O Jovem Padre e o Assassino dos Trigêmeos

-- “Está consagrado !!!” Com o anúncio dessas palavras o coração do jovem noviço disparou num ritmo frenético e muitas lágrimas cálidas saíram de seus olhos verdes para acompanhar o azeite perfumado que fora derramado no topo de sua cabeça e agora escorria pela sua face.

Naquele instante uma grande euforia tomou conta de seu interior e o choro se misturou a sensação de alívio por saber que estava recebendo a aprovação após uma longa jornada de estudos, jejuns e orações. As emoções que o envolveram nesse rito cerimonial anunciavam um pouco da nova etapa que a sua vida seguiria com o sacerdócio.

Contudo, ele nem teve muito tempo para enxugar as lágrimas, nem para se despedir dos familiares e amigos, pois poucas horas depois dessa cerimônia eclesiástica já estaria a caminho do aeroporto da Pampulha para embarcar num voo que o levaria para uma distância Prelazia no interior da Amazônia.

Esse recém-consagrado jovem de Minas Gerais quase nada sabia dessa região longínqua, a não ser o que tinha visto em uns poucos documentários na televisão. No entanto, era pra lá que ele deveria ir pela certeza de uma revelação celestial que recebera anteriormente.

Nos meses que antecederam sua consagração o jovem seminarista buscou uma indicação divina que lhe mostrasse aonde deveria ir para exercer seu ministério. Assim, numa noite de primavera, quando lia a Santa Palavra ele foi tocado por um versículo especial, que dizia: “A ti, pois, ó filho do homem, te constituí por Atalaia sobre a casa de Israel; tu, pois, ouvirás a palavra da minha boca, e lha anunciarás da minha parte (Ezequiel 33:7)”.

Na mesma posição em que ele se encontrava, de joelhos ao pé da cama, teve a inspiração de recorrer ao celular para acessar a internet em busca de alguma referência. E logo ao digitar cinco pequenas palavras: “Atalaia no norte do Brasil”, veio a confirmação que ele tanto aguardava. “Sim !!!” dizia num bater retumbante seu fervoroso coração. A leitura daquele trecho das Sagradas Escrituras e a pesquisa no indispensável Google não deixavam dúvidas: ele tinha que iniciar sua jornada sacerdotal nesse distante município brasileiro, no coração da floresta amazônica. Isso mesmo !!! Naquele lugar distante ele seria um verdadeiro “Atalaia de Cristo”.

As imagens da cerimônia de sua consagração estavam tão fortes em sua mente que ele nem viu o tempo passar. Somente o sonoro aviso de “apertem os cintos” foi capaz de despertar-lhe para perceber que o avião já estava prestes a descer. O pouso em Manaus foi bem tranquilo, e já nos primeiros instantes de espera da bagagem ele pôde sentir o calor escaldante que os trópicos oferecem. Cada um dos poros de sua pele transbordava intensamente a ponto de deixar sua roupa molhada. Tudo era bem diferente das Minas Gerais aonde nasceu e foi criado. Esse era um novo momento, bem diverso daqueles que tivera nos seus tempos de clausura do seminário. A agitação da viagem, a mudança do fuso horário, o calor intenso, a fisionomia cabocla dos amazonenses, o sotaque até então totalmente desconhecido, a paisagem bonita da natureza selvagem – tudo isso lhe fazia sentir o sangue correr forte nas veias, com muita intensidade, como nunca acontecera antes.

Do aeroporto seguiu diretamente para a região portuária, aonde tomaria um barco para uma longa viagem até sua nova morada. A recepção no hangar, a corrida de taxi, a reserva do camarote no barco, a caixa cuidadosamente preparada com suplementos alimentares, revistas e livros - tudo foi bem programado pelos irmãos da Arquidiocese local para lhe apoiar nesse intervalo do percurso.

Foi nessa grande capital do Amazonas que pela primeira vez ele sentiu-se realmente imbuído do título de “padre”, pois assim era a maneira como o chamavam todos aqueles que estavam aguardando-o, e era assim que ele se apresentava nas novas conversas: “padre João”. Era uma sensação diferente, que trazia certo orgulho. O sorriso bem aberto no rosto, o caminhar altivo e o olhar atento demonstravam claramente o desejo que ele sentia. Cumprimentava a todos a sua volta, desejoso de conversar, de falar acerca da razão de sua vinda para essa tão distante localidade de sua terra natal. Sem dúvidas, aquela era uma nova fase em sua vida. Ele realmente deixara de ser um seminarista para ascender ao status de sacerdote.

Quando chegou ao barco, o jovem padre já sabia de antemão que a viagem teria duração de seis dias – tempo esse que ele pensava ocupar com leituras e meditações. Como todo jovem pouco experimentado na vida era certo que uma viagem de barco como essa lhe proporcionaria inúmeras experiências bem peculiares.

No decorrer da viagem teve oportunidade de conhecer pessoas de várias cidades e comunidades ribeirinhas com nomes bastante curiosos. Alguns nomes aparentemente lhe soavam como de origem em línguas indígenas, como Amarutá, Tonantins e Jutaí. Outros nomes de cidades lhe faziam crer que suas origens fazem referências à cultura dos colonizadores europeus que estiveram na região, como Benjamim Constant, Santo Antônio do Içá e São Paulo de Olivença. Em consulta aos documentos recebidos pelos irmãos de Manaus ficou sabendo que todos esses municípios citados fazem parte da Diocese de Alto Solimões. Mas, infelizmente não encontrou nenhum morador da sua cidade de destino, a “Atalaia do Norte”, o que aumentou ainda mais suas expectativas.

A passagem pelo encontro das águas dos rios Negro e Solimões foi um coroamento da viagem, um prêmio inesperado e encantador. Ele nunca tinha visto algo tão belo e majestoso. Ele ficou olhando atentamente as águas escuras e geladas do rio Negro seguirem por vários quilômetros lado a lado com as águas de seu irmão caudaloso, barrento e quente – o rio Solimões. Ele estava certo que aquilo era uma demonstração das grandezas do Supremo Criador. Esse espetáculo fantástico da natureza intocada trouxe-lhe a esperança de que a providência divina estaria sempre ao seu lado.

Contudo, numa noite bastante escura, daquelas que não é possível ver a lua e nenhuma estrela, a embarcação foi pega por uma grande tempestade. O vento forte e as águas revoltas jogavam o barco de um lado pro outro. Os trovões eram acompanhados pelo coro de gritos das senhoras e pelo choro estridente de alguns bebês. A tripulação estava em pânico, tomada de grande apreensão. Durante toda tormenta muitas lembranças de trechos bíblicos não lhe saiam da cabeça: “o Faraó do Egito sendo engolido com todos os seus soldados pelas águas do Mar Vermelho, o profeta Jonas que foi lançado ao mar e foi parar no ventre do grande peixe, o apóstolo Paulo que chegou a ilha de Chipre após um naufrágio etc.”. Mas não era nenhum desses relatos tristes dos textos sagrados que o jovem padre queria vivenciar. Em meio ao desespero da tormenta, ele clamava em voz alta aos Céus para que aquela embarcação fosse tão forte como a grande Arca construída pelo patriarca Noé. Felizmente, para bem de todos no meio da madrugada a tempestade passou. Certamente que aquela foi uma grande lição para pôr sua fé à prova, uma dentre tantas situações que ele teria que passar nesse caminhar como missionário cristão.

Enfim, após aquela viagem aparentemente interminável, com trocas de embarcações, alguns percalços e sustos, ele chegou ao seu destino final. A chegada ocorreu bem cedo, juntamente com o brilhar dos primeiros raios de sol. Nessa hora matinal vários bandos de pássaros cruzavam os céus, cantando graciosamente, o que lhe soou como boas-vindas da natureza exótica daquele lugar.

A atracagem da embarcação no porto é sempre um momento de bastante agitação e balburdia. Diferentemente do que muita gente imagina a manobra que o barco realiza para ancorar não é nada tranquila; na verdade é precedida de um frenesi tremendo. Os passageiros se movimentam rapidamente, recolhendo suas redes e pertences, falando em voz alta e puxando as crianças pelos braços para que elas não sejam pisoteadas no meio do tumulto que se segue. Semelhante algazarra acontece com as pessoas que ficam no porto aguardando a chegada do barco. À medida que o barco se aproxima muitos homens em terra se agitam – todos querendo garantir o primeiro lugar para entrar no barco. Essa movimentação chega a assustar quem não entende o que se passa. Duas ou três dúzias de homens competindo para entrar rapidamente no barco com objetivo de ganhar algum trocado carregando as bagagens. Em muitas localidades da Amazônia o transporte de cargas e mercadorias ainda é feito de forma rudimentar. Eles pegam os volumes e transportam em pequenas carroças puxadas por um ou dois trabalhadores, o que remete nossa imaginação àquelas cenas de filmes antigos.

Como acontecera no desembarque em Manaus, ali também havia alguém para esperar-lhe na chegada do barco e para lhe conduzir até a casa paroquial. Contudo, diferente da primeira viagem, que foi realizada de taxi, dessa vez o jovem padre teve que ir à garupa de uma bicicleta cargueira, enquanto que sua bagagem foi transportada em uma carroça que era puxada por dois carregadores.

Ao longo do percurso, quando passava por uma pequena praça, o ciclista lhe mostrou uma grande placa com a foto do Prefeito Municipal e os seguintes dizeres: “Atalaia do Norte – o mais extremo núcleo do Oeste, a guarita da marcha para o Oeste”.

Os solavancos constantes da bicicleta nos inúmeros buracos das ruas sem pavimentação, a paisagem inóspita e a mensagem naquela placa lhe trouxeram uma desconfortável associação desse lugar ao “Velho Oeste Americano”.

Chegando à casa paroquial já estava a sua espera uma pequena freira, que tinha um largo sorriso no rosto e uma voz suave, o que de certa forma dissipou um pouco o susto inicial. Ela o recepcionou e teve a delicadeza de mostrar as dependências de sua nova moradia.

A casa paroquial era um casarão feito de madeira, como a maioria das construções da cidade. No centro do saguão principal havia um grande altar e algumas cadeiras estofadas. Do lado direito ficavam algumas salas administrativas e uma pequena biblioteca episcopal. Ao fundo a cozinha, bem mobiliada, com uma pesada mesa de mármore para as refeições de todo corpo eclesial. O quarto que seria seu aposento ficava no segundo piso, ao final de um longo corredor. Ele era pequeno, tinha uma cama larga, um pequeno guarda-roupa e uma bela janela que dá vista para a rua. O banheiro ficava do lado externo, no outro extremo do corredor. Antes de sair do quarto a irmã fez questão de orientar-lhe acerca do candeeiro sobre o criado-mudo, o que lhe seria muito útil nos momentos de falta de energia elétrica.

Logo que a freira se retirou de seus aposentos, ele começou a desfazer as malas, colocando alguns pertences no guarda-roupa. Depois deitou na cama para relaxar um pouco. Após longa jornada o jovem padre suspirou aliviado, pois aquele seria o primeiro momento em que estaria sozinho, num ambiente silencioso e confortável para descansar. Entretanto, uma dor aguda em suas costas acusava que algo estava errado. A espuma fofa do colchão lhe permitia sentir um grande volume por baixo. Não teve dúvidas, desceu da cama e levantou o colchão para checar o que era aquilo. Para sua surpresa era um embrulho com inúmeras cartas. Elas estavam bem dobradas e curiosamente estavam delicadamente decoradas com coraçõezinhos vermelhos e com dizeres românticos endereçados ao frei Ramón.

Um pouco antes do almoço ele procurou a irmã de caridade para entregar-lhe o embrulho com as cartas, e questionou-lhe sobre o citado frei. Ao tomar ciência do conteúdo que ele lhe entregava o semblante da amável freira se transformou e, como demonstração clara de seu incômodo, o padre recebeu uma ríspida resposta: -- “O frei Ramón se foi para nunca mais voltar !!!” Não precisou usar de muita sabedoria para entender que aquele assunto não deveria mais fazer parte de seu rol de curiosidades.

Após uma breve visita a biblioteca, foi em direção à cozinha para saborear sua primeira refeição. A mesa estava posta com um belo forro de crochê azul e as grandes panelas de ferro estavam apoiadas em belos trançados de palha. Nesse instante ele pôde sentir o cardápio típico que faria parte de sua dieta dali em diante: arroz, feijão preto com charque (que é um tipo de carne bastante comum nessa região), peixe frito, farinha de mandioca e açaí. A falta de verduras no almoço não foi o que lhe chamou tanta atenção, pois o que realmente estranhou foi a presença do suco do açaí numa refeição principal. Antes ele estava acostumado apenas a tomar essa iguaria como uma sobremesa.

Após isso, subiu velozmente as escadarias para o quarto, para se preparar antes de fazer sua primeira visita a paróquia local. O quarto estava abafado pelo calor intenso. Assim, ele escancarou a janela para equilibrar a temperatura. Na Amazônia sempre se vive num grande dilema, se as janelas estão fechadas o calor se torna insuportável, mas se as janelas ficam abertas as chuvas inesperadas podem molhar o ambiente interno. Enquanto trocava de roupa, ele sentiu uma brisa refrescante. Assim, se aproximou da grande janela e pôde ver a movimentação que acontecia na cidade por decorrência dos “Jogos Três Fronteiras”, que é um dos maiores eventos da cidade. Essa festividade movimenta a economia do município com programações esportivas e culturais que envolvem moradores de três países: Brasil, Peru e Colômbia.

Nesse momento teve lembranças dos festivais culturais de sua bela cidade natal e uma forte saudade apertou seu peito. Barbacena tão conhecida pela sua história, pelos seus personagens de destaque nacional, tão famosa pela beleza de suas rosas. Com certeza uma das mais lindas cidades mineiras, bem arborizada, cheia de jardins coloridos e perfumados. Aquelas lembranças fizeram sua garganta secar, e o olhar ficou turvo pelas lágrimas que insistiam em sair. -- “Não !!! Não posso ficar triste”, ele falou em voz alta para si mesmo. Para ele, aquelas emoções deviam ser contidas, pois a saudade não poderia atrapalhar o prelúdio de sua nova jornada. Com esses pensamentos conteve a melancolia e, assim, tomou forças para deixar seu quarto e poder caminhar em direção a Paróquia.

Com um olhar assustado era impossível negar que sua chegada a Paróquia não foi bem o que ele esperava encontrar. Ela estava tomada por trabalhadores que se esforçavam para puxar para fora uma grande quantidade de água que tomava conta do ambiente. O páraco local mal teve tempo de cumprimentar lhe, pois estava agitado tentando consertar os estragos de uma forte chuva que atingira a cidade na noite anterior e havia danificado o telhado acima do altar.

No meio de toda aquela confusão, um menino adentra o recinto e se dirige ao dirigente da paróquia com um bilhete em mãos. O pároco de pronto chama com sua voz grave e pede que o jovem padre atenda ao menino. No envelope, havia um pedaço de papel camurça bege com um pedido em letras garrafais: -- “Padre, venha, por favor, fazer uma extrema unção. O enfermo está prestes a morrer "in articulo mortis" e precisa desse sacramento para descansar em paz.”

O que mais lhe impressionou era estar num local com tão poucas pessoas letradas e receber um bilhete com uma mensagem clara e de boa caligrafia, com dizeres na língua-mãe da Sacra Igreja Romana. E quando se voltou para consultar o velho pároco, este sem ouvir o que ele tinha a dizer simplesmente ordenou: -- “Vá lá padre João !!! Siga o menino e atenda ao pedido que ele trouxe !!!” Aquela ordem de supetão pegou-lhe desprevenido. Ele demonstrando um ar assustado tentou proferir algumas palavras, mas sem titubear o pároco completou, dizendo: -- “Segue o menino !!! Vai ser uma oportunidade boa para você conhecer a cidade e praticar seu primeiro ato de fé !!!”

Receber tal ordem com tamanha veemência lhe fez engolir qualquer tipo de questionamento e, assim, num sobressalto se pôs em direção ao seu primeiro atendimento.

Tudo ali era novo e diferente. Poucas semanas atrás o jovem João estava na sua bela Barbacena, cheio de sonhos e questionamentos, e agora se via frente ao seu maior desejo: “Fazer missões”.

Enquanto aquele menino moreno de cabelos corridos caminhava a sua frente, guiando-lhe para um destino incerto, ele falava consigo mesmo: -- “Serei como São Paulo !!! Serei como o Apóstolo das Missões !!! Serei um Atalaia de Cristo, para levar sua mensagem aos confins do mundo !!!”

Mas mal sabia o jovem padre que ele precisaria mais do que aquelas poucas palavras de motivação para enfrentar uma viagem em uma pequenina embarcação cruzando o grande rio que banhava a frente da cidade.

O menino foi conduzindo a pequena embarcação com um motor bem barulhento, conhecido na região como “rabeta”, pois lembra um enorme rabo esticado ao final da canoa. Era a primeira vez que o jovem mineiro experimentava algo semelhante. À medida que atravessavam o rio, as ondas ameaçavam submergi-lo. Em alguns momentos a água entrava pelas bordas laterais, e nisso o menino gritou: -- “Padre, usa esse copo para retirar a água do fundo da canoa”. E jogou um pequeno copo de alumínio para o reverendo, que sem vacilar foi cumprindo a ordem, tentando retirar toda água que entrava ao mesmo tempo em que segurava a batina para não deixá-la molhada.

Depois que eles chegaram ao outro lado do rio, o menino foi conduzindo a canoa próxima à margem, sempre no sentido contrário a forte correnteza. Em certo momento a canoa deixou o curso principal e adentrou num pequeno igarapé. À medida que navegavam esse curso d’água se tornava mais sinuoso, e as copas das árvores marginais fechavam a entrada de luz, quase transformando esse afluente num túnel de água, paredes e telhado de vegetação. Aquela situação trazia um misto de deslumbramento e medo. -- “O que ele iria encontrar adiante ??? O que estava por vir ???”, ele se questionava.

Muitas dúvidas enchiam sua mente naquele trajeto pitoresco. Ele estava numa embarcação tão primitiva, sendo conduzido por um garoto que aparenta ter apenas uns 12 ou 13 anos, adentrando na selva para um destino incerto. E para complicar ainda mais aquela situação, ele tinha em mãos um bilhete instigador. -- “Fazer uma extrema unção ??? Como devo fazer ??? Por qual razão tenho que iniciar meu trabalho aqui na Amazônia justamente com esse sacramento que menos domino, o menos popular entre as práticas dos cristãos católicos ??? Será que serei capaz de pôr em prática tal rito sem ter tido uma profunda vivência em minha formação ministerial ???”, ele se perguntava cheio de insegurança.

Minutos mais tarde o menino anuncia: -- “estamos chegando, padre !!!” E foi conduzindo a canoa para uma pequena plataforma de madeira à margem do igarapé. Os dois desembarcaram e iniciaram uma caminhada para dentro da floresta. À medida que caminhava, o jovem padre pôde sentir o ar frio e abafado, típico do interior da mata fechada. Nisso questionou: -- “Nós estamos chegando ???”, e como resposta o menino apontou para uma pequena choupana, dizendo: -- “É ali, a casa do meu tio.”

Era uma moradia bem simples, toda de madeira, coberta por um telhado de palha, com portas e janelas estreitas. Ela ficava suspensa alguns metros acima do chão alagadiço da floresta e ao seu redor havia uma grande quantidade de açaizais que garantiam uma sensação de que seus moradores estavam totalmente integrados ao ambiente selvagem da Amazônia.

-- “Pode entrar, a porta está aberta e você vai encontrar meu tio no quarto. Eu vou pra minha casa que fica aqui perto e volto mais tarde.” Nem acabara bem de dizer tais palavras e o menino seguiu adiante. O padre ficou ali, hesitante, parado na entrada da casa, vendo o garoto partir. Ele via o garoto seguir por uma passarela bem rudimentar feita de troncos de palmeiras e um conjunto de tábuas. O jovem padre ficou admirado de conhecer a olho nu essas passarelas típicas que fazem a interligação das casas nas comunidades ribeirinhas. A cada passada as tábuas se curvam e rangem, o que produz no caminhante a sensação assustadora de que elas vão se quebrar ao meio, deixando-o despencar abruptamente. Assim, ele via o menino se distanciar, caminhando com destreza, tentando se equilibrar em alguns momentos com os braços abertos, como se estivesse numa corda bamba – daquelas que se vê nos espetáculos circenses.

Com o desaparecimento do menino em meio às arvores frondosas da floresta, o clérigo retomou a si, respirou fundo, e foi adentrando a casa, dizendo: -- “Boa tarde !!!”, e do fundo da morada ouviu uma voz sussurrada, que dizia: -- “Pode entrar, eu estou aqui dentro”.

Ao chegar ao quarto viu um homem deitado na cama, coberto por um lençol branco. Ele aparentava uns 40 anos, e tinha um aspecto ruim. As barbas e cabelos desgrenhados, os olhos fundos e amarelados, o rosto pálido e as mãos trêmulas denunciavam a sequência de febres que sofrera nos últimos dias.

-- “Boa tarde !!!”, cumprimentou o padre, fazendo um pequeno gesto com as mães, tentando esconder a timidez característica dos mineiros do interior. -- “Foi o senhor que enviou esse bilhete ???”, questionou o sacerdote, apresentando o pequeno pedaço de papel, que a essa altura já estava bem amassado e um pouco molhado pelas intempéries do translado desde a capela até ali.

Quando o morador se mexeu um pouco, dando sinais que iria responder, foi pego por uma tosse forte, que o impediu durante alguns instantes de falar. Assim, o morador tossiu ruidosamente, uma tosse forte, doída e angustiante. Seus pulmões eram levados ao extremo de suas forças tentando expulsar a secreção que impregnava suas vias, impedindo-o de respirar adequadamente. O seu corpo fragilizado se contorcia, em espasmos rápidos, sempre acompanhados pelo som rouco e dolorido que saia de sua garganta. A tosse rouca demonstrava a debilidade de seu organismo, e aumentava ainda mais seus males torturando o doente e todos que presenciavam sua agonia. Os sinais eram nítidos que algo não estava bem.

Aqueles poucos instantes pareciam horas para o jovem padre que esperava a oportunidade de poder falar, desejoso de acalentar o homem, pois afinal ele estava ali para atender ao pedido que recebera. E, certamente, que não era qualquer pedido, pois se tratava de uma extrema unção – o último dos sete sacramentos.

-- “Padre, pegue essa cadeira no canto. Sente-se aqui perto e inicie a extrema unção para que eu possa morrer em paz !!!”, pediu o homem acamado.

Era visível que o doente estava numa luta hercúlea contra a morte que se aproximava. Contudo, o padre não estava totalmente convencido de que a única saída para aquele moribundo seria a morte. Ele acreditava que, primordialmente, o enfermo precisava de alento e conforto espiritual. Essa seria uma ótima oportunidade para exercer seus talentos de acolher e apascentar.

-- “Primeiro me fale um pouco de você, da sua doença”, pediu o sacerdote, puxando a cadeira e sentando-se ao lado da cama.

-- “Não padre, não tenho mais motivos para conversar, nem motivos para viver. Eu perdi tudo que tinha: minha mulher, meus filhos, minha saúde. A única coisa que me resta é a morte certa”, respondeu.

O reverendo se aproximou calmamente, pegou na mão esquálida do homem, expressou um bonito sorriso, e propôs uma alternativa: -- “Vamos comigo para a cidade. Lá você poderá ser tratado. Ainda há esperança. Você pode ficar curado e ter de volta uma vida normal.”

O homem alterou seu semblante, puxou rapidamente a mão, e bradou com raiva: -- “Não !!! Isso nunca. Tudo que tenho se foi. Perdi minha mulher, meus filhos. Perdi tudo !!!” E ordenou: -- “Vá até aquela janela e veja lá fora !!!” Numa resposta instantânea àquela reação adversa do morador, o padre saltou da cadeira assustado e foi até a janela para ver o que poderia ter do lado externo.

-- “Está vendo aquelas cinco cruzes recém-fincadas no chão ???”, perguntou o doente. E já foi respondendo: “A cruz maior é onde está enterrada minha mulher, as três menores são dos meus filhos trigêmeos. E a cruz afastada, a cruz que fica atrás das outras é onde enterrei o diabo.”

“Como assim ??? A quinta cruz é onde ele enterrou o diabo ???”, questionou silenciosamente o padre, já apresentando para si mesmo algumas respostas àquelas dúvidas intrigantes: -- “Ele deve estar desnorteado pela perda dos entes queridos. Talvez esteja fora de si por causa dos sintomas da doença. Ele não deve estar muito certo do que fala. Enterrar o diabo, onde já se viu isso ?!?”

-- “Eu perdi tudo, perdi minha mulher, os meus filhos, a minha saúde. Não me resta mais nada” ... nesse instante uma sequência de tosses interrompeu sua fala, conduzindo-o novamente àquele estado angustiante de espasmos e gemidos doloridos. Quando os efeitos colaterais da doença pausaram, o homem ficou totalmente inerte, respirando com dificuldade, ofegante, e com seu olhar sofrido focado num crucifixo que estava preso na parede defronte de sua cama. E balbuciando, suplicou: “Padre, por favor, faça a extrema unção para que eu possa morrer em paz.”

“Me fale um pouco de você, seu nome, sua vida. Vamos conversar um pouco”, argumentou o sacerdote, tentando ganhar tempo para persuadi-lo a desistir daquela ideia.

“Meu nome é Ramón. Antes de vir morar aqui eu era frei e ministrava na Capela da cidade”, respondeu o doente.

“Você é o frei Ramón ?!?”, disse, num misto de espanto e dúvida. E, pela segunda vez, em pensamentos o padre fez outras perguntas: “O frei das cartas ??? Das cartas de amor ??? É você mesmo ???”

Sem notar a cara de espanto do jovem padre, o doente prosseguiu narrando sua história. “Eu me formei em São Paulo e já estava há muitos anos vivendo bem em Atalaia do Norte, até que num dia fatídico eu conheci uma mulher ... uma mulher diferente das outras. Essa mulher é a razão de eu estar nessa situação. Ela era atraente demais !!! Veio chegando, toda insinuante, como uma aranha chega silenciosa para dar o seu bote. E quando eu menos esperava já estávamos numa paixão descontrolada, sem limites ... e não me restou mais nada a não ser vir pra cá, para viver minha vida junto com ela nesse lugar. É por isso que estou nessa situação, pois Deus me abandonou. Nada mais me resta ... só a morte !!!”

Após uma breve pausa, continuou: “Eu era um sacerdote e deixei tudo por causa de um pecado. Eu fui um tolo, não consegui resistir. Eu cometi as mesmas falhas de Sansão, que teve sua perdição por causa de Dalila. Eu estou sofrendo pela mesma tolice do Rei Davi, que sofreu por causa da cobiça ... por desejar uma mulher. Eu deveria ter resistido como José fez no Egito, ou como Cristo resistiu às tentações de Madalena. Eu falhei ... eu cai na tentação. Eu pequei um pecado capital, um pecado grave, um pecado sem perdão !!! Perdi meu ministério, perdi a minha mulher, os meus filhos, minha saúde. Não posso mais viver. A única saída que tenho agora é morrer. Não sobrou mais nada. Só me resta a morte !!!”

O padre respirou fundo, se aproximou da cama e com voz suave iniciou a contra argumentação, dizendo: “Não se culpe por causa desses acontecimentos. Você está debilitado pela enfermidade, mas certamente que não tem culpas pela perda de sua mulher e seus filhos. Deus não quer que você morra. Deus sabe que você tem um coração bom. Deus sabe que no fundo você não tem culpa por tudo isso. Sei que você está passando essa dificuldade, mas eu acredito que a culpa não é sua.” E novamente sugeriu: “Venha comigo !!! Vamos para a cidade. Lá você poderá ser tratado. Lá você poderá ficar melhor !!!”

“Você não entende padre !!!”, gritou o doente. E continuou falando alto: “Eu vim pra cá um ano atrás, pois minha mulher estava grávida. Nós viemos pra cá para fugirmos, para nos escondermos por causa dos nossos pecados. Ela estava grávida, e ninguém podia saber. Ela estava grávida e aqui ficamos para ela ter a gestação e para nós vivermos e podermos criar o fruto da gravidez. Mas, eu e nem ela desconfiávamos que a gravidez fosse de trigêmeos. Ela ficou o tempo todo aqui e no sétimo mês entrou em trabalho de parto. Aqui mesmo nesse quarto ela teve nossos três meninos, nossos trigêmeos.”

Nessa altura da conversa, o padre João totalmente supresso questionou: “Ela teve trigêmeos ??? Aqui mesmo ??? Sem a ajuda de um Médico ??? Sem nenhum Enfermeiro por perto ???”

“Eu chamei uma parteira, uma mulher experiente, com mais de duzentos partos. Ela ajudou, pegou meus filhos com muito amor e ficou aqui por vários dias ajudando a cuidar das crianças”, respondeu o doente, esboçando pela primeira vez uma expressão suave, com um brilho nos olhos. “Nesse período, padre, eu pensei que estava perdoado. A alegria do nascimento das crianças trouxe um pouco de alento para minha alma que estava atormentada pela culpa de tantos pecados. Dali em diante eu pensei que tudo ia ser diferente.”

“Não foi nada fácil conseguir cuidar de três crianças. Eu e minha mulher estávamos tendo muito trabalho, mas felizmente estávamos conseguindo. Nós estávamos vivendo bem até que o inferno chegou de vez nas nossas vidas. O diabo chegou para levar minha esposa, meus filhos, e agora é minha hora. Eu preciso da extrema unção para morrer em paz !!!”

“Não diga uma coisa dessas. Não fale tais palavras !!!”, repreendeu o sacerdote. Para em seguida iniciar nova argumentação: “Sei que você não teve culpa. A morte de sua mulher e de seus filhos foram duas fatalidades. Mas certamente que você não tem culpa”. E, mais uma vez, convidou o doente: “Vamos pra cidade. Vamos comigo. Lá você poderá ser tratado !!!”

“Nunca !!! Você não entende padre. Você não entende a minha situação. Não entende a minha culpa !!!”, gritou bem alto o homem acamado, dando um solavanco que fez os pés da cama se levantarem e baterem contra o chão de madeira.

Essa explosão de fúria causou um susto, de modo que o padre se afastou de costas em direção à janela aberta, para ouvir com maior espanto a continuação do relato. “Eu saí bem cedo para o interior da floresta, para coletar castanhas e para extrair óleo de andiroba. Lá no meio da mata eu comecei a sentir os sintomas da malária, uma febre terrível, náuseas, tonteira, dor pelo corpo todo. Eu deixei tudo pelo caminho e voltei pra casa, pois sabia que tinha que me abrigar para tratar da doença. Quando eu estava chegando perto da casa ouvi as três crianças chorando alto. Elas choravam bastante, e por isso reuni as derradeiras forças para correr, enquanto clamava com medo do pior. E para meu desespero, quando cheguei em casa a minha mulher estava caída no chão, totalmente morta, com o diabo em cima dela. Ela estava caída com uma cobra grande enrolada em cima dela. A cobra estava lá, parada, olhando em minha direção, como se estivesse me esperando ... me esperando para me matar também. Aquela cena horrível me deixou louco, e eu parti com tudo para matar o demônio. Eu peguei o facão e cortei a víbora em pedaços, mas o diabo foi mais forte ... o diabo entrou em mim, e eu perdi totalmente o juízo ... eu fiquei louco e matei meus três filhos, meus trigêmeos.”

Ao ouvir essas palavras, o padre sentiu um calafrio enorme percorrer sua espinha, como se todo sangue sumisse de seu corpo naquele instante, como se o frio da sepultura tivesse tomado conta do ambiente em que eles estavam. Instantaneamente, o jovem se virou para olhar pela janela, num sentido de proteção, desejoso de evitar a face daquele homem que acabara de dizer de si mesmo algo tão horrendo. Assim, começou a pedir proteção dos Céus, enquanto mil dúvidas passavam por sua mente: “Como pode isso ??? Estou diante de um assassino de seus próprios filhos ??? Um conhecedor dos mandamentos sagrados que se transformou num monstro ??? Devo eu fazer a extrema unção ??? Devo deixa-lo aqui para morrer ???”

Os pensamentos aflitivos do padre foram interrompidos por um novo grito do enfermo, que desesperado ordenou: “Venha padre. Venha fazer a extrema unção para eu morrer em paz !!!” Como que por instinto o sacerdote simplesmente respondeu: “Não !!! Eu me recuso a fazer isso !!! Eu me recuso a fazer essa extrema unção !!!”

Sem que o sacerdote pudesse medir as consequências de sua resposta, ele viu o enfermo pegar um pequeno frasco que estava no chão ao lado da cama e verter vagarosamente seu líquido escuro. Não demorou nada e o doente começou a se contorcer e gemer ruidosamente. O padre assustado se lançou velozmente para perto do leito, arrependido de suas palavras, como se quisesse conter os efeitos danosos, imaginando que aquilo fosse um veneno fatal.

“Não, não, não !!! O que você fez ??? O que você fez ???”, clamou o padre, debruçando-se sobre o doente, gritando e chorando muito. O sacerdote ficou ao lado da cama, vendo desesperado o triste fim daquele homem moribundo. Enquanto as lágrimas escorrendo abundantemente por sua face molhavam o lençol branco, o jovem padre lamuriava desesperado e sacudia o corpo inerte, como se dessa maneira pudesse trazê-lo de volta a vida. A impotência perante a morte de um ser humano encheu sua alma de uma sensação dolorosa de vazio e abandono.

Essa experiência aterradora de seu primeiro dia deixava claro que seu ministério na Amazônia não seria tão romântico e doce como ele tanto sonhara nos últimos meses no seminário em Minas Gerais.

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Publicado na Antologia Veloso/2013. (Eliosmar Veloso - Organizador da obra). 1ª edição. Gurupi: Editora Veloso, 2014, v.1, p. 61-78. Home page: http://www.livrariaveloso.com.br/

Giovanni Salera Júnior

E-mail: salerajunior@yahoo.com.br

Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187

Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior

Giovanni Salera Júnior
Enviado por Giovanni Salera Júnior em 12/02/2013
Reeditado em 27/02/2014
Código do texto: T4135639
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