PERDAS, LOUROS E DANOS

Lobato, a pequena cidade do Paraná está em polvorosa, chegou um grupo de ciganos. As mães corriam para proteger a sua prole; as crianças, um pouco mais descuidadas, ainda olhavam curiosas para ver exatamente do que elas tinham que correr. Ficavam fascinadas com aquela gente esquisita, aquelas mulheres de saias compridas, falando em ler a sorte. Eu, dois ou três anos de idade, era uma delas; olhava fascinado para o outro lado da rua perto da “Raia”, lugar onde aconteciam corridas de cavalo.

Era época de política, meu pai, homem austero e influente, participava ativamente dos movimentos políticos, era do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Tínhamos orgulho dele, abastecia as padarias e olarias com lenhas, tinha um serviço de alto falante e sociedade no cinema local. Às tardes, perto do por do sol, quando os trabalhadores estavam voltando para casa, a maioria trabalhadores rurais, podiam ouvir: “Ao som do prefixo musical que ouvem, entra no ar o mais completo serviço de publicidade radiofônica de Lobato! Caros ouvintes queiram aceitar a minha cordial boa tarde! A música dignifica, sensibiliza e ajuda a moldar o caráter humano. Se você gosta de música, escolha uma de sua predileção e mande-nos um bilhete que nós o atenderemos com imenso prazer.” Todos nós ouvíamos orgulhosos, era como ter um pai artista global.

Aos domingos assistíamos aos filmes no Cine Marabá. Os do “Gordo e o magro” eram os preferidos das crianças. Cinema não era coisa desse mundo, era uma maravilha sem igual, era simplesmente surreal. Ficávamos a semana todinha na expectativa de duas horas de entretenimento. Minha irmã mais velha coordenava as ações; colocava de graça para dentro do cinema os nossos amiguinhos menos favorecidos; tantos quantos ela conseguisse até que alguém intervinha. Então ela chorava um pouco e deixavam-na por mais uns para dentro; só quando o argumento do choro acabava é que ela ia, resignadamente assistir ao filme.

Na manhã seguinte da chegada dos ciganos acordamos desconfiados, olhando por detrás da casa, nas esquinas, chegar perto do portão só acompanhado de um adulto.

O mundo lá fora tinha um atrativo inexplicável, dava uma vontade danada de quebrar as regras. Ficávamos olhando pelas frestas das balaustras seguindo os movimentos daquele povo estranho. Não havia nada de diferente, comiam, bebiam, falavam alto que nem famílias de italianos; tinham automóveis e parecia não terem problemas financeiros.

Enquanto os adultos se entretinham com o caso da ciganada, do lado da nossa casa ficava uma fábrica de doces. Nesse dia em que todo mundo estava desconfiado com a presença do povo estranho, meu irmão mais velho chegou e disse: “vamo ali comê doce?” Não precisava dizer duas vezes. Eu pensava que íamos fugir e procurar uma vendinha; não, era roubar na fábrica que era vizinha de nossa casa. Tinha uma balaustra quebrada. Ele tinha menos de seis anos e eu menos de três. Para a nossa sorte a fábrica era de madeira e ele sabia onde tinha uma tábua solta, foi fácil como “tirar pastel de japonês”, não demorou nada estávamos degustando, de graça os doces sabe-se lá de quem.

Depois de algum tempo comendo sem freio na boca, meu irmão disse: “Eu quero cagá! To com dor de barriga!” Também... Pegamos mais alguns doces e fomos para o matinho. Eram doces de côco de cor marrom e a cena que vi é para lá de “dantesca”, para nunca mais ser esquecida: o menino gemia baixinho, mas não largava da comilança. Eu, por detrás, exercendo o meu direito de cagão, podia ver a coisa mais esquisita do mundo: ele comia os doces que eram da mesma cor da bosta; eu, criança, pensava que o doce estava passando direto, que não tinha esse negócio de digestão, até a forma que assumia depois de cagada parecia com a forma dos doces. Fiquei encabulado por alguns dias, não comentei com ninguém o dilema; era um problema científico que eu, sozinho, não conseguia resolver. Tive que esquecer.

Fomos para casa, meio borrados, não tínhamos prática em limpar a bunda direito e a mãe logo descobriu a façanha, não sei como; e o “pau comeu na casa de noca”, a mãe baixou o laço sem dó; o chicote cantou “bonito”. Os meninos, cagados e apavorados, gritavam que nem filhote de macaco prego. Nós reprovamos veementemente essa ação corretiva da mãe, não entendíamos o porquê da peia. Naquele tempo não se falava em proteção à criança e ao adolescente e os adultos não tinham o limite adequado para a correção de seus filhos.

A irmã mais velha, aquela que punha todo mundo para dentro do cinema, ela nunca apanhava, ou fazia tudo bem certinho ou impunha respeito; por isso era admirada e respeitada por todos nós. Só que tinha um problema: quando algum de nós levava uma surra ela se lembrava de uma música que dava nos nervos. E cantava: “Quando vejo uma criança bem sapeca, eu me lembro que também já fui assim; por minha causa o papai ficou careca e a mamãe ficou velha e grisalha por causa de mim! A mamãe mandou o papai comprar um chicote de amargar; como dói o chicote, dançando o pinote, aprendi dançar o xote!”

Chicotadas à parte, toda vez que uma criança tinha que sair para comprar alguma coisa ou fazer alguma tarefa externa ao pátio, era como se Ulisses tivesse pegado sua nau e saído mar adentro; para nós era uma Odisséia, porque Ilíada tinha sido a entrada na fábrica que nos rendera a famigerada surra. Quando alguém saía, eu olhava para a minha irmã mais de quatro anos, a Betinha; ela ficava pensativa, poderia estar pensando qualquer coisa, mas eu imaginava que ela estava tecendo o tapete de Penélope, preocupada com o guerreiro que partira.

Meu pai, como diria Chico Buarque em “Geni e o Zepelin”, “um guerreiro tão vistoso, tão temido e poderoso”, podia tudo. Fez uma pandorga, papagaio ou pipa, sei lá; Tinha gravado nela a fotografia de Nelson Maculam, um candidato do PTB a governador pelo Estado do Paraná.

Depois de algum tempo no ar o objeto voador totalmente identificável caiu; arrebentou a linha, se encolheu todinho e deu ré no ar. Foi uma espécie de espanto misturado com decepção. O vento fê-lo cair justo em território inimigo; nas tendas dos ciganos. O papagaio era tão imenso que não era seguro usar a linha de costura simples, mas sim, um tal de “cordonê”, um barbante levemente mais grosso e muito mais resistente que a linha comum; mas não adiantou.

“Vai lá buscar o papagaio!”, foi a voz que ecoou no ar. Silêncio, preocupação, medo; todo tipo de sentimento negativo; eu não sabia para quem era a ordem; vai que era para mim.

Saí de fininho, entrei em casa, chamei a Betinha e nos escondemos embaixo da mesa, até que outro infeliz cumprisse aquela maldita e também infeliz ordem.

Era pro meu irmão mais velho; para nós tanto fazia, ninguém deveria correr perigo, éramos solidários.

Uma vez escolhido o herói para a tarefa, saímos debaixo da mesa e corremos para o portão para torcer pelo sucesso da jornada. Dali pudemos ver o guerreiro trêmulo e vacilante indo cumprir os desígnios da vida. Um barulho ensurdecedor, gritos, choros e lamentos de mulheres ecoavam das tendas, o nosso coração palpitava de tensão! O que teria acontecido com o guerreiro corajoso que partira para a importante missão de resgatar o papagaio?

Qual não foi a nossa surpresa, O mano saiu do meio da multidão de ciganos, caminhando placidamente; na verdade, correndo feito um alucinado, mas tanto faz; o importante é que trouxe o papagaio nas mãos; todo arrebentado, rasgado, mas trouxe.

Mais tarde nos contou o que acontecera no front, em território hostil: “Quando eu che... cheguei lá um menino cigano que tinha tentado pe... pegar o papagaio que estava em cima de uma casa abandonada, do outro lado do acam... campamento, caiu e quebrou o braço. Eu subi lá e pe... peguei o papagaio, eles me to... tomaram da mão e rasgara tu... tudo”, falava soluçando desesperadamente de descontentamento.

Apesar de tudo foi uma importante descoberta que muito nos encorajou a sair detrás das balaustras e enfrentar as intempéries lá de fora.

Mesmo com todo aquele alvoroço, gritaria e rasgamento de papagaio, lamento do guerreiro por não ter conseguido total sucesso em sua façanha, descobrimos que os meninos ciganos eram como nós; quebravam braços, pernas, caíam choravam; suas mães faziam escândalos que nem as nossas e o mundo lá fora não era tão perigoso. A gente poderia até voltar chorando, mas voltava vivo.

Pensando na possibilidade de sair detrás das balaustras e ganhar o mundo, já que não era tão perigoso, certo dia vi o portão aberto e pensei: “essa é minha oportunidade”. Saí dos domínios territoriais próprios, porém quando cheguei a pisar na ruazinha de areia, ela estava tão quente que fui obrigado a correr e atravessá-la bem rápido.

Novo revés: do outro lado da rua, o que parecia ser uma grama macia e verdinha era uma plantinha chamada “joaninha”; uma vegetação rasteira que solta uns minúsculos espinhos em forma de conchinhas que dói miseravelmente quando penetra na pele fina dos pés infantis. Quando senti os pés todos furados de espinhos caí com a bunda exposta, pois estava pelado e nela também cravaram vários espinhos de joaninha. Levantei-me e, com os pés latejando de dor corri para onde estava virada a cara; corri tanto que me perdi.

Depois de algum tempo à deriva o medo começou a bater. Pensava: “E os ciganos, se me pegam aqui sozinho? Os jagunços, as assombrações, as pessoas de imensos chapéus de palha que passam em frente à minha casa para ir trabalhar nas lavouras?” pensava também nos mendigos, bêbados e tantas outras figuras das quais nos ensinavam a ter medo; até porque tinham que nos convencer a não sair sozinhos para fora do cercado.

Caminhando a esmo, meio apavorado, meio não totalmente; vislumbrei ao longe uma menina que freqüentava a minha casa. A Deda. Ela tinha a língua presa e me chamava de pleto. Certamente também me procurava, pois quando me viu veio correndo e me pegou no colo; saiu meio cambaleante, pois ainda era muito nova para carregar o meu peso. À medida que ela andava os espinhos cravavam mais ainda na minha bunda. Eu chorava tanto que não conseguia falar do meu sofrimento; até que vi a Betinha correndo em minha direção; eu tentei avisar para ela o quanto era perigoso esse mundo aqui de fora, mas não tive tempo. Atrás da Betinha vinha a minha mãe com um chinelo em riste; a Deda vinha gritando: “Achei o Pleto! Achei o Pleto!” A mãe era a salvação! A redenção do vil e ingrato pecador fugitivo. Antes de ela chegar perto eu já estava com os braços levantados pedindo colo e socorro.

Outro revés: ao invés de colo e socorro ela desceu o chinelo sem dó na bunda toda cravada de espinhos que, a cada chinelada cravavam mais fundo na “fartura” de carne do infeliz.

Não parava de chorar. Uma mistura de alegria por estar em casa, com a tristeza da recepção que recebera na volta ao lar. As dores dos espinhos encravados e já inflamando nos pés e na bunda eram quase nada, comparando com o que aconteceu. O menino queria colo, carinho, conselhos... Essas coisas que se esperam das mães.

Algum tempo depois, como eu não parava de chorar e passar as mãos nos ferimentos da bunda e dos pés, a irmã mais velha viu e veio conferir o que estava a acontecer com o menino: ‘Mãe! Vem cá depressa! “O que foi menina? Olha como está a bunda e os pés do menino! Mãe de Deus! Dizia a matriarca, pega alguma coisa! Agulha ou tesoura! vamos ter que retirar esses negócios! Na verdade nem sabiam do que se tratava. Como já fazia algum tempo e estava inflamado elas só apertavam e saia, misturados com o pus, os espinhos de joaninha. Outra tortura, depois, alívio.

Depois desse dia o afã de conhecer o mundo teve de esperar mais um pouco. Não se tira a razão de quem vigia. Fiquei mais concentrado na vida do lado de cá da cerca, ela também nos proporcionava emoções inusitadas.

Do alto dos meus dois anos e meio, uma das coisas mais felizes da minha tenra vida era a Betinha, a irmãzinha de quatro anos. Com ela eu brincava e criávamos juntos a realidade que nos convinha, posto que a propriamente dita era um caos.

Éramos reis , rainhas, amantes, dominadores, dominados, mães, pais, filhos, heróis e nunca bandidos, pois um sentimento puro e verdadeiro nos unia. Não havia nenhum interesse denominacional, religioso ou secular que nos impusesse subordinação. Na busca da própria realidade, burlávamos as leis mais severas do mundo dos adultos. Um prato de comida, por exemplo, poderia ser, tanto a montanha que fazia fundos com a pequena cidade em que vivíamos, como um simples morrinho de areia e, às vezes, até um suculento e verdadeiro prato de comida mesmo; quando a fome era maior que a fantasia.

O ambiente de pobreza que circundava o mundo desses heróis, não passava do mais suntuoso castelo que se podia imaginar. Se as pessoas eram lindas, nós, sempre éramos muito mais; a vida era uma festa de gala e galanteios.

Certo dia, sem que ninguém desse explicações, a Betinha começou a tossir muito e a sentir falta de ar, o povo chamava aquilo de "Coqueluche" ou "Tosse-comprida" pois que parecia nunca ter fim; uma tosse que começava e só parava quando a criança já estava sem ar e totalmente desfalecida. Depois de alguns dias de convalescência, sem que houvesse melhoras no quadro clínico de Betinha, resolveram chamar, do Rio de Janeiro, a madrinha da irmã mais velha, a D. Teresinha, que trabalhava como enfermeira e poderia conhecer um pouco mais desse mal tão temido e letal para as crianças da época.

Com a chegada da D. Teresinha os ânimos se exaltaram e houve um certo ar de esperança no semblante de todos, porém depois de muitas compressas, injeções, chás; depois da criança ser untada em vários tipos de óleos, uma última tentativa foi um tipo novo de injeção que seria aplicada em Betinha como a última chance de salvação; coisa que eu assistia com um certo ar de desconfiança, eu achava que, se Betinha gritava tanto, aquilo não lhe poderia fazer bem. Como diz o dito popular: "Foi dito e feito", depois daquela injeção a menina não se mexeu mais. Eu pensava que a maninha tinha sarado e estava dormindo, porém as pessoas estavam sérias e algumas delas até choravam.

Preparavam uma mesa que parecia muito diferente das de costume: com velas e a adereços desconhecidos; e qual não foi a minha surpresa, bem no lugar que deveria estar o bolo da festa, no centro de todas essas coisas, estava Betinha, linda, ataviada como noiva, o que deu novas esperanças ao herói, a coisa estranha é que não paravam de chorar. Eu, que pensava que aquilo tudo acabaria com o fato de Betinha se levantar e juntos começarmos a bolar novas brincadeiras; fui tomado de surpresa quando a colocaram em uma caixa e levaram-na sem darem explicações.

Fiquei algum tempo por ali, sozinho, acompanhado por vizinhos e na esperança de ver Betinha correndo pelo quintal, como que por encanto e, olhava dentro da "partilera" onde brincávamos sempre; atrás da casa, lá no matinho, enfim, em todos os lugares de costume, porém não a encontrei.

Depois de algum tempo, as pessoas foram retornando pra casa, eu prestava atenção, não via a caixa tampouco a menina. As pessoas, agora um pouco mais calmas, porém com ar de cansadas, não me davam atenção nem explicações do paradeiro da dela. O tempo foi passando a saudade aumentando, a saúde meio comprometida em função da tristeza; vez ou outra me via como que, automaticamente, procurando a minha heroína favorita pelos cantos. Não havia com quem partilhar essa nova e triste realidade.

Certo dia, sem mais nem menos, comecei a tossir. A "Madrinha", que ficara um pouco mais de tempo pra acalentar os queridos pela falta de Betinha, vendo a criança naquele estado resolveu antecipar o tratamento e eu, “inocente”, quando vi a mulher preparando a injeção, lembrei-me do que tinha acontecido com minha irmanzinha e tentei correr, porém sem sucesso; agarraram-me no momento em que tentava subir a escadinha que dava da cozinha para a sala, minha posição, de quatro, facilitou o golpe de agulha que me penetrou certeiro na bunda e nos recônditos da alma; e o desespero foi tanto que tentei, às cegas, encontrar a irmanzinha, mesmo sabendo que seria quase impossível, para poder reclamar com ela sobre essa violência.

Os dias que se passaram foi esperando a próxima etapa do ritual. E eu me perguntava: "Por que será que, desta vez, depois da injeção, não me prepararam uma mesa com velas e choros e me colocaram ali no meio para depois me levarem dentro de uma caixinha como fizeram com Betinha? Se me colocassem pertinho da dela, pelo menos eu teria com quem brincar.”

carlinhos matogrosso
Enviado por carlinhos matogrosso em 03/01/2013
Reeditado em 06/01/2013
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