A poesia de Joâo

A argola de prata que a orelha de João leva pendurada lhe dá um ar de sujeito mareado, como se ele fosse um marujo vivendo a sua vida salgada em mares por volta de todo o mundo. Não é a toa que o seu apelido nas rodas de samba é o “Pirata do tic tac”, considerando que o instrumento pelo qual João se dedica nessas horas de distração é a caixinha de fósforo. As meninas da Barra dizem, quando cruzam com ele nos cafés que há por ali, que as suas peças e as suas jóias - João é um homem muito vaidoso e de bom gosto para brincos, anéis, pulseiras e colares; tudo muito masculinizado, é claro - o tornam exótico, e completamente diferente dos carinhas que circulam a cidade em busca delas para uma trepada rápida ou uma simples companhia nas madrugadas infindáveis no Posto 9. Não que ele não goste de uma foda ligeira ou uma noite iluminada pelo céu de poucas estrelas e de Lua a mirá-lo quase nu na praia escaldante da cidade maravilhosa, mas é que esses comentários que andam pelas esquinas e mesas por onde João passa são frequentes e, a considerar o fato de que o rapaz em questão tem dentro do seu espírito a vaidade como um mal a ser encarada como um bem, o que falam a seu respeito - quando lhe admiram, digo - o enche de modéstias, e com elas se vangloria disfarçadamente para que ninguém perceba que ele realmente leva em consideração os elogios recebidos pela gema carioca. Certa vez, por exemplo, quando ele tomava uma breja na Lapa com os amigos, uma mulher dentro de um vestido colado que a evidenciava com o corpo, sem exageros, extremamente idêntico às curvas de um violão bem moldado, lhe surpreendeu de súbito ao perguntá-lo se ele era brasileiro. Ao respondê-la que sim, a mesma estranhou-se e lhe disse estar admirada com tamanha autenticidade no seu jeito de se comportar, já que ela o observava antes havia um tempo. Disse ainda que no Brasil não se via tantos homens como ele, cujos modos diferenciavam-se da grande população macha tupiniquim. Esse fato na vida do rapaz o tornou crente na sua capacidade de enganar, digamos assim, as pessoas quanto à sua origem por ter em si algo que realmente o excluía dos seus amigos de sexo masculino e de todo o resto que também possui entre as pernas um pau.

Com essas descobertas pessoais, João sentiu-se confiante de si mesmo e encontrou-se gradativamente mais presente diante a novos corpos femininos bem estruturados, cujos lábios sempre lhe caminham em todos os seus pontos mais íntimos que lhe compõem o dorso, a nuca, as pernas torneadas e o sexo consistente. Os lugares que lhe fazem ninho de amores arrebatados e instantâneos são os mais variados possíveis: motéis à beira da estrada, lofts chiques em Copacabana, aos redores do mar logo ali no posto 6, nos altos morros do complexo do Alemão, em casas de família na Tijuca e até dentro do seu próprio cafofo, onde ele descansa da turbulência que a sua vida lhe desenfreou deste então.

Ainda na sua casa, no seu ambiente recluso de toda a agitação do Rio, João se detêm às vezes sentado de frente à uma velha máquina de escrever que ele comprou, por curiosidade apenas, em um sebo qualquer. Tenta, em vão, brincar de poeta e fazer da sua vida enormes versos bonitos. Quando mais jovem ele lia muito o seu companheiro de cabeceira Vinícius de Moraes, e na manhã seguinte, nas aulas de física do ensino médio, lutava contra a sua vontade de criar sonetos iguais ao do velho carioca. Há também noites nas quais a insônia lhe atinge em cheio o peito e, olhando a máquina como se ela lhe mostrasse o caminho a ser seguido para redigir um bom texto, João deixa o tempo escorrer entre os seus olhos fadigados e a folha de papel insiste em permanecer branquinha, como sempre fora. Esses minutos de beleza lírica se dão nos dias em que a sua calma e a sua quietude lhe transbordam a alma, isto é, nas horas de paz em que trabalho, estudos, mulheres e praias não lhe tomam a presença e nem o gosto. São necessárias horas que nos transportem de onde permanecemos de forma ativa todos os dias e nos coloquem em um patamar acima do desespero em não cessar o corpo e a mente por um instante sequer, pensa ele, num lugar onde possamos encontrar nós mesmos cara a cara e, quem sabe, até trocar umas palavrinhas de amigo, prossegue.

Alguns fazem deste encontro literatura, música, artes plásticas ou o que seja. João, ao olhar-se profundamente, faz dos momentos consigo mesmo reflexão que o leva às descobertas inimagináveis, e, com isso, ele então procura arduamente traduzi-las em versos poéticos. Mas o destino deste homem de barba mal feita, de olhos claros e de um corpo proporcional às linhas e dimensões do de Dionísio, como dizem, não é escrever poemas como modo de transpor sua vida inquieta numa folha em branco, o destino dessa pessoa é apenas viver, e fazer das suas experiências a própria poesia em si, tornando-se, portanto, um poeta auto biográfico de grande renome nas bocas femininas, nas festas dos morros, nas padarias que lhe alimentam após uma noite boêmia, nos risos entre companheiros de velha data, nos terreiros de candomblé, nos botecos preenchendo a cidade e nas praias lhe abraçando por inteiro.

Sendo assim, João, à medida que marca os seus pés pelos arredores do nosso grande Rio de Janeiro, traz nas mãos histórias fragmentadas que o tornam tão exatamente como ele é, e senão ele mesmo o sendo da maneira que lhe cabe ser: um malandro de Panamá que oculta através da sua aba o seu olhar e dele, as dificuldades em zelar-se, enquanto à primeira vista joga beijos para as morenas que atravessam o seu caminho.

NietzscheCywisnki
Enviado por NietzscheCywisnki em 29/04/2013
Reeditado em 29/04/2013
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