Veridiana - Parte II
Fantasiava se sobreviria um outro eu, depois da experiência. As luzes do mundo se desvelariam porquanto as saberia; não se toldariam mistérios, nem curso d'água que me não levasse aonde quisesse o leme. Melhor - sem lemes a me levar!
Pairar sobre as eras e contemplar a obra. - Tanto me apavorava como ansiava por aquele imponderável!
Dizer a um cego de nascença que cores são vibrações de onda: - olha, amigo, não explico mais! Veja, por favor... Esta ou essa cor resulta de quantas vibrações caibam no passar de um segundo! - é o mesmo ao tentar traduzir o que sente um moço descobrindo o estado de graça, a graça elementar que somente aos puros é dado gozar.
Imorais os que imoral vêem. E tanto, tanto vêem... a pureza corrompe em vício: ficam cegos.
Talvez eu seja, hoje, um imoral. Talvez não. - Não. Eu sou amoral!
Elucubrações... Perdoe-me o leitor. Irrompeu-se uma torrente. Custoso represá-la.
Tornemos à história.
Foram três meses de conhecimento, desde minha chegada, antes que eu cogitasse de desejos. - Na verdade, não são cogitáveis os desejos. Não poderiam ser. Fossem, perder-se-ia a humana poesia a prover apaixonados hinos e cânticos e nos revelar tão maravilhosamente imperfeitos!
Nos entreatos da infeliz comédia que via desenrolar-se, divisava pessoa e personas, para além dos disfarces. Meu papel de figurante ia consistindo da insignificância ao ato. Não passava incógnito.
À mesa, o olhar do velho Ciro me deixava pouco à vontade. Falava comigo se absolutamente necessário. Nem precisava falar. Lançar-me aquele fito de albatroz era suficiente para eu ver alheio o território: o seu território. E assim transcorria a refeição. Silêncio das bocas, ruidoso de significado.
De quando em quando, ousava Veridiana me acalentar, mirando-me breve, protetora. Não sei se meu rival percebia - e sequer o pensava rival.
Remexer-se ele na cadeira, a deixa para ela se quedar obediente, engolindo, seco, a ração de caserna.
Meu quarto de hóspede era mais uma cela de mosteiro. Uma cama de mogno, o colchão de molas, algumas quebradas e rangentes - talvez, por isso, haja ganho uma dorzinha nas costas que me importunava as manhãs -, um criado-mudo onde se punham um missal e um quebra-luz, de rota armação.
Completavam o mobiliário uma cadeira maciça e uma escrivaninha parda, em imbuia. Duas gavetas sem puxador. Tudo remontava e cheirava a tempo.
Sobre a cama pendia um crucifixo de cobre coberto de azinhavre, com um jovem esquálido cravado, em transe de morte. - Nunca me alentou essa representação do Gólgota. A visão do sofrimento não me anima o coração.
Esse meu quartinho ficava a um cômodo da copa, nos fundos.
Intrigava-me, quase toda noite, a casa em penumbra, ouvir um leve arrastar de chinelos. Logo faziam oscilar a cadeira de balanço. E aquele pêndulo não me deixava dormir!
Pensei, a princípio, tratar-se da ama de Veridiana - manias de insone, caduquice!
A pretexto de tomar água, certa feita levantei-me e era a própria Veridiana, em camisolas, que se embalava, o semblante contrito.
O marido dormisse o seu sono de justo, abandonava o leito e se entregava à solitude, naquele cantinho, apartada da existência.
Oh! Sua silhueta recortando-se no vestido fino, translúcido, era o quadro que desejava pendesse em lugar do crucifixo!
Parado diante da porta, não atrevia um passo. Arfava. E minha adoração findou por denunciar-me.
Ela emitiu um gritinho, em sobressalto. Brusco, alinhou o tronco. Esse movimento lhe fez saltar os peitos, libertos do corpete que os prendiam todo o dia. Notei-lhes os bicos túmidos, sombreados, oferecendo-se-me: papaia em flor!
Eu não mentalizava essas coisas. Retrato, agora, desse modo, por se me afigurar. Minha pureza de então era só prenúncio e instinto.
Não fala nada. O rosto tinto. Com o antebraço, protege o busto. Ergue-se rápido e flecha a direção da alcova.
Por cinco noites, em vão esperei. À hora do almoço, ou às tardes, evitava-me. Acreditava mesmo haver perdido o amparo que aliviava a desconcertante presença altiva do velho.
Deitado, buscava esvaziar a mente. Percorriam-me sensações. Uns rasgos de pudicícia me assaltavam. Era agradável, por mais culposo, o deixar-me invadir por estranhas impressões. Embaraçava-me despertar e perceber o calção untado - matéria de que são feitos férteis sonhos...
Na sexta noite, súbito, a toada daquele balanço conhecido alegrou meus ouvidos. Cauteloso, aproximei-me. Abri a porta com vagar. Não queria de novo assustar minha tímida amiga.
E fiquei surpreso! - Seus olhos negros já espreitavam os meus, curiosos. Sorriu um sorriso acolhedor, qual me aguardando.
Nada atinei com que me pudesse desculpar o perturbá-la a vigília.
Vago, segui rumo ao aparador. Tomei da bilha e enchi o copo. Bebi sem vontade. Outra fonte me saciasse...
- Ah! Acordei você? Ficou sem soninho? Sente-se um pouquinho aqui. - E apontou a preguiçosa, ao lado seu.
Quase-leito a cadeira, espichei-me. Não queria estender-me daquela forma, vulnerável. O pijama frouxo revelaria qualquer involuntário pensamento, bastante uma olhadela de viés em suas formas.
Fiquei lá, imóvel. Os músculos hirtos. Estava convencido de que me observava.
Nada dissemos. Ouvia-se apenas o compasso de nossas respirações.
Suava, embora o frescor da madrugada.
Ainda lhe não virasse a cabeça, tragava-lhe o cheiro bom! Inebriado, sucedeu o que eu temia. Pouco em pouco, crescia-me uma incômoda saliência. Corei.
- Com... com licença, senhora! Preciso... vou dormir. Amanhã, cedinho, tenho aula. - E disparei, sem mais.
- Ela notou? Ai!...
Não preguei pálpebra!
2007, 27 Fev
(continua)