ENTRE O BARRO E O CIMENTO

AQUI TRAGO UM FRAGMENTO DO MEU ROMANCE "ENTRE O BARRO E O CIMENTO", ESCRITO ENTRE OS ANOS DE 1999 E 2001, QUIÇÁ UM DIA TAMBÉM VERÁ A LUZ.

APENAS A INTRODUÇÃO QUE, COMPOSTA POR TRÊS JUSTIFICATIVAS ELABORADAS POR LIVRE E ESPONTÂNEA PRESSÃO DAS PERSONAGENS, ANTECEDEM O PRIMEIRO CAPÍTULO. ESTA É APENAS A PRIMEIRA, DEPOIS DIVULGO AS OUTRAS DUAS E POR AÍ CHEGA.

Primeira justificativa

Exatamente assim: Eu não sabia quando ou por que acontecia, mas ficava louca para que acontecesse logo. Nem me interessava hora. Lembro uma noite em que me deitei bem antes do jantar. Minha mãe perguntou se eu estava doente. Na hora tive a malícia de responder que sim e doía-me o corpo inteiro. A intenção era ficar sozinha e isso ficou nítido no tom como falei, embora não escondesse que eu menti. Deve ter sido essa a razão de ela nem ter-me examinado a inexistente febre, como sempre fazia. Acho que repetiu umas duas ou três vezes a mais chata das frases que só as mães corujas sabem de cor. E suspirei de alegria quando saiu e fechou a porta. Corri e desliguei a luz; joguei-me na cama; era esperar que a doce escuridão (doce mesmo, sem exagero) do quarto me envolvesse, preparando-me... Tinha medo do escuro e depois de velha passei a ter muito mais. A escuridão do meu quarto era diferente: uma espécie de banho relaxante. Confesso ter dedicado longos anos da minha vida na busca de uma explicação científica a essa relação psicológica entre o escuro do meu quarto e mim. Corrigindo: mim e o escuro. O sujeito e o objeto, necessariamente nesta ordem. Eis a razão de a Psicologia ter entrado em minha vida. Serviu-me bastante. Por exemplo, hoje, quando tensa, já não fico pondo e tirando a pregadeira do cabelo, e por um motivo muito simples: não a utilizo mais. Entretanto, não explicou tal relação; se tivesse explicado, eu não estaria aqui escrevendo, nem você, leitor, me estaria lendo.

Volto, pois, àquilo para que o breu do quarto estava me preparando. E preparou-me, como das outras vezes. Porém nada aconteceu.

Passaram-se seis dias sem que nada ocorresse. Seis? Não lembro bem. Eu devia ter uns oito ou nove anos. O que hoje mais me intriga é o fato de eu ter ficado deprimida. Não como os adultos, que fazem tremendo esforço para exibir a depressão a fim de causar peninha nos outros, mas como um animal doméstico que só adoece quando solitário, quando abandonado pelo dono. Quase pirei. Cheguei ao ponto de em pleno meio-dia cerrar todo o quarto, vedar-lhe as gretas possíveis de claridade para transformar o dia em noite. E olha que eu adorava brincar com minhas amiguinhas. Mas tão logo me encontrava sozinha e lá vinham os sintomas. Até que, uma noite, aconteceu... Foi algo assim epifânico, extraordinário. Acordei na manhã seguinte como se estivesse flutuando. Depois sucedia quase diariamente. Assim foi por mais ou menos um ano e meio. Era tão bom que eu nem contava os dias e por isso não recordo a última vez.

Cabe um aviso: A pior tragédia que pode acontecer a uma pessoa (tirando a morte, que na verdade não é bem uma tragédia) é quando o mal lhe causa o bem. Não é o “mal” disfarçado de “bem”, como as drogas ou a bebida alcoólica, que até certo ponto provocam o bem-estar e o prazer, é um mal que jamais exibe sua essência má, portanto tudo nele só lembra o bem.

Eu gostaria de ir mais a fundo, de detalhar meu dilema, de pessoalmente revelar como o resolvi, e fazê-lo como faço agora: sem ressentimento ou dor de consciência. Mas um chato aqui ao meu lado, o narrador, não me permite. Alega que serei parcial, que evitarei certas verdades inconvenientes e me maquiarei para conquistar você, leitor. Tolice! Acha inconsistente uma narrativa assim tão direta e objetiva. Aceita que eu comece do meio ou até do fim, só não admite a ausência do início, fundamental à perfeita compreensão dos fatos. A mim não importa que o leitor compreenda ou reflita, importa que eu conte e ele entenda. Detalhes descritivos só têm duas serventias: encher páginas e a paciência de quem lê. E como escrever não é meu forte, meu negócio é ouvir e falar, porque é assim que pago minhas contas, passo a tarefa a ele, narrador, só que com uma condição: se relatar algum fato para o qual não dei permissão, imediatamente contatarei meu advogado.

Vá chato, comece.