O PREFEITO PERFEITO

José Barbosa Vermont, o Zé Montinho, como era conhecido na pequena cidade de São Luiz no interior de Minas Gerais, tem uma história um tanto quanto curiosa.

Aos doze anos já pintava lindas figuras com seu lápis pequenino de tanto apontar um lado e roer o outro. Fazia desenhos diferenciados das crianças de sua idade. Também vivia a pintar com pedaços de tijolo, pela única rua asfaltada da cidade. As meninas sempre o chamavam para pintar a amarelinha, devido à perfeição e igualdade no tamanho das casas e até o céu e o inferno ficavam enfeitados com anjinhos e capetinhas ilustrados de maneira perfeita quando Zé Montinho estava mais inspirado.

Zé Montinho não era muito de estudar, mas gostava de chegar à aula mais cedo para faze desenhos no quadro-negro. Sempre trazia um desenho para presentear a professora; Nas provas não era lá muito bom, principalmente em matemática e língua portuguesa, mas em educação artística era sempre o melhor da turma.

O tempo passou, Zé Montinho agora estava com dezessete anos, se tornara um rapaz calado, amargurado, não tinha amigos nem mesmo no novo trabalho obtido através da influencia de um tio que era funcionário publico. Trabalhava na prefeitura como auxiliar de escritório. Tinha como atividades, fazer planilhas de menor importância, ir a única agência bancária da cidade, fazia entregas, além de outras pequenas tarefas que seu tio Pedro Antunes Vermont – assessor direto do prefeito – o confiava. Alguns diziam que Zé Montinho havia sofrido muito com o amor não correspondido da filha do prefeito, daí sua amargura, outros diziam que era devido à morte do pai, uma tragédia sem explicação - durante a construção da casa seo José Vermont caiu da laje, bem em cima da grade de lanças do portão.

Os dias eram sempre iguais, Zé Montinho nem bem chegava do trabalho e trancava-se no quarto, passava horas desenhando coisas estranhas, monstros, demônios, animais com rosto de homem, homens com rosto de animais, estrelas, sol, lua, pessoas desconhecidas. Mas sempre uma mulher com cara de demônio e um anjo apareciam em todos os seus desenhos.

Zé Montinho por várias vezes não saia do quarto nem mesmo para jantar, apesar da insistência da mãe. No trabalho vivia a fazer seus misteriosos desenhos, Foram várias às vezes em que seu tio o pegava rabiscando os tais desenhos e sempre o alertava sobre o prefeito que poderia apanhá-lo, caso isso acontecesse, seu emprego estaria perdido, pois o doutor Antônio Carlos Maranhão – o prefeito – já não gostava muito do garoto e qualquer motivo seria grave o bastante para dispensá-lo. Zé Montinho parecia não se importar, na verdade parecia nem ouvir o aviso do tio, que ficava ainda mais irritado com a falta de atenção do sobrinho. Por causa dos desenhos estranhos, os funcionários da prefeitura começaram a espalhar o boato de que o rapaz estava possuído pelo demônio e em pouco tempo toda a pequena cidade já comentava sobre as histórias do moço possuído. As pessoas afastaram-se ainda mais, até mesmo os parentes já evitavam o contato, apenas sua mãe insistia para que ele parasse com os malditos desenhos, mas era em vão, Zé Montinho nada dizia, trancava-se no quarto e só saia no dia seguinte para trabalhar.

Quando completou dezoito anos, sua mãe resolveu fazer uma festa na tentativa de animar o filho, apesar de convidar quase toda a cidade, pouca gente compareceu, apenas o padre Antunes, Carlos Carrasco – o dono da venda – que levou a família, apesar dos protestos da esposa e da filha, e dois amigos de infância. Já a família resolveu colaborar e foram todos, até tio Roberto que há dez anos não visitava a cidade natal, chegou de São Paulo, contou as histórias da cidade grande, e gabava-se o tempo todo por ter conseguido fazer a vida em São Paulo, tinha dois carros novos, casa, sitio e um ótimo emprego na prefeitura de São Paulo, que seu irmão Pedro insistia em debochar dizendo ser um assessor muito mais honesto, pois na cidade pequena a dignidade ainda valia alguma coisa, os dois discutiam por horas a fio, mas concordavam que a família tinha lá suas convergência para política, apesar de serem os dois assessores em suas cidades achavam-se tão ou mais importantes que seus respectivos prefeitos. Todos estavam cansados de ver os irmãos contando vantagens e falando sobre dinheiro, bens e um monte de outras coisas que não interessavam a ninguém, só Zé Montinho os escutava atentamente, e era a única pessoa que vez ou outra proferia alguns palpites. Quando alguém se aproximava curioso para saber o que estavam falando Zé Montinho calava-se, e só voltava a falar quando os deixavam a sós.

Depois do parabéns que Zé Montinho recusou-se a cantar assim como recusou também soprar as velinhas, recolheu-se ao quarto e só saiu de lá no domingo ao meio-dia. Almoçaram todos juntos, menos Zé Montinho que pegou seu prato e foi comer no chão da varanda. Ás três horas da tarde tio Roberto, anunciou que estava na hora de partir, mas antes gostaria de fazer um convite ao sobrinho:

- José Montinho, meu garoto – fez uma longa pausa para que todos prestassem atenção as suas palavras – Quero convidá-lo a vir comigo para São Paulo, estou disposto a pagar uma boa faculdade e encaminhá-lo num bom emprego, depois você poderá decidir se volta para esse fim de mundo ou se fica em São Paulo, durante o tempo em que estiver estudando você poderá morar comigo, minha casa é grande e moro sozinho apenas com Maria, minha empregada. Você terá todo o conforto e até um quarto só seu.

O garoto aceitou antes mesmo que sua mãe manifestasse alguma opinião, mesmo assim dona Zélia Vermont tentou evitar:

- Zezinho meu filho, é melhor você pensar bem, quem sabe não seria melhor pedir um tempo para decidir e ai se realmente for isso o que você escolher seu tio manda buscá-lo. Você não pode me deixar aqui sozinha meu querido.

Zé Montinho não disse nada, entrou no quarto arrumou a mala e voltou dizendo ao tio que estava pronto para partir. A mãe chorava, mas ao mesmo tempo sentia alguma alegria, pois nos últimos anos nunca virá o filho tão animado.

Tomaram o ônibus com destino a Belo Horizonte, foram duas horas de viagem, mais uma hora de avião até São Paulo. Zé Montinho ficou maravilhado com a viagem não falava nada, apenas admirava pela pequena janela a paisagem que via lá em baixo.

A promessa do tio foi cumprida. Zé Montinho cursava faculdade de direito, e sempre que possível continuava fazendo seus estranhos desenhos.

Na faculdade Zé Montinho ganhara vários apelidos, os amigos de classe o chamavam de esquizofrênico, maníaco, doido, etc... Ele não falava com ninguém, nem mesmo com os professores, porém suas notas eram excelentes, as melhores da turma.

No final do curso, logo após a formatura a turma resolveu fazer uma festa de encerramento, alugaram um sitio no interior de São Paulo e após dias de insistência dos colegas, Zé Montinho resolveu aceitar o convite e participar da festa. Todos poderiam levar um acompanhante. Zé Montinho convidou tio Roberto, que logo recusou explicando ter compromissos no trabalho. Ele telefonou para a mãe dizendo que gostaria muito de poder levá-la a festa, convenceu tio Roberto a emprestar-lhe o dinheiro e comprou as passagens para que dona Zélia viesse a São Paulo.

Durante a festa Zé Montinho parecia outra pessoa, conversava com os amigos de classe, apresentou a mãe a Marlene uma garota a quem o rapaz tratava com todo carinho. Na verdade era apaixonado por ela, mas não tinha coragem de declara seu amor. A moça já havia percebido, e era uma das poucas pessoas da turma a tratá-lo com igualdade. Na festa era só alegria, todos esqueceram os apelidos e piadas e conversavam alegremente com Zé Montinho, que contou empolgado sua vontade de seguir carreira política em sua cidade natal.

No final da festa Zé Montinho pediu à mãe que o esperasse próximo a saída do sitio, estava muito feliz, após cinco anos de faculdade conseguira convidar Marlene a dar uma volta pelo sitio, seguiram de mãos dadas em direção ao pomar, foram até a cachoeira, durante o caminho Zé Montinho deixou a timidez de lado e falou sobre sua admiração por Marlene, pediu-a em namoro, beijaram-se, ficaram abraçados olhando a beira do abismo, à queda d’ água.

Minutos depois Zé Montinho voltou assustado ao local combinado para que todos se encontrassem no horário marcado para volta. Não disse nada, pegou a mãe pelo braço e entrou no ônibus, parecia desesperado, assustado. Foram mais de quarenta minutos até reunirem todas as pessoas. O primeiro ônibus partiu, o segundo saiu em seguida, apenas o ônibus de Zé Montinho ainda aguardava uma passageira, Marlene era a única a não embarcar no ônibus, procuraram-na por toda à parte, foram horas de busca e nada, seu irmão Nelson que estava na festa como seu acompanhante ligou para os pais que chegaram ao local depois de duas horas e nada da garota, chamaram a policia, as buscas continuaram durante toda à noite. Enquanto aguardavam no ônibus, Zé Montinho pôs-se a desenhar seus estranhos personagens numa folha de papel. Às seis horas da manhã encontraram o corpo de Marlene boiando nas águas do lago onde deságua a cachoeira.

Todos foram levados à delegacia para prestar depoimento, Zé Montinho estava aparentemente nervoso, toda a turma chocada com o acontecimento, os pais de Marlene não se conformavam com o acontecido. A policia prometeu uma investigação minuciosa. As pessoas só foram liberadas no final da noite do Domingo. Após a liberação dada pelo delegado, Zé Montinho pareceu mais aliviado, conversou com a mãe e o tio, e na manhã seguinte levou sua mãe até a rodoviária. Dona Zélia estava chocada. Não fazia perguntas, apenas o olhava de maneira fria e desconfiada, parecia temer o próprio filho.

*****

Dois anos se passaram desde o dia da festa no sitio, tio Roberto havia conseguido um emprego para Zé Montinho na prefeitura e mais uma vez cumprira sua promessa. O rapaz parecia contente com o novo trabalho, ganhava mais do que sonhará ganhar um dia, e durante a noite entrou para um curso de pintura na Escola de Artes de São Paulo.

Num sábado pela manhã Zé Montinho comentou ao tio que completará um ano e meio de serviço e estava disposto a pegar suas férias, queria visitar a mãe no interior de Minas Gerais. Tio Roberto manifestou interesse em acompanhá-lo, disse ao rapaz que poderiam combinar uma data para a viagem, e foi o que fizeram. Um mês depois os dois embarcavam com destino a Belo Horizonte, dessa vez Zé Montinho pagou orgulhosamente as passagens aéreas, disse ao tio estar pagando o favor de emprestar-lhe o dinheiro para trazer sua mãe há dois, na festa de formatura da faculdade.

Na cidade de São Luiz pouca coisa havia mudado, e em sua antiga casa nada mudou, as paredes ainda em reboco por terminar, sem pintura, um pequeno monte de areia cercado por blocos de barro na frente da casa estava lá há anos. Por alguns instantes ficou hipnotizado pelo montinho de areia e lembrou vagamente que estava ali no mesmo lugar antes da morte de seu pai, havia diminuído bastante com o passar dos anos, talvez pela água das chuvas. A areia seria usada para terminar a obra que sua mãe nunca conseguiu concluir após a morte do marido. Imediatamente seus pensamentos o levaram para cima da laje, onde ainda criança via o corpo do pai caindo, próximo aquele monte areia, rapidamente tentou esquecer aquelas lembranças terríveis do passado, entrando na casa.

Jantaram juntos e conversaram sobre o novo trabalho do rapaz. No dia seguinte muita gente apareceu para visitar Zé Montinho, já não o tratavam como antigamente, por meio de sua mãe toda a cidade já sabia se tratar do doutor Zé Montinho, excelente aluno na faculdade em São Paulo e atual funcionário da prefeitura. Zé Montinho não tinha paz, todos queriam conversar, fazer perguntas, elogiar suas roupas, seu jeito de falar, até o prefeito doutor Antônio Carlos – que havia sido reeleito talvez por falta de candidatos - foi cumprimentar o rapaz e fez questão de dizer que sua filha também estava cursando o ultimo ano da faculdade de administração em Belo Horizonte e tão logo terminaria, voltaria à cidade.

Já estavam na cidade há uma semana, Tio Roberto comentou sobre sua necessidade de voltar a São Paulo, Zé Montinho também resolveu voltar. No dia marcado para a partida Zé Montinho recebeu novamente a visita do prefeito, mas dessa vez doutor Antônio Carlos disse precisar falar a sós com o rapaz. Durante a conversa o prefeito explicou que teriam novamente eleições municipais no final do ano e dessa vez ele não poderia concorrer por isso convidou Zé Montinho a sair como candidato por seu partido:

- Aceite rapaz, apresento você como candidato por nosso partido como meu sucessor, você está preparado, o povo dessa cidade lhe admira. Temos apenas dois vereadores que tremem só em me ver, já acertei com todos os candidatos a vereadores, estando você eleito em nossa chapa poderemos fazer muito pelo bem de nossa cidade e claro pelo nosso bem também. Todos aqui já sabem que você é funcionário da prefeitura de São Paulo, formado numa das faculdades mais renomadas do país, antigo morador de nossa humilde cidade, rapaz honesto, de família. Vai ser eleito com certeza. Basta você aceitar – O prefeito falava empolgado, quase como num discurso, de maneira tão convincente que parecia poder prever o futuro.

Zé Montinho pediu um tempo para pensar. Voltou para São Paulo, e dois dias depois telefonou para doutor Antônio Carlos dizendo aceitar o convite. A campanha começou a todo vapor, as despesas eram pagas por colaboradores do atual prefeito, eram empresários que Zé Montinho nunca conheceu, apesar de sua insistência em agradecer pessoalmente as doações Antônio Carlos dizia serem pessoas muito ocupadas e não tinham tempo para recebê-los. O prefeito insistia que era melhor assim, pois essas pessoas só ajudavam na expectativa de receber benefícios e não era necessário conhecê-los agora, mas com toda a certeza em breve os conheceriam, principalmente se fosse eleito.

As eleições chegaram e Zé Montinho ganhou. Logo no inicio de seu mandato organizou mutirões para construção de casas populares, construiu uma creche que além de cuidar de crianças cujas mães trabalhavam, ainda empregou dezenas de pessoas, reformou a escola, ampliou o hospital, plantou arvores pela cidade, limpou a praça, ajudou os trabalhadores rurais da região organizando uma cooperativa, trouxe pequenas empresas para região, gerou emprego para todos os moradores da cidade e até de pequenas cidades vizinhas, tornou-se querido na região e por onde passava era ovacionado, todos queriam cumprimentar o prefeito que mais fez pela pequena São Luiz. Para aqueles moradores o prefeito Zé Montinho era mais importante que o presidente da república.

Durante os quatro anos de mandato, Zé Montinho tornou-se unanimidade. Com toda essa popularidade não poderia ser diferente, o prefeito Antônio Carlos convenceu Zé Montinho a tentar a reeleição, seria fácil ganhar novamente, tamanha a popularidade e estima do rapaz. E não deu outra, Zé Montinho ganhou disparado. O prefeito mais jovem da história de São Luiz acabava de ser reeleito. Foi uma festa na cidade, com direito a desfile no único carro de bombeiros da região, até mesmo seu oponente parecia admirá-lo.

Sua fama correu por toda a região e chegou até Belo Horizonte, por várias vezes foi elogiado pelo governador do estado, que pela primeira vez visitou a cidade para apoiar Zé Montinho num projeto de asfaltar a estrada que ligava a pequena São Luiz a estrada principal, eram oito quilômetros de terra que em breve estariam asfaltados, Zé Montinho era o homem do progresso.

Clarice a filho do ex-prefeito Antônio Carlos voltou para visitar os pais e dizia estar disposta a ficar um tempo na cidade. Zé Montinho foi convidado para um jantar na casa do ex-prefeito e atual presidente de seu partido. Antônio Carlos que deixava transparecer abertamente sua pretensão de aproximar o rapaz da filha, só faltou empurrá-la para seus braços, reservou lugares adjacentes à mesa para ambos, iniciava conversas e os deixava a sós propositalmente, mas Zé Montinho não tinha o mesmo interesse pela moça, porém conversavam entusiasmados como bons amigos de infância sobre faculdade, trabalho e até lembranças dos tempos de criança.

Antônio Carlos insistiu para que Zé Montinho voltasse no fim de semana, e insinuou para que convidasse sua filha para um passeio. Zé Montinho tentou esquivar-se, mas Clarice docemente convenceu-o de que seria interessante e quebraria um pouco a rotina do atual prefeito. Marcaram para o sábado um almoço num restaurante de uma cidade vizinha, pois em São Luiz Zé Montinho era o prefeito celebridade, não tinha sossego para caminhar pelas ruas, todos queriam tocá-lo, conversar ou ao menos admirá-lo passar, o que já o incomodava, pois muitas daquelas pessoas eram as crianças da sua idade que o importunavam com apelidos idiotas durante a infância, pensava nisso sempre, mas no fundo sabia que não era esse o real motivo de sua perturbação, não sabia exatamente o que o perturbava, mas sentia como se devesse algo a todas aquelas pessoas.

Sábado no horário marcado Zé Montinho chegou à casa de Clarice, não fez cerimônias ao ser atendido por Antônio Carlos:

- Clarice já está pronta?

- Sim! Mas entre um pouco meu rapaz!

- Não obrigado, prefiro esperá-la aqui, já esta ficando tarde!

- Ora não precisa ter pressa rapaz! Além de serem adultos, amanhã é domingo não tem expediente e sei que você é um rapaz honesto e goza de minha total confiança, se quiserem não há necessidade de voltarem hoje, dirigir por essas estradas durante a noite? Se achar por bem volte amanhã, confio plenamente minha filha à sua companhia.

Clarice apareceu na porta, estava linda. Um vestido azul com um decote que apesar de discreto era muito sensual, marcando suas belas curvas. Zé Montinho a admirou por alguns segundos. Saíram sem muito conversar, neste instante o pai da moça parecia não existir ou como se fosse apenas um adorno parado a porta, nem se despediram.

Percorreram a estrada rumo a Santa Fé do Oeste cidade situada a trinta quilômetros da pequena São Luiz e conhecida como estância turística na região. Almoçaram juntos, passearam pelas cachoeiras, andaram nas trilhas que levava a grande pedra, conhecida como o Pico das Nuvens, estavam a 2.100m de altitude, um dos pontos mais altos do país, literalmente a altura das nuvens, talvez por isso o sugestivo nome. No momento em que admiravam a cidade que lá de cima parecia muito menor, um instante de silencio, ambos perceberam que não mais admiravam a paisagem mais sim um ao outro, e ao compreenderem o que estavam sentindo, uma mistura de liberdade, admiração, paixão e desejo, aconteceu quase involuntariamente o beijo, demorado, compassivo próspero, iniciou-se tão espontâneo que não sabiam como terminá-lo, a sensação era maravilhosa, e pensavam em como reagiriam ao cessarem, talvez por esse motivo se tornou ainda mais demorado, parecia infinito.

Ao voltarem para casa Zé Montinho e Clarice assumiram um namoro sério, a garota já era considerada por todos a primeira dama da cidade. O namoro tornou-se firme, Zé Montinho dividia-se entre os compromissos da prefeitura, a noiva e as visitas esporádicas à mãe, pois havia se mudado para uma pequena casa nos fundos da prefeitura. Muita gente da cidade via aquilo como um gesto de humildade, outros diziam que o prefeito queria apenas aparecer ainda mais, demonstrando desprendimento de bens materiais, como ter uma bela casa, por exemplo. Mas Zé Montinho optara somente pela comodidade, gostava de estar perto do local de trabalho, e dessa maneira não precisava andar pelas ruas da cidade para se deslocar até a prefeitura. Também achava a casa da mãe muito monótona e vazia, definitivamente não gostaria de voltar pra lá.

A vida transcorria tranqüilamente na pequena São Luiz, o prefeito continuava sua saga de bom político e vivia a arranjar obras que ajudavam o povo, principalmente os mais carentes, o namoro também andava de vento em poupa, apenas sua mãe parecia descontente, envelhecerá, estava mais chata, reclamava mais, alguns diziam que era falta do filho, outros diziam que a velha enlouquecera, mas na verdade dona Zélia parecia uma pessoa amargurada e insegura.

Os meses se passaram e o dia do casamento fora marcado, Antônio Carlos era só alegria, já via o genro como o futuro deputado estadual, depois federal, e um dia, quem sabe, presidente da republica.

O dia tão esperado chegou, a igreja enfeitada, a cidade em festa, o prefeito perfeito - como ficara conhecido - finalmente se casaria. Naquele dia Zé Montinho parecia indiferente não saiu de casa, tomou o papel e lápis e passou a rabiscar alguns desenhos, o diabo com cara de mulher aparecera novamente, também o anjo, assim como céu azul dos desenhos no passado. Amassou os desenhos, tomou seu banho, arrumou-se com o belo terno bem cortado feito por um renomado alfaiate da capital, colocou a gravata e rumou para igreja a pé, sendo cumprimentado por todos que por ele passavam. Entrou, postou-se ao altar, os sinos anunciaram a chegada da noiva, ela estava linda, entrou sob o tradicional som da marcha nupcial acompanhada do pai, todos os convidados à postos, a igreja estava lotada, havia gente do lado de fora, a cerimônia foi linda, ao final do casamento os noivos saíram da igreja ao banho de arroz que eram arremessados pelos convidados na escadaria.

Zé Montinho precisava passar em casa para pegar a mala já arrumada a mais de uma semana, pronta, esperando aquele momento. Sentiu uma emoção grande pelo acontecimento mais importante de sua vida, ao mesmo tempo sentia uma tristeza enorme pela ausência da mãe na igreja. Dona Zélia havia desaparecido vinte quatro horas antes da cerimônia, ninguém sabia de seu paradeiro, a casa estava vazia, nem sinal da mãe do prefeito que simplesmente sumira sem deixar qualquer recado.

Os noivos chegaram a prefeitura uma hora depois da cerimônia, Zé Montinho desceu do carro, apanhou a mala e rumaram a estrada; A lua-de-mel estava programada, seria em Fortaleza, uma semana de férias na capital Cearense, Zé Montinho já havia programado tudo, o vice-prefeito assumiria com todas as coordenadas deixadas por ele. Deixariam o carro no estacionamento do aeroporto de Belo Horizonte e pegariam na volta, afinal ele era o prefeito mais conhecido do estado e não pagaria pela estadia do carro.

A noite caia quando Zé Montinho e sua esposa deixavam a rua principal da cidade para entrar na pequena estrada de São Luiz - agora asfaltada - quando depararam com um vulto que praticamente se jogou do mato a poucos metros do carro, uma pessoa vestida de branco com um capuz marrom de formato estranho, algo que não se podia definir como uma touca ou um lenço. Zé Montinho freou bruscamente até parar o carro a milímetros de distancia daquela criatura bizarra, o motor do carro morreu e a pessoa aproximou-se da janela de Clarice, só então puderam observar se tratar de uma mulher, ambos abriram a porta na expectativa de ajudar aquela senhora provavelmente ferida e abandonada na estrada, ao descerem do carro a mulher introduziu uma faca no abdômen de Clarice, retirou-o e deferiu mais cinco vezes a faca na barriga da mulher, Zé Montinho ainda tentou salvá-la, mas foi em vão, apenas consegui segurar Clarice antes que ela pudesse dar o ultimo suspiro em seus braços. Zé Montinho virou-se para aquela criatura a sua frente, que imediatamente descobriu-se do capuz fazendo com que o prefeito pudesse olhar em seus olhos; A face de sua mãe parecia uma mistura de medo e prazer, sorria como uma demente ao mesmo tempo em que chorava como uma criança assustada. Zé Montinho não se movia, não sabia o que fazer. Lembrou-se do pai caído junto ao monte de areia, do corpo de Marlene boiando no lago. Dona Zélia enrolou a faca no estranho capuz e jogou no chão, depois saiu andando pela estrada em direção a cidade, sem correr, sem olhar para trás, até sumir... Imediatamente Zé Montinho apanhou a faca e o capuz, guardou no porta-malas do carro e voltou para sua casa, deixando o corpo da esposa a beira da estrada.

Ao chegar em casa tentava de toda forma conter o choro, pegou lápis e papel, e começou a desenhar, os desenhos vinham a sua cabeça de forma clara, anjo e demônio tinham rostos conhecidos.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 14/03/2007
Reeditado em 27/03/2007
Código do texto: T412616
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