Quantas Chances Houver - Capítulo seis: Esperança (Final)

Amanhece o dia, me levanto e encontro o padre Valentino já na cozinha preparando o café da manhã. Olhou-me e disse:

—Bom dia, dormiu bem?

—Não preguei os olhos.

—Não se preocupe, cuidarei de tudo para você por aqui. — O meu carro está pronto no pátio, saia por trás que ninguém vai lhe notar.

—Não sei para onde ir padre, como vou proteger Benjamim?

—Vá para longe da cidade, pegue a autoestrada e vá até o quilômetro 731, entre à direita e você vai encontrar a Chácara Esperança. Lá você estará seguro, eles o ajudarão.

— Vou passar em casa para pegar as nossas roupas e alguma comida.

— Não! Vá direto aonde eu lhe falei, pois sua casa está toda revirada, e com certeza estão lhe esperando. — Passei lá por frente discretamente e a porta foi arrombada. — acho melhor você deixar Benjamim comigo até as coisas se acalmarem.

—Melhor não padre. — isso vai colocá-lo em risco, e eu prefiro que ele fique perto de mim neste momento.

Após terminarmos o café da manhã, coloquei Benjamim ainda sonolento no carro, me despedi do padre Valentino e saí pelo portão de trás do pátio como o padre havia me falado. Ainda lembrava-me de como era o carro dos dois que procuravam por Maria, então fui atento a cada carro que passava. Em poucos minutos já estava na autoestrada na saída da cidade. Depois de alguns quilômetros de plantações a estrada corta uma serra e no acostamento os arbustos escondem muitas vezes abismos e ribanceiras enormes.

Durante a viagem meus pensamentos giravam em torno de Maria, sem saber onde ela estava ou o que havia a ocorrido. Por que não me pediu ajuda? A saudade que já era companheira de longa data me fazia lembrá-la sempre. Enquanto isso Benjamim dormia tranquilamente no banco de trás.

Enquanto dirigia lembrava-me da minha antiga vida com Sofhie, como era feliz ao lado dela. Eu a conheci em uma ocasião inusitada. Estava indo em uma entrevista de emprego, o escritório ficava no último andar do prédio, eu a encontrei no elevador, entramos juntos, ela era séria e nem olhava para os lados, eu não conseguia tirar os olhos dela, nunca havia visto uma mulher tão linda quanto ela. Dei bom-dia, e ela nem se deu ao trabalho de me responder. Fiquei calado no meu canto, quando de repente o elevador travou entre os andares seis e sete, nos primeiros cinco minutos ela continuou ali, parada como se nada acontecesse. Após comunicar o que acontecia, o porteiro nos avisou que iria demorar a concertar.

Neste momento vi as primeiras gotas de suor escorrendo de seu rosto, após meia hora de espera o desespero já havia tomado seu corpo, e a única coisa que fazia era chorar. Eu havia perdido a conta de quanto tempo se passou, e a mulher que me esnobou no inicio já se pendurava no meu pescoço me pedindo ajuda, eu fiquei tão feliz que até esqueci-me do trabalho que perdi, e o medo de ficar preso lá dentro já não era um problema.

Quando saímos lá de dentro já era tarde e como em toda cidade pequena, já não havia ônibus funcionando. Ela estava na calçada sem saber o que fazer, eu parei meu carro ao seu lado e a ofereci uma carona. Sofhie pestanejou. Então eu disse:

— É a sua única opção! — Como vai para casa?

Abriu um sorriso brilhante como o sol, me agradeceu e entrou no carro. Daquele dia em diante ficamos juntos, e nunca mais passamos uma dia longe um do outro. Até que um maluco qualquer sem um pingo de responsabilidade, em um ato impensado, tira a vida de três pessoas, e teria arruinado a vida de Benjamim se eu não o ajudasse. Embora Benjamim ajudou-me muito mais.

Após acordar de minhas lembranças, comecei a notar um carro estranho que me seguia já há algum tempo, acelerei o carro e tentei tomar distância, e logo em seguida o carro aproximou-se ainda mais, continuei a acelerar, mas não adiantava, o carro continuava a aproximar-se, cada curva que se passavam mais próximo estava. Já se ouvia o grito dos pneus, eu fazia cada curva no limite, e temia não podre segurar o carro, pois as curvas estavam cada vez mais perigosas. Foi então que ouvi um barulho e senti um solavanco, e cada quilômetro que se passava as batidas eram mais fortes, Benjamim acordou assustado com os barulhos, tentei acalmá-lo, mas foi em vão, ele chorava cada vez mais, eu ficava cada vez mais nervoso.

O carro continuava a bater, e bater cada vez com mais força, já estávamos em alta velocidade e meu carro não suportava mais nem as batidas, nem a velocidade em excesso, minha vida passava diante dos meus olhos, e o medo de que ocorresse alguma coisa com Benjamim. Em uma das curvas, os pneus cantavam, meus pensamentos estavam a mil, então eu senti o último dos solavancos fazendo meu carro perder o controle capotando várias vezes. É como se tudo ficasse em câmera lenta, como em um filme de terror, e cada segundo parecia uma eternidade. Alguns metros adiante o carro parou batendo em uma árvore, sentia o gosto de sangue em minha boca, uma dor insuportável em minha cabeça, não sentia as pernas e mal podia me mexer, os olhos ficavam cada vez mais pesados, e o desespero me tomava por não poder ver Benjamim que não me respondia. Não tinha mais forças quando meus olhos se fecharam. O carro que me tirou da pista desapareceu sem deixar rastros. Estava eu ali, embebido em sangue e dor, passando por mais um teste em minha miserável vida. Fiquei desacordado um bom tempo, como se eu deixasse de existir, como se tudo pelo que eu lutei escorresse entre meus dedos.

De pouco em pouco fui recuperando meus sentidos, e a primeira coisa que senti, foi o perfume cítrico que Maria usava, então abri os olhos lentamente, e após o choque da claridade fui entendendo tudo em minha volta. Lá estava eu acordando novamente em um hospital. Logo que abri os olhos busquei pelo quarto todo ver Maria, mas o que me restava era apenas o seu perfume.

No canto esquerdo do quarto, sentado em uma cadeira, estava padre Valentino. Cabisbaixo, com o animo de um condenado, com as mãos entrelaçadas como se rezasse. Com a voz falhada tentei chamar seu nome, mas o que saiu foi apenas um resmungo, então me olhou, se levantou, e tentando me mostrar alguma felicidade, me apertou as mãos dizendo:

— graças a Deus, você acordou! — Fico feliz que esteja bem meu filho!

— Há quanto tempo estou aqui?

— Há uma semana.

— Me responda. — como está Benjamim? — não minta pra mim a esta altura da minha vida padre.

— Não acha melhor sair deste hospital primeiro?

Tentei com todas as minhas forças levantar, mas não foi possível, então gritei com o fôlego que não tinha:

— Me responda padre!

O padre arrastou a cadeira até ao lado da cama, sentou-se, segurou minha mão, enxugou seus olhos, e com a mão trêmula me respondeu:

—Lamento não ter boas notícias para você. —terá que ser forte neste momento. —Benjamim não sobreviveu ao acidente.

Um silêncio tomou o quarto, e por alguns minutos segurei a mão do padre sem dizer uma só palavra, um desejo mórbido me tomava, e uma pergunta que ficava rodando em minha cabeça. Por que comigo?

—você tem que ser forte, meu filho.

Minha vontade naquele momento era de morrer no lugar de Benjamim, ou matar a todos que tocassem no assunto. Passei dias naquele quarto sem dizer uma palavra, remoendo o ódio que me destruía o peito. O pobre padre Valentino me visitava todas as noites, se sentava ao lado da cama, e tentava me animar ou puxar conversa, mas era em vão.

Minhas lembranças era o que me doía mais, me lembrar dos momentos felizes que passei ao seu lado, o ajudando com as tarefas da escola, jogando bola no quintal, correndo pra lá e pra cá. Os passeios pelo parque, os sorvetes nos fins de tarde, os sorrisos brilhantes com a boca toda suja de chocolate, as histórias que lia para ele antes de dormir, e muitas outras coisas que nunca mais iria fazer junto dele.

Minha recuperação foi lenta, e mesmo depois de sair do hospital ainda fiquei alguns meses me apoiando em muletas e cadeiras de rodas. Voltar para casa foi à parte mais dolorosa, me deparar com as roupas dele, com o quarto que havia construído e os adesivos nas paredes, os brinquedos jogados pelo chão, era muito difícil. Só pude voltar depois que o padre me ajudou a limpar a casa e doar as coisas de Benjamim.

Aborrecia-me não ter nem me despedido dele, debilitado em uma cama de hospital, nem em seu enterro pude ir, enterro este providenciado por padre Valentino, que novamente cuidou de tudo. Para mim a vida acabou por ali. Não havia mais animo para continuar, não me sobrou nada, roubaram-me a chance de ter uma família novamente. Roubaram-me tudo. O padre Valentino se mostrou meu único amigo de verdade, com quem pude contar nesses anos todos, mesmo assim, não saía de casa para quase nada. Nem para vê-lo.

Fiquei meses dentro de casa olhando a vida por uma janela, mesmo depois de ter melhorado, vivia do dinheiro do seguro e mais nada. Muitas vezes ouvia Benjamim me chamar de pai, corria até onde fosse, porém, jamais passou de delírios da minha mente me pregando peças. A bebida voltou a ser minha companheira novamente.

Várias vezes observava a janela que dava para a rua, algumas vezes embriagado, outras não, mas em quase todas às vezes percebi uma mulher que se sentava do outro lado da rua e observava minha janela, com a mesma tristeza que tinha em meus olhos. Vestia-se de maneiras diferentes a cada dia, talvez na tentativa de que eu não a notasse, porém era difícil confundir o seu perfume cítrico que cruzava a rua, e aquele estranho cachecol xadrez pendurado no pescoço, que quase nunca combinava com a roupa. Pergunto-me por que ela nunca me procurou, por que preferiria sentar-se do outro lado da rua do que me procurar.

Talvez por vergonha, ou por medo. Pois ela sabia que tudo ocorreu devido aos seus erros de um passado não tão distante, e que o maldito vício havia destruído de vez a vido do pobre garoto.

A vida não deu muitas chances a Benjamim, pois nasceu em uma família conturbada, com pais irresponsáveis, e quando se pensou que estava livre da vida nas ruas, de passar fome, e de pessoas que o maltratava, eu que deveria tê-lo protegido, lhe aproximei novamente de sua maldita tia. Isso é o que me doía mais, ser o responsável por sua morte, que consequentemente deu por terminada as minhas chances de uma vida normal, pior ainda, teria que carregar aquele peso pelo resto de minha inútil vida.

Será que a vida me daria outra chance? Será que eu teria forças para enfrentar tudo mais uma vez? Talvez seja o que a maioria das pessoas faz, enfrentam as suas vidas cruéis, tantas vezes que já estão calejados, e enfrentariam quantas vezes fosse preciso.

Nas noites frias de inverno, penso se seria diferente se eu estivesse com Maria, mas eu nunca teria coragem de perdoá-la depois de tudo, sei também que a culpa não foi somente dela, que era apenas a vida correndo seu cruel e incompreensível curso.

Talvez se eu deixasse as mágoas de lado, fosse atrás dela, quem sabe eu teria mais uma chance. Porém nem eu sei se queria mais uma chance da vida, pois todas que eu tive foram tiradas de mim com brutalidade. Hoje estou com noventa anos. A vida me fez carregar a culpa e a tristeza por esses anos todos. Por trinta anos meu grande amigo padre Valentino me ajudou a carregá-las, mas ele me abandonou, me deixando sozinho nesta vida há quase vinte anos. Depois desses anos todos, o único livro que consegui terminar é este, que levei a vida toda pra escrever, com a dor e a tristeza como personagens, uma vida covarde e uma velhice solitária como enredo. Realmente não sei se tudo o que eu disse foi apenas para esconder minhas fraquezas, ou a falta de coragem de continuar, só sei que agora é tarde para reclamar ou arrepender-se de alguma coisa. E se alguém me perguntasse o que eu faria se a vida me desse outra chance? Eu lutaria, e lutarei quantas vezes a vida me derrubar. Quantas chances houver. Porque é isto que nos resta.

Henrique Serafini

Henrique Serafini
Enviado por Henrique Serafini em 02/01/2013
Reeditado em 02/01/2013
Código do texto: T4063806
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