Veridiana - Parte III
A noite transcorreu longa.
Sob a janela, o farfalhar da alfazema, acordado com o vento, dizia de prazeres em que eu nunca cismara.
Uma multidão acudiu, em romaria.
Via minha aflita mãe, chorando-me os desatinos e antevendo futuros sem venturas; meu grave pai, o cenho cerrado, a asseverar-me vãs as paixões e por certo o opróbrio. E pululavam, noutro lado do leito, os amigos de escola, cumprimentando-me a fortuna e o haver-me homem feito, ávidos por ouvir as minúcias dos que se enredam, iniciados nas artes do amor.
Cabiam todos ali!
Não cabia em mim mesmo.
- Ela notou? - Eu era vergonha e veleidades. Formavam par a censura e a delícia.
Nesse acalanto de muitas vozes, adormeci, quase alvorecendo.
Espertava-me um raio de sol. Lambia-me o rosto sempre à hora exata uma língua tépida de luz.
Quis parecer nem bem decorridos cinco minutos desde que o sono me viera buscar, furtando-me a fantasia do colo de Veridiana!
Da cozinha, o grito da chaleira não deixou um último afago.
A velha ama servia café preto, cuscuz e bolo de fubá.
Aprazia-me aquele instante do dia.
O prato com migalhas, à cabeceira, denotava o rápido desjejum do marido. Era grato por não privar com ele das primeiras horas. Somente saía do quarto, tendo ouvido seus passos pesados ao largo, em caminho da rua.
Habituei-me a uma rotina de relojoeiro. Dir-se-ia possível precisar o tempo na constância dos menores eventos da casa.
Já à mesa, fingia quente o café. Demorava-me com propósito.
E o mesmo sorriso da véspera vinha andando pelo corredor. - Não. Não o mesmo. A noite juntara algo mais que ternura a seus lábios.
Baixei os olhos, acanhado. Lembrei-me da reação, pouco antes, suscitada apenas pelo olfato.
Avizinhando-se, soergueu-me o queixo delicadamente, o olor de pêssego.
- Não fique assim, anjo!
"Não fique assim?" - Então... ela notou! - pensava, a idéia fixa.
- São horas, D. Veridiana! Perdoe-me. Corro, senão me atraso!
Suspenso, cheguei ao Preparatório sem dar por mim ou pelo trajeto.
Não me aproveitou uma só aula. Articulavam-se as bocas dos mestres. Gesticulavam. Demonstravam ao quadro negro um cabedal de fórmulas, máximas e sentenças. - Estava algures. Algures permaneci, onde ninguém me pudesse supor. Sequer eu me supunha!
À tarde, debruçado na escrivaninha, debalde cuidava do que nos livros ia. Folheava, seguindo, vindo, sem acertar com juízo ou entendimento.
Bateram. Desentorpeci-me.
Guardasse silêncio, bateram uma vez mais.
Não usando fechar-me a chave, notei suave moverem a maçaneta. O perfume prenunciara a visita. E Veridiana deslizou para o interior. Trazia suco e biscoitos.
- Imaginei que estivesse com fome. Vamos, vamos! Uma pequenina pausa nas lições. Coma só um pouco. Fui eu quem fez os biscoitinhos!
Depôs a bandeja sobre os livros e sentou-se na cama.
- Só saio daqui, depois de você comer!
Considerava as grandes meninas negras se me pregarem. Ora tinham um brilho singular. Ofuscavam-me.
Mastigava e bebia a um tempo, reflexo.
- Bom acabar com isso! Sua mãe não tratava de você? - ante o róseo de minhas bochechas.
Mal finda a merenda: - Venha cá!
Obedeci.
Apanhou-me uma mão entre as suas. Frêmito.
Perscrutava os cantos, a janela, a porta.
Volta a derramar suas meninas. Desta, em meu busto nu.
Inspira.
- Sinto-me sozinha, aqui. Fiquei feliz quando soube que viria. Meus filhos... tem cada um suas preocupações, esquecidos de mim. Dias inteiros passam... Sem me dar conta, eu também passo. Ninguém me vem ver... A ninguém vejo. Os céus, agora, me ofertaram cuidar de você. Deixa? Seja um filho ou, pelo menos, amigo. Não se assuste...
Nunca a ouvira dessa maneira, meio prece, desafogo.
E prosseguia, palavra a palavra sentida, regurgitada - nacos indigestos duma vida de contrafeita doação.
Não lhe puderam, entretanto, minar doçura e força. Sob o manto vestal trazia mistérios de mulher e de virgem pastora, esperando quem lhes elucidasse.
Acompanhei uma única lágrima abrir vereda, roçar seu nariz delgado e ir morrer-lhe nos lábios. Por um momento, fui tentado a apanhar nos meus próprios aquela lágrima erradia.
Como se fosse óbvio, abraçamo-nos, demoradamente. E, óbvios fossem, meus quinze anos bradaram, do front, a sua cantiga de guerra, o moral propício.
Cingidos qual estávamos, beijarmo-nos foi imediato e conseqüente.
Minha língua feroz esquadrinhava, dentro em morna boca, procurando a lágrima que se houvera perdido.
Naquele abraço estreito, parecia, nenhuma nesga se poderia abrir aos cuidados terrenos.
Beliscava-me os mamilos. Com a outra mão, esfregava-me vigorosamente das costas às coxas, entre as folgas da barra da bermuda.
Já lhe havia sacado um dos peitos, sugando-o, sôfrego, o botão carmesim.
- Sim, filhinho!
O portão da rua gemeu. O velho calcava pés no capacho da entrada...
De repente, repeliu-me com um empurrão: bati a cabeça no estrado.
Veridiana arranjou os braços em cruz e alçou fuga.
Permaneci deitado, atordoado com a pancada.
A voz malsonante do velho, na sala, rezingando qualquer coisa à ama, emurcheceu-me.
2007, 11 Mar
(continua)