado de barriga para cima.

-Tra giúp anh ta ngui, Young – disse ela para o rapaz, que veio em minha direção, meio receoso. Ele me ajudou a ficar sentado, escorando-me na cama. Minha perna ainda doía muito.

-Minha perna dói. – reclamei.

-Vai passar logo, é só você ficar quieto. – ela respondeu rudemente. – você deveria dar graças a Deus de não estar morto, meu irmão te achou agonizando entre os destroços do avião.

Mais flashes. De um lado estava o tenente, com uma parte do rosto desfigurada. Pedaços de aço retorcido e fogo em volta. Escuridão. Passos e uma mão mexendo em meu rosto. Escuridão. Pessoas falando em volta de mim e, por fim, alguém me pega no colo e começa a andar. Escuridão novamente. Depois eu acordo aqui. Mas a troco de que essas pessoas continuam a me manter vivo.

-Você deve estar se perguntando por que ainda não te matamos ou te entregamos para o exército? – disse como se tivesse lido minha mente.

Ela se aproximou, abaixando. Colocou o fuzil no chão e me olhou nos olhos. Notei que seus olhos estavam cheios d’água. Realmente, ela não tinha motivo algum para me manter escondido ali, cuidando de mim, enquanto eu era o inimigo. Enquanto muitos de nós estávamos lá fora, chacinando os seus compatriotas em uma guerra sem sentido. Uma guerra onde muitos estavam por vaidade, outros pelo simples orgulho de estar fazendo “algo” em prol do seu país. Outros ainda, só para sentir o gosto de matar alguém e ainda se tornar um herói por isso. Eu, particularmente, estava ali pela vaidade. Enquanto muitos pereciam pelos nossos fuzis, nós nos vangloriávamos. Entre nós, disputávamos quantos “amarelos” conseguíamos matar sem recarregar.

-Meu pai – continuou ela – tinha um grande amigo. Ele era americano. Tinham um restaurante no vilarejo aqui perto. Trabalharam juntos por muito tempo. Até que a guerra estourou e alguns radicais invadiram o restaurante. Eles queriam que meu pai entregasse o americano, mas ele se recusou. Os radicais então começaram a destruir o restaurante e meu pai tentou intervir. Bem... Resumindo a história, meu pai levou um tiro na testa. Quando todos saíram, o americano saiu de seu esconderijo, atrás do balcão e viu meu pai estirado no chão. Na parede estava escrito com sangue: Traidor. Depois disso, ele veio para casa e nos contou o que aconteceu. Eu chorei amargamente por vários dias, até descobrir que eu estava grávida.

Ela fez sinal para a garota, que se aproximou. Fiquei impressionado. A garota era loira, com os olhos levemente puxados e azuis. Azuis como os céus do Mississipi em uma manhã ensolarada.

-Alguns dias depois, os mesmos radicais invadiram minha casa... – uma lágrima escorre pelo seu rosto enquanto ela abraça firmemente a criança, sem tirar os olhos de mim.

Nesse momento, senti meus olhos se encherem. Não conseguia acreditar nisso. Não conseguia acreditar no que começamos. E onde culminou. Minha cabeça girava. Enquanto aquela mãe chorava abraçada à sua pequena filha órfã.

-Conseguimos fugir por pouco. Se não fosse meu marido, estaríamos todos mortos agora. Fugimos até esta cabana, que pertence à nossa família. Meu irmão, para afastar suspeitas de nós, se alistou para servir na guerra, mas não para matar. Ele procura por americanos e vietnamitas que estejam agonizando e os trás para cá. Tratamos deles. Mostramos para eles que não existe fundamento nesse jogo maldito. Mostramos para ele que não existe motivo para esse inferno. Mostro ela. – disse, apontando para a garotinha, que agora estava brincando com uma boneca no canto.

Enquanto ela falava, o rapaz que estava na porta sai. Eu começo a pensar o quão inútil eu sou. Enquanto eu queria conseguir o máximo de medalhas possíveis para me gabar diante de todos os meus colegas da faculdade, ela estava lutando a sua guerra pessoal para salvar o pouco de humanidade que ainda existia em meio a essa aquarela de napalm, carne e sangue pintada ao som de uma sinfonia de gritos e morte.

Enquanto eu pensava nas mulheres com quem eu transaria ao voltar para a América, ela tentava mostrar ao mundo a mediocridade do ser humano em não aceitar as diferenças. Ela tentava salvar o homem de si mesmo.

De repente, tiros. O garoto irrompe pela porta, sangrando.

-Chúng tôi phát hian ra, Miyao – disse ele.

A moça, que eu nem sei o nome ainda, me deita rapidamente ignorando meu grito de dor, e me empurra para baixo da cama. Deus, como dói a minha perna. Eu vejo sua mão pegando o fuzil no chão e ela grita alguma coisa para a garotinha. Passos irrompem pelo quarto. Ouço vozes. Primeiro um homem, depois a voz da garota. Não consigo entender nada do que dizem. Ouço um tapa e as molas da cama acertam minha cabeça. Não acredito que estejam fazendo isso. A moça começa a gritar com horror e as molas que estão sobre mim começam a ranger e bater em minha cabeça. Não pode ser. Ela está sendo estuprada e eu não posso fazer nada. Ela, que me acolheu e tentou me mostrar a bondade e a compaixão humana. E eu aqui, sem poder fazer nada. As molas param de ranger e ela para de gritar. Vejo uma bota preta se afastando e uma porta batendo. Tento me arrastar para fora do meu esconderijo mas a dor ainda é muito forte. Com muito esforço consigo sair do meu refúgio, mas antes continuasse ali. A cena que vejo é forte demais para que eu consiga suportar sua visão. Suas roupas estavam todas rasgadas e ensangüentadas. Um corte profundo abria sua garganta de um lado ao outro.

Desvio o olhar. Não posso mais agüentar olhar para esta cena grotesca. Enquanto tento fugir daquele quadro, vejo meu fuzil jogado ao chão...

Mississipi, um mês depois...

-Mãe, tem uns moços com uma roupa bonita chamando a senhora aqui na porta.

Luiz Costa
Enviado por Luiz Costa em 25/10/2012
Reeditado em 28/07/2021
Código do texto: T3951877
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