Pra adoçar as memórias azedas

Sempre que eu olho àquele vaso, eu me lembro de tantas coisas. Foi um amigo que deu. Sempre velou por mim. Meu amigo. Mas ele morreu. Digo, eu não o matei, de jeito nenhum! Nunca faria algo assim...! Ele... Foi embora. Do país. Disse que queria estudar fora, seu um grande astronauta. Mas ele morreu. Meu amigo tinha uma doença estranha, não me lembro do nome... Eu não fui ao velório. Não teve velório. Aliás, acho que teve sim, mas... Eu não fui convidado. A gente se conheceu na escola, eu sempre gostei de potes. Potes e vasos. Coisa da minha avó. Ela sempre teve vários potes na casa dela. Em cada um tinha um tipo diferente de coisa. Nos meus favoritos sempre havia doces. Por isso ele me deu um pote. Um vaso. Cheio de doces. Isso foi no meu aniversário. Acho que era um aniversário de treze anos, não lembro. A gente se conheceu porque nossos pais trabalhavam juntos, e eu era filho único e nunca tinha com quem brincar. Então ele apareceu e nós ficamos amigos. Ele tinha uma namorada, que por acaso era irmã da minha. Era engraçado, por que todos achavam que eramos irmãos. Ficou mais engraçado ainda, porque nossas namoradas eram irmãs! Era divertido pra caramba! Depois de um tempo ele terminou com a menina. Disse que, como queria ser astronauta, era melhor não começar uma família. "Astronautas morrem cedo" ele me disse. Eu casei. Casei com a minha primeira namorada. Temos três filhas. Trigêmeas. Eu achava que era difícil quando as meninas eram bebês, mas agora elas têm três anos e eu estou quase louco. Temos três babás em casa, uma para cada menina. Mas as minhas filhas enganam as babás, trocam os nomes de si mesmas, e fingem ser as irmãs. Eu e minha mulher sabemos diferenciá-las... Mas o resto do mundo não. As três gostam do meu vaso, porque eu sempre o deixo cheio de balas... Então elas estão sempre me pedindo pra pegar as balas. Mas eu ainda acho que um dia aquele vaso quebra. Não porque alguém pretende quebrá-lo, ou algo assim. Ele está muito cheio (por mais que as meninas digam que está quase sempre vazio). Está cheio de memórias. Aquele vaso era meu diário. Escrevia as coisas importantes em pedaços de papel e jogava lá dentro. Um dia meu amigo veio e me ajudou a queimar todas elas. Já havia lembranças ruins ali. Meninos não fazem diários bestas, como as meninas. Eles escrevem o que não conseguem guardar mais. Eles escrevem pra não explodirem. Então uma vez ele leu todos os papeis. "Eu te dei o vaso pra você guardar coisas felizes aí, não esse tipo de memória depressiva. Por isso que que você anda tão pra baixo!". Ele pegou o vaso, e fomos num terremos baldio. Fizemos uma fogueira e queimamos todos os papeis. Mas mesmo assim, as lembranças continuaram e eu não sabia o que fazer. Comecei a colocar doces ali, pra adoçar as memórias azedas. Melhorei um pouco. Foi então que me casei. Dois meses depois, recebo a notícia que o foguete em que ele estava explodiu no espaço. Não precisei de que ninguém me falasse. Ele estava morto. Os pais dele também. Não me lembro dele ter qualquer outro parente. Acho que por isso não teve velório. Sim, foi por isso. Eu deveria ter feito alguma coisa... Mas eu não fiz. Minha esposa falou que eu não deveria me preocupar. Ele provavelmente não sofreu. Cinco anos depois, exatamente, minhas filhas nasceram. Ironia. Foi o acontecimento mais feliz da minha vida! Porque foi o promeiro ano no qual eu não chorei a morte do meu amigo. Meu irmão. Nunca mais chorei a morte dele, a partir daquele dia. Eu percebi que, se eu chorasse, ficasse triste, não mudaria em nada. Foi difícil. Mas eu finalmente me conformei: decidi que aquele dia, eu teria apenas memórias felizes. Impossível, é verdade, mas como a memória é seletiva, eu posso lembrar somente o que eu quiser.

Bekah
Enviado por Bekah em 08/01/2013
Reeditado em 15/12/2013
Código do texto: T4073727
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