A PRIMA QUE VEIO DE LONGE

Estavam todos reunidos na varanda larga da casa grande, construída no cimo da colina, de onde a vista não se cansava de contemplar a paisagem que variava de cor com a passagem dos dias do ano.

Nos meses de seca os tons de cinza a prateado e nos meses chuvosos, exibiam-se todas as cores do arco iris na profusão de folhas, flores, besouros e borboletas a volutear pela plantação.

Neste dia de festa, os conhecidos e a família estavam reunidos por causa da chegada da prima-irmã, nascida em Minas Gerais e que tinha vindo para conhecer os avós, os tios e primos, cujas histórias de vida, ela sabia de cor de tantas vezes que ouvira do pai que deixara Pernambuco para tentar a vida num local onde as chuvas nem sempre frustram as colheitas.

Eram caras conhecidas pela troca de fotografias, mas que pessoalmente eram bem diferentes por conta do mal trato da lida, faltavam as roupas dos dias de festa, mas a felicidade estava estampada nos sorrisos, que deixavam entrever as dentaduras falhadas, quando a prima falava com aquele sotaque diferente, melodioso, onde as frases muitas vezes são aglutinadas numa única palavra, que só os Mineiros sabem pronunciar, principalmente quando estão a contar os causos, nos mínimos detalhes.

Antes dessa data, numa verdadeira operação de guerra, todos os cantos da fazenda foram, literalmente, revirados, para que tudo ficasse de acordo com os gostos da tia Maria que, depois de muitos anos, iria rever a sobrinha e afilhada, nascida e criada bem pertinho da nascente do Rio São Francisco, no pé da Serra da Canastra.

Batista, Celeste, as crianças, até Marcolino teve que deixar o bilhar de Tota Medrado entregue às baratas para poder dar conta da trabalheira, mas enfim, Mariazinha chegou.

Chegou cansada da viagem, já no finzinho da tarde e, depois dos abraços, foi trazida para a fazenda onde a tia Maria tinha preparado o quarto de hóspedes.

Tinha até rosas naturais que dona Sebastiana colheu e colocou num vaso de porcelana chinesa, que só era utilizado nas grandes ocasiões.

Mariazinha foi apresentada a, praticamente, todos os conhecidos e, neste dia depois do café da manhã, sentados na varanda, dona Sebastiana contou a Mariazinha o caso do menino que nascera com todos os dentes e que tinha falado no final do batizado. (ver U MININO DI LIA, publicado em 05.09.11 sob número T3202862)

Como um causo puxa outro, Mariazinha contou o da mulher que também teve um filho que já nasceu com dentes.

Foi assim:

Oia minha gente, isso qu’eu vô contá num é mintira não, é trem aconticido lá pas banda do Disimboque, pros lado do Quenta Soli, pirtim da Matinha.

Fico ripiada só de alembrá, mode que ieu cheguei a cunhecê a Donana, o marido dela, o Zé Lionço e a fiarada qui os dois tinha.

O Zé Lionço era munto amigo do meu Vô Lizeu, inté pegava no eito junto.

Os doi num injeitava sirviço, vivia roçano pasto e capinano os miaral do Só Tidumiro, dono da fazenda qui os doi morava.

Pudia tá choveno caninvete qui ês num perdia dia di serviço.

- Ô mulé, conta logo esse causo qui ieu já tô cum farnizim! (disse dona Sebastiana, para ver se acelerava o causo, porque Mariazinha falava com toda a mansidão mineira)

- I u qui foi qui se assucedeu cum essa famia, essa minina? (perguntou Comadre Liu que desde que chegara, não tirava os olhos de Mariazinha).

-Faiz munto tempo e o assunto inda tá na boca do povo.

Zé Lionço mantinha a Donana in casa. Já tinha reparado nos zoião do patrão pra riba da sua muié, mode quê ela era uma muiézinha munto ajeitadinha, ele cunhicia o patrão Tidumiro, sabia o mato que tava lenhano.

Mas cum a muié dele, o patrão pudia tirá o cavalim da chuva. Se bem qui a Donana, nunca deu trela pra ninguém, só tinha zoios pr’ele.

Mais o pió é qui os Zé Lionço um dia, dibaxo do solão quente do mei dia, bateu as butina, abutuô o palitó.

Dissero qui foi di repente, é capaiz qui ele era chagado, morreu novim, coitado. Donana ficô viúva e suzinha mais a meninada pa cabá de criá.

Tidumiro intão pruveitô pá botá as asinhas de fora, pagô as dispesa do interro, inté compro terno novim pru Zé Lionço imbora pra urtima morada. No que Donana ficou por dimais agradicida.

Desse dia in diante o Tidumiro, cumeçô rudiá a casa da Donana. Falô pr’ela qui tinha jurado pru Zé Lionço qui ia zelá da famia, in farta dele.

E o tempo foi passano e tem um ditado qui diz que água mole in pedra dura, tanto bate até qui...

- Inté qui fura. E fura mêmo.

(Disse dona Sebastiana que estava sentada no chão, ralando as espigas de milho que tinham sido colhidas por Batista e as crianças e que desde cedo tinham ficado no balaio, na ponta da varanda.)

- Poisintão um dia o povo botou reparo que a barriga da Donana tava inchada. Si num fosse doença, intão ela tava é de modas. E naquela roça ninguém atinava quem era o pai.

Donana já quais nos dia de aduecê pá ganhá minino, tava arriano cas carga, sua dispensa vazia, os fio cum fome, tudo à mingua. E o benfeitor qui tinha jurado cabá de criá os fio do Zé Lionço, tinha sumido quando sôbe qui ela tava isperano minino.

Os vizinho da Donana quiria aqui ela contasse quem era o pai da criança. Uai, sô. Ele tinha qui assumi, a pobre viúva num tinha feito suzinha.

- É veidade...

- E tanto perguntaro qui a Donana ficô apurada. O patrão tinha mandado ela dizê qui o pai era o Tião do Tonho, mais ela num pudia fazê isso, onde é qui já si viu? Papagaio come mio e o piriquito leva a fama?

- Como de fato é mêmo, num pudia dizê não.

- Donana acabô contano...O pai era o Sô Tidumiro, homi casado e pai de famia, antigo patrão do Zé Lionço, seu finado marido.

A nutiça correu e foi um deus nos acuda.

Quando chegaro o homi no cantão, ele negô tudo! Era a palavra dele, um fazendero rico contra a palavra duma viuvinha infeliz e cheia de fio e de dívida.

Incantuada, Donana jurava de pé junto qui o fio era do patrão, nunca tivera outro além dele adispois qui o marido morreu.

Só sei qui o home si negô a assumi o fio e pocos dia iantes do parto a Donana chamô o fazendeiro, a muié dele, as cumadi, os cumpadi e oiano pru céu falô:

-Ieu juro pru Deus e pur essa luiz qui mi alumia... Esse minino qui tá quais nasceno é fio do Tidumiro.

O fazendêro ficô apurado e tamém feiz seu juramento.

Ieu juro qui num sô pai dessa criança...Si ieu tivé mintino, quero qui esse minino ô minina nasça já cum os dente na boca si rino pra mim.

Pocos dia dispois a criança nasceu, perrenguinha, mais iscapô. Donana morreu no parto, dexano a filharada órfã de pai e mãe.

Houve um falatório ali na roça, todo mundo qui ia vê a criança saía abismado. A nutiça chegô até o Tidumiro qui foi até a casa da partêra qui, in farta da mãe, tava zelano da criança.

Entrô casa adentro e a muié acenô aonde tava a cama do minino. O fazendêro quais qui morre de susto quando viu naquele rostin miudinho e rosado, dois zoinho azuli qui nem os dele e uma boquinha aberta cum de quatro dentin si rindo pr’ele.

Quando Mariazinha terminou de contar o causo, comadre Liu, que tinha vindo ver a mulher que falava diferente e que tinha vindo de longe, com a cara de admiração, perguntou:

- Ô mia fia, lá adonde voimecê mora, ainda é Brasí?

Glossário:

Chagado = portador de doença de Chagas.

Ficô apurada = em apuros

Incantuada= sem saída

Perrenguinha= doentinha

Farnizim = frenesí

Este texto foi produzido em co-autoria com a nossa consóror MARIA MINEIRA, cuja participação me encheu de satisfação e orgulho por ter a subida honra de ver em minha página um texto de sua autoria, produzido em Mineirês.

À Maria (minha irmãzinha) Mineira, o meu muito obrigado.