VOZES

Na gráfica onde trabalhava André, ninguém desconfiava de seu problema. O médico havia prescrito alguns remédios tarja preta, e proibido definitivamente a bebida. Os remédios ele comprara, e seguia a posologia corretamente, já a proibição das bebidas era-lhe algo irrelevante.

Durante o expediente tudo parecia normal, sua esquizofrenia, que descobrira há quinze anos atrás, quando ainda era um jovem com vinte de idade, não atrapalhava em nada suas obrigações, ele fazia daquela revista sua contribuição para o mundo. Sentia-se muito mais importante naquele processo, que os próprios escritores ou o redator. Se não fosse por seu trabalho de controle de qualidade nada sairia direito. Era ele quem verificava folha por folha a montagem dos cadernos em forma de revista. E qualquer erro era vetado, uma folha suja, uma foto fora de registro, uma pequena mancha de impressão, por menor que fosse, não passavam pelo seu controle de qualidade.

Das seis da manhã ás duas da tarde André tinha certeza de que tudo sairia bem, já ao seu sucessor de período não poderia garantir a mesma qualidade, afinal mal conhecia seu amigo de trabalho, assim como todos os outros funcionários, todos lhe pareciam loucos ou perturbados e por isso não conversava com ninguém. Era ele a pessoa mais importante da corporação, só com o seu trabalho poderiam continuar tendo todo o sucesso, e por isso achava melhor não se misturar com as outras pessoas, para não ser contaminado.

Desde que começou a ouvir vozes – principal motivo que o fez procurar o médico - André passou a se sentir um ser especial, afinal havia sido escolhido pelos Deuses para representá-los no mundo. No começo as ignorava, depois passou-lhes a dar mais ouvidos e até a questioná-las, discutir com elas, conseguindo chegar sempre num denominador comum. Realmente ele era o escolhido. Quase um Deus. Todos estavam enganados a respeito da vida e do mundo real, apenas ele tinha as respostas e um dia todos iriam conhecer a verdade.

Há duas semanas atrás as vozes lhe disseram que a gráfica não duraria muito tempo, fecharia as portas em breve. Claro que André não poderia divulgar tal noticia a seus companheiros de trabalho, mas as revelações estavam explicitas no dia a dia da empresa, cortes de funcionários, dificuldades financeiras, ele tinha certeza de que as vozes só poderiam estar certas, as provas estavam ali, bem a sua vista. Os diretores chegando com seus carrões, novos contratos sendo anunciados, tudo isso era pura aparência. De certo eles não queriam demonstrar suas dificuldades aos pobres funcionários, coitados, em breve estariam todos no olho da rua – pensava André – foi quando a voz lhe disse: - Não deixe que o sofrimento atinja essas pessoas e suas famílias. – Durante alguns dias André pensou sobre o que fazer, como resolver a situação daqueles mil duzentos e cinqüenta e três funcionários sem fazê-los sofrer tamanha decepção. Passava o restante das tardes a até a noite pensando em como ajudar aqueles trabalhadores e suas famílias. Ele era o escolhido, portanto, só a ele cabia resolver aquele problema, havia sido escolhido pelos deuses para tal tarefa. Tentou contato com as vozes para tentar uma sugestão ou ajuda, mas não tinha o poder de contatá-las, apenas elas podiam chamar por ele e iniciar as conversas.

Esperou durante dias que as vozes fizessem contato e nada, foi então que lembrou-se dos remédios, talvez eles fossem os culpados por calarem as vozes, percebeu que quando esquecia de tomar uma das três doses diárias ouvia as vozes com maior facilidade e clareza. Resolveu então abandonar os remédios por três dias. E constatou que sua tese estava correta, já no primeiro dia as vozes vieram soprar-lhe ao ouvido. E no segundo dia pode conhecer até outras vozes que debatiam sobre o assunto do fechamento da gráfica e qual providencia deveria ser tomada. Até então eram apenas duas vozes diferentes a conversar com André, uma que dava bons conselhos e outra que o deixava mais refletivo, que soltava as coisas no ar, para que ele próprio decidisse o que fazer, também era essa voz (mais grave e mais baixa) que mais o procurava, a outra aparecia vez ou outra, (mais aguda e alta, porém com uma certa ternura) se manifestava apenas para lhe mostrar outros pontos de vista, ou ajudá-lo a refletir melhor sobre uma ou outra decisão que normalmente já havia tomado. Não sabia porque, mas muitas vezes essa voz o fez mudar de idéia no último momento. Como no dia em que decidira por terminar o namoro com Jéssica, não foi assim à toa, não, havia um motivo, descobrira que ela estava interessada num outro rapaz que conhecera nas aulas de inglês. Como poderia ser tão maldosa, mesmo não sabendo que estavam namorando, ela não poderia fazer algo tão traiçoeiro. Trocá-lo por outro. A mais de um ano estavam namorando apenas com o conhecimento dele, é fato, mas em breve contaria a ela como eram felizes juntos, e agora ela estava andando pelas ruas ao lado de um garoto que mal conhecera.

Jéssica era vizinha de André, o cumprimentava todas as manhãs. Tinha tudo para ser sua esposa e agora estava prestes a jogar fora todos os planos que ele sonhara para o futuro dos dois. Foi então que a voz mais grave apareceu e lhe disse que deveria não só terminar o namoro, mais também matá-la.

Naquela manhã, André separou a faca maior dentre todas as que haviam no faqueiro de sua mãe, estava pouco usada, vez ou outra seu pai a pegava para cortar as costelas de boi para o churrasco, mas isso raramente acontecia, uma ou duas vezes por ano, no máximo. Decidira que a mataria as cinco da manhã, horário em que ela o cumprimentava todos os dias, quando ele saia para o trabalho e ela para a padaria a mando dos pais para comprar o pão fresco, depois seguia para escola, entrava todos os dias as sete, era o horário do ginásio. Jéssica tinha quatorze anos e estava na oitava série. Ele a seguiria por alguns metros e lhe apunhalaria pelas costas, não teria nem mesmo tempo para virar-se.

As cinco em ponto, Jéssica saiu, o cumprimentou com um bom dia sorridente, como de costume e seguiu adiante, André seguiu atrás, e quando estava a menos de um metro da vitima, com a faca em punho reluzindo a luz do sol que acabara de nascer, a voz aguda apareceu ainda mais tênue que de costume e lhe disse para não cometer aquele erro, pois a garota não merecia ser morta, deveria viver e namorar outros garotos, seria maior castigo viver sem ter André ao seu lado, viveria amarga para sempre por deixar escapar um homem tão bom quanto ele, sofreria mais nas mãos de outros que nunca a amariam como ele, diante disso, André pensou melhor e acabou concordando com a voz aguda. Nesses momentos a voz grave nunca aparecia no mesmo dia, e quando voltava não tocava mais no assunto, sempre trazia novos temas para serem discutidos.

No terceiro dia sem os remédios André entendia com total clareza o que as vozes diziam. Apenas a voz aguda, a dos bons conselhos não participava mais da conversa, havia desaparecido logo no final do primeiro dia de abstinência dos remédios, quando apareceu pela ultima vez tentava fazer com que André mudasse de idéia e voltasse a tomar os remédios, mas a voz grave gritou mais alto dessa vez, e logo tomou conta da conversa como oradora principal. Uma das mais de doze vozes que gritavam agora - todas ao mesmo - tempo sugeriu a André que se suicidasse como um alerta aos demais funcionários, outra voz, que parecia feminina, dizia que André deveria atear fogo ao prédio da gráfica durante a madrugada; Uma voz meio infantil pediu a André que ao invés de verificar os erros dos materiais impressos, piorasse um pouco mais, como rasgar algumas páginas, cuspir entre elas e até sujá-las com suas próprias fezes antes de liberá-las para serem entregues as lojas e livrarias, deste modo a gráfica teria sua falência decretada antes mesmo do previsto. Mas foi a voz grave, velha conhecida quem determinou o que deveria ser feito. Estava decidido. Todas as outras vozes se calaram, apenas a voz grave voltava de uma em uma hora para lembrá-lo do que fazer.

No dia seguinte André acordou mais cedo que de costume, as três da manhã, pegou a faca de churrasco, embrulho-a num pano de prato e guardou na mochila. Esperou até as cinco da manhã em frente ao portão, cumprimentou Jéssica como de costume e seguiu com ela para padaria, perguntou sobre as aulas de inglês, sobre seus pais, sobre o possível namorado que ela inocentemente confirmou ser verdade, mas confessou timidamente que ainda não estavam namorando firme. Jéssica pediu cinco pãezinhos, André fez o mesmo, voltaram para casa conversando sobre o tempo e outras coisas sem importância, se despediram, Jéssica entrou deixou os pães e seguiu seu caminho para escola, André ainda estava no portão, esperou para lhe desejar um bom dia, depois entrou, pôs a mesa, fez café, mas não provou deixou tudo arrumado para os pais, e saiu para o trabalho com a mochila nas costas.

Ao chegar no prédio da gráfica André cumprimentou normalmente Raimundo, o porteiro. Depois passou pela recepção, desejou um bom dia à Kelly, a recepcionista. Subiu as escadas, seguiu até o segundo andar, onde ficava a diretoria, entrou na primeira porta que viu aberta, era a sala do doutor Daniel, um dos sócios da gráfica, que logo ao vê-lo entrar, levantou-se da cadeira irritado perguntando aos gritos o que estava fazendo ali naquele horário e sem avisar. André puxou a faca de dentro da mochila e o cortou no pescoço como se empunhasse uma espada, Daniel não caiu no primeiro golpe, apenas cambaleou colocando uma das mãos sobre a mesa e a outro no profundo corte, indefeso e tonto pelo jorro de sangue que lhe saia da garganta, as vistas começaram a escurecer, foi quando André deu o golpe final, segurando a faca com as duas mãos golpeou-o na cabeça fincando-lhe a faca de cima para baixo de modo que a ponta varou-lhe o queixo, o sangue jorrava por todos os orifícios, Daniel caiu duro no chão de mármore. O corpo ainda tremia involuntariamente, uma enorme poça de sangue tomou a sala, parecia brotar do rosto desfigurado. André sentou-se no chão, apoiou os dois pés na cabeça do morto e puxou a faca com toda força, teve grande dificuldade, a volta da lamina parecia ainda mais pesada que a entrada pelo crânio, conforme puxava, os olhos da vitima pareciam querer saltar pra fora do rosto, quando conseguiu retirar totalmente, limpou-a calmamente no pano de prato, depois arrastou o corpo para um canto da sala, a face de Daniel deixava um rastro junto as pegadas de André pela lama de sangue.

André sentou-se na confortável cadeira de couro, pegou os documentos que estavam sobre a mesa, deu uma breve lida na agenda e começou a rabiscar numa folha em branco os compromissos que assumiria naquele primeiro dia como diretor da gráfica. Pegou o telefone, ligou para Kelly e pediu gentilmente – mas com autoridade - que mandasse alguém da limpeza para dar um jeito na sala da diretoria.

Pronto todos os funcionários estavam salvos, teriam agora um diretor mais justo, mais humano, pensou André com o sorriso satisfeito do dever cumprido.

Marcelo Nocelli
Enviado por Marcelo Nocelli em 14/03/2007
Reeditado em 27/03/2007
Código do texto: T412618
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