A última infância

De repente veio aquela vontade de voltar à cidade de sua infância. Durante todos esses anos nunca sentiu vontade voltar, mas agora era diferente, alguma coisa apertava o peito. Ansiedade misturada a uma ponta de covardia escondida no fundo da alma.

Ao contar que voltaria para a pequena cidade sem qualquer previsão de volta, ela não demonstrou qualquer espanto. O relacionamento entre eles já não era mais o mesmo.

Quando conheceu Márcia, ao entrar num curso de pós-graduação ela já beirava os cinquenta, enquanto Lúcio acabara de completar vinte cinco anos. Tornou-se orientando dela e em pouco tempo, além da admiração, uma grande ternura floresceu entre os dois.

Numa fria tarde de sábado, pouco antes do início do segundo semestre, estavam sozinhos no quarto de estudos do apartamento dela. Lúcio já havia se acostumado ao ambiente. No começo estranhou. O pequeno apartamento não tinha muito móvel além dos necessários na cozinha. Na sala não havia sofá, tampouco televisão. Apenas almofadas espelhadas pelo chão e estantes. Estantes carregadas de livros por todos os lados. No outro quarto, usado como dormitório, além da cama e um pequeno guarda roupas, mais livros em caixas e pilhas organizadas pelo chão.

Enquanto separava e anotava informações para seus estudos, Lúcio nem percebeu o sumiço de Márcia, nem pode precisar quanto tempo passou ali. Só se deu conta quando ela apareceu na porta dizendo que o jantar estava pronto. Na cozinha, a mesa posta, uma garrafa de vinho tinto.

Sente-se, fique à vontade, ela disse.

Ela havia preparado uma lasanha a bolonhesa. Depois de servir os dois pratos, Márcia encheu as taças e ofereceu um brinde. Depois de constatar que a garrafa estava vazia, Márcia abriu outra e então eles foram se descontraindo enquanto bebiam. Conversaram sobre a faculdade e os caminhos que Lúcio poderia percorrer para uma carreira de sucesso como professor. Quando a segunda garrafa terminou, Márcia ofereceu outra. Ele recusou. Recolheram juntos a pouca louça e Lúcio ajudou-a a lavar, secar e guardar tudo no seu devido lugar. Quando terminaram voltaram para o quarto de estudos.

Lúcio estava sentado com um livro aberto nas mãos, quando Márcia tirou os sapatos e subiu nos braços do sofá para pegar um livro no alto da estante. Ao descer se desequilibrou e quase caiu sentada no colo do rapaz. Ele esticou o braço, oferecendo sua mão para que ela se apoiasse. Depois se levantou e ficaram frente a frente. O sorriso pelo incidente deu lugar a certo constrangimento pela proximidade das faces. Márcia beijou-lhe os lábios. Lúcio parecia já esperar por isso. Aquela foi a primeira de muitas noites.

No dia seguinte Lúcio deixou a pensão onde morava e se mudou para o apartamento da professora. Dez longos anos de aprendizado, dormindo e estudando juntos todas as noites. Exceção para àquelas em que um deles estava fora da cidade em algum congresso. Depois as ausências aumentaram. Veio a distância. Márcia sofreu meses com uma forte depressão. Olhava-se no espelho e sentia-se velha. À noite fazia comentários e soltava indiretas que passavam despercebidas por Lúcio.

Lúcio não se lembrava mais quando começou a se desinteressar pelos livros da professora. Provavelmente quando terminou a pós e iniciou sua atividade profissional como professor numa universidade particular. Tempo em que passou a chegar mais tarde, jantando fora quase todas as noites e, por vezes, dormindo fora, em companhia de alguma colega de trabalho e até uma ou outra aluna, na maioria das vezes, interessada em absorver seus conhecimentos. Mesmo assim, Márcia continuou tentando agradá-lo, com livros e jantares especiais.

No final do ano letivo, Lúcio comunicou sobre a viagem. Em menos de uma semana resolveu tudo; pediu demissão, comprou a passagem, fez as malas e somente na hora de sair se despediu de Márcia com um longo, porém apressado, beijo.

Ela não teve tempo nem coragem de lhe contar sobre o câncer recém descoberto.

Quando ele, finalmente chegou à sua cidade, foi direto para a casa da mãe, que não viu durante todos esses anos. Espantou-se com a fragilidade em que a encontrou. Abraçou-a com força. Lágrimas escorreram de seus olhos. Como estava velha. Precisava da sua companhia. Não se lembrava mais com clareza dos cuidados que a mãe provavelmente lhe dispensava quando criança, mas tinha uma certeza; a de que cuidaria dela pelo resto dos seus dias e nunca mais sairia dali.