A despedida de Deus

I – A visita

- Que merda! – exclamou Lucca, após dar o último gole em sua cerveja. Ele acabara de ler um e-mail de seu chefe. Na mensagem, o sujeito lhe dizia que, apesar de todo o seu bom desempenho no jornal local, seus serviços não eram mais necessários. - E o desgraçado ainda faz votos de felicidades. Que babaca!

Sozinho, Lucca pegou mais uma garrafa de cerveja. Era a terceira desde que recebera o e-mail de Júlio, seu atual ex-chefe. Ao ler o recado, ele pensou em ligar para o jornal e dizer mil desaforos ao seu desafeto, mas preferiu ficar quieto. Não ia dar esse gostinho a ele.

Júlio assumiu o cargo de diretor do jornal há uma semana. Em seu primeiro dia de trabalho, ele ameaçara Lucca, que trabalhava no veículo há um ano e meio. “Vou te colocar no lugar que você merece, Luquinha. Vou te dar oportunidades de ir longe! E talvez você não volte”, disse, com um sorriso irônico.

- Filho de uma égua! - Lucca estava deitado no sofá, o único amigo que nunca virou as costas para ele. Entre palavras e conversas com seu companheiro inanimado, o homem chorava, urrava e ofendia o mundo, “essa porcaria de lugar onde qualquer filho da mãe, se é que tem mãe um puto desses, pode detonar os outros impunemente”.

- E ainda exigem que a gente acredite na justiça de Deus! Como pedir esse absurdo para nós, que estamos tão sozinhos quanto uma árvore no meio do deserto? – perguntava, olhando para o teto. – Não acredito nem em justiça nem em Deus!

- Não me coloque nos seus problemas, Lucca. Não me culpe pelas suas desventuras. – respondeu um homem. A figura surgiu na sala do jornalista sem aviso prévio. Ele era alto e tinha ar indiferente. Seus poucos cabelos brancos davam-lhe um charme incomum. O sorriso sarcástico e olhar profundo pareciam mostrar a Lucca que ele era um grande conhecedor da miserável condição humana. Era irônico e, ao mesmo tempo, encantador.

- Meu Deus! - Lucca pulou do sofá, assustado, e ficou encarando o homem, que vestia um belo terno branco e sapatos lustrados.

- Exatamente! Como sabe? – perguntou o homem, em tom debochado. Ele parecia estar em casa. Sentou-se no sofá, cruzou as pernas e esticou os braços, admirando um Lucca completamente boquiaberto. – Acho que você precisa limpar essa casa. Como pode receber um visitante ilustre nessas condições?

- Amigo, quem é você? Eu não entendi como você entrou na minha casa e não estou gostando desse seu tom debochado. Pode me explicar? – o jornalista, de braços cruzados, olhava o homem que acabara de se estirar no sofá no qual ele estivera minutos antes.

- Mas você é meio lerdo mesmo, hein? Não me espanta que tenha sido chutado pelo Júlio. – ironizou o homem, sorrindo para o rapaz. – Opa, opa, opa. Vai me atacar sem me conhecer? – perguntou, enquanto Lucca ameaçava agredi-lo.

- Olha só, cara, eu não sei quem diabo é você...

- Olha, olha. Diabo não, menino. Tenha mais respeito. Eu sou Deus! – interrompeu-o, indignado. – Eu faço um imenso esforço para vir aqui conversar com você e sou recebido dessa maneira? Eu acho que você deveria ter respeito com os mais velhos. – alertou Deus, que acabara de pegar um cigarro na mesa ao lado do sofá.

Sem entender o que estava acontecendo, o rapaz abaixou o punho e ficou olhando o homem que pegou seu cigarro, sem pedir autorização, e fumava em seu sofá.

- Por que você compra dessa marca? Eu gosto mais daquela outra... Como é mesmo o nome? – tragou, enquanto tentava lembrar qual era seu cigarro favorito. – Você tem um café? Adoro fumar e beber ao mesmo tempo. É um dos meus hobbies favoritos. – sem pensar, Lucca foi até a cozinha e pegou uma xícara da bebida para o Todo Poderoso, que balançava os pés enquanto esperava o retorno do jornalista. - Está uma delícia. Obrigado!

- Será que você pode me explicar o que está acontecendo? – perguntou Lucca, com a voz fraca e o olhar perdido. Ele se sentou ao lado de Deus.

- Meu caro rapaz, há séculos eu sou insultado por vocês. “Deus não existe”, “Deus é injusto”, “Deus adora pregar peças”. Eu já não aguento mais essa sacanagem de colocarem o meu nome em tudo o que acontece. Eu fico puto! – exclamou, com a cara emburrada. – Achei que estava na hora de me defender. Eu não tenho com quem reclamar. Sou autoridade máxima. Fiquei cansado dessa palhaçada e resolvi aparecer para ter uma conversinha com você. O que eu e minha justiça temos com seus problemas pessoais? – ele encarava o jovem assustado.

Lucca, achando que se tratava de alguma peça pregada por algum amigo, começou a dar risada. Quanto mais ele ria, mais Deus se irritava com a situação.

- Olha só, meu senhor, eu não acredito na sua identidade. Deus não existe, e, se existisse, estaria ocupado com coisas mais sérias. Não sei e nem quero saber como você entrou aqui, mas já pode ir. Você conseguiu me fazer rir em meio a um turbilhão de problemas. Já tem seu mérito. Fez a sua boa ação do dia. – falou Lucca, enquanto se levantava para recolher as garrafas de cerveja que estavam espalhadas pelo chão.

- Escuta aqui, idiota, você acha que eu ia perder meu tempo para pregar peça em você? Está pensando que é quem para falar assim comigo? – disse, enquanto, misteriosamente, as garrafas quebraram na mão de Lucca. Estilhaços de vidros voaram por toda a sala. Assustado, o rapaz encarou Deus e sua celestial irritação. – Acredita agora, imbecil?

- Sacanagem, hein? Precisava quebrar tudo? Como vou limpar esses cacos de vidros? Nunca pensei que Deus, em pessoa, fosse chegar à minha casa e destruir minhas coisas. – ele olhava para o chão, com uma expressão triste. – Não esperava que o Senhor fosse assim.

Enquanto Lucca demonstrava sua indignação, Deus gargalhava da expressão do rapaz, que saiu da sala reclamando por ter que limpar sozinho toda a sujeira. Quando o jornalista voltou com o aspirador na mão, a sala estava limpíssima. Os móveis não tinham mais a poeira habitual que já fazia parte da decoração da casa. O chão estava brilhando. A casa estava cheirosa, e Deus, olhando o espanto do homem, sentiu-se satisfeito.

- Pronto. Pode parar de reclamar de mim. Será que podemos conversar como dois adultos civilizados? – Deus se sentou novamente. Lucca se acomodou ao lado do homem, ainda assustado, mas mais convicto da identidade do visitante. – Qual é o seu problema comigo?

- Eu não tenho problemas com Vossa Excelência...

- Vossa Excelência é a presidente Dilma, meu filho. Eu sou Deus! – interrompeu, impaciente. – Continue. E sem pronomes de tratamento.

- Então, como eu ia dizendo – recomeçou o anfitrião, demonstrando irritação – eu não tenho problemas com você. E, honestamente, ainda não entendi o motivo da visita. Eu sou ateu. Você deveria visitar seus fiéis. Não acha?

- Não, não acho. Eles iam ficar eufóricos, e eu detesto gente histérica. Você não sabe o quanto eu fico estressado quando eles transformam as orações em verdadeiros escândalos. Se me vissem, haveria um frenesi. Eu ia perder a minha pouca paciência, então preferi poupar minha saúde e vim conversar com você. – explicou Deus, usando, pela primeira vez, um tom cordial.

- Compreendo. Sabe, Deus, eu acho que você, por ser o Todo Poderoso, poderia dar um jeito nessa humanidade podre. Você não se arrepende de ter nos criado?

- Meu filho, essa foi a maior besteira que eu fiz na minha vida. Se eu soubesse a desgraça que seria, eu teria escolhido a solidão eterna. Eu me arrependo amargamente. E fico extremamente irritado quando colocam a culpa na cobra e em Adão e Eva. Eles são personagens fictícios criados na tentativa de fazer vocês pararem de perguntar de onde vieram, para onde vão, quem são, quem criou vocês e todas essas baboseiras. Usei meu dom literário e criei-os. É uma boa história. – explicou Deus, com um ar de vaidade. – Tem mais café? – perguntou o Pai, pegando outro cigarro.

Lucca, dessa vez, trouxe a garrafa e colocou-a ao lado de Deus, que sorriu e agradeceu. Enquanto enchia a xícara, o rapaz olhava aquele homem que estava em seu sofá. Era uma criatura fascinante. Tinha uma bela aparência e um jeito excêntrico e divertido. A última característica só era percebida quando você aprendia a lidar com ele. Apesar de sua facilidade em mudar de humor repentinamente, o jornalista estava aprendendo a se dar bem com Deus, que bebericava seu café.

- E quer saber mais? Fico indignado quando surgem campanhas para eu levar os maus e devolver os bons. Eu que não vou me sujeitar a ficar na companhia dessa gente horrorosa que vive nesse planeta. – disse, enquanto ria. – O azar é de vocês e do Demônio, que recebe toda essa gente nas profundezas do inferno!

- Então quer dizer que ele também existe? – Lucca estava apavorado com a informação.

- Claro que existe. Quem ia ser meu inimigo? É muito chato não ter quem ofender de vez em quando. Mas, tirando alguns atritos, eu e ele até que nos damos bem. Temos alguns planos para pôr em prática, mas isso eu não vou revelar. Sei que você é jornalista, Lucca, e sei em que você está pensando. – olhou para o rapaz, que deu um sorriso cúmplice. – Vou ser seu furo de reportagem! – e soltou uma gargalhada maléfica.

Sem pensar, Lucca correu para a sua mochila e pegou a caneta e o bloquinho, seus companheiros de longa jornada. Enquanto ele abria o pequeno caderno, Deus acendia e tragava outro cigarro, soltando a fumaça pelo nariz. Seu ar irônico era a principal característica. Ele parecia mais humano a cada palavra.

- Infelizmente, não posso trair meu companheiro que habita as profundezas terrestres, senão a matéria seria sua. Mas posso adoçar a sua vida com a minha nobre presença, e, além de dar o ar da minha santa graça, vou deixar você escrever um pouco sobre mim. O que pretende fazer? – perguntou, sorrindo entre a fumaça.

- Gostei de saber dessa aliança entre vocês. Eu posso contar a parte que você falou que Adão, Eva e a cobra são personagens? – o jornalista já tinha começado a anotar os principais momentos da conversa.

- Claro que pode. Mas, se você for considerado um herege, não coloque a culpa em mim. Eu já falei que fico puto quando me culpam pelas besteiras que eu não fiz. - disse, enquanto observava as anotações de Lucca. – De onde veio a vontade de ser jornalista?

- Deus, você é a fonte e eu, o entrevistador. Cada um no seu papel, por favor – Lucca não gostava quando seus entrevistados tentavam colocá-lo do outro lado. – Agora me diga o que você veio fazer aqui.

- Já disse que vim defender a minha honra. Eu estou cansado de ouvir “ah, mas Deus sabe o que faz”, ou “se não aconteceu, foi porque Deus não quis”. Eu tenho culpa de vocês serem acomodados? – questionou, olhando o que Lucca escrevia. – Gostei disso, rapaz. “Deus, livre de toda a etiqueta necessária entre os hipócritas, admitiu estar chateado com as palavras de suas próprias criaturas.” Só acho que você pegou leve. Sou curto e grosso e estou puto. Não sou chegado a eufemismo.

- É preciso não desagradar o leitor. Já pensou o choque dos seus seguidores se eu dissesse que o Senhor, o Pai de todos nós, está puto conosco? Eles iam ficar ofendidos. Palavrão não é coisa de Deus – ironizou Lucca. - E eu pretendo enviar essa matéria para todos os jornais possíveis. Tenho que pegar leve. Preciso de emprego.

- Maldita hipocrisia humana! Até hoje, eu me pergunto onde errei. – Deus levantou e começou a andar pela sala – Eu sou uma pessoa curta e grossa, mas tenho meus princípios, sou honesto e com um ótimo caráter. Tentei fazer os humanos com as mesmas virtudes, mas vocês só fazem merda. Calúnia, mentira, agressões, falsidade e hipocrisia. Eu acho uma pena o mundo ainda não ter acabado. Ah, eu seria mais feliz e despreocupado. – e se sentou novamente. – Agora me diz, meu caro jornalista, o que eu vou ganhar com isso que você está fazendo?

- Com a matéria? Vou avisar aos seus fiéis que você não suporta mais que seu nome seja usado em vão. Quanto a mim, quero ganhar um emprego, Senhor. Essa sua ajudinha vai ser fundamental. – disse, enquanto anotava sua apuração. – O que mais você tem para me dizer?

- Ah, sim. Eu tenho uma última coisa para falar – disse, ironicamente, levantando-se do sofá. – Você pode até conseguir seu emprego a partir do relato da minha visita, mas vocês, humanos, estão condenados à danação eterna. E eu me isento de qualquer responsabilidade. Não, esse mundo não é de Deus. Boa sorte com seu trabalho e em seu futuro. E não se esqueça de colocar a minha declaração final em sua matéria. – despediu-se, enquanto soltava uma gargalhada maléfica e desaparecia lentamente.

- Que sujeito sacana! – Lucca ria, enquanto anotava os últimos detalhes para concluir a sua matéria. – E, Deus, por favor, me ajude a conseguir um emprego. Como sabe, tudo depende de Sua vontade. Mas, se não for para ser, é porque o Senhor não quis. Sempre é assim. - Lucca ouviu um estrondo ao concluir a última frase e percebeu que conseguira, novamente, tirar Deus do sério. - Desculpe, Senhor. Vai com Deus! – ele, então, escutou os últimos ruídos do que havia sido uma gargalhada ironicamente celestial.

II – A revolta

Dois dias depois de receber a ilustre visita, Lucca terminou de escrever a sua matéria. Estava deitado em sua cama, relendo o relato da visita divina. No lead, resolveu colocar o apelo celestial para que os seres humanos parassem de culpar Deus pelas suas falhas, fracassos e desventuras. Esse tinha sido o principal motivo da vinda do Senhor. “Será que ele já sabe o que escrevi?”, perguntou a si mesmo, mentalmente.

Após reler o seu texto, Lucca pegou seu celular e ligou para um amigo que trabalhava em uma revista da cidade. Apesar de seu medo de parecer louco, contou a Patrick seu encontro especial.

- Lucca, você bebeu? Essa história não faz o menor sentido. Você tem foto para provar? Eu não vou entregar uma matéria sem pé nem cabeça, desculpe. Sou seu amigo, mas não vou arriscar meu emprego com uma loucura dessas. – disse o amigo, assustado com o que acabara de ouvir.

- É verdade, Patrick. Você sabe que eu sou ateu e não inventaria algo mirabolante assim. E eu esqueci que precisava de fotos. Ele foi embora antes de eu pegar a máquina. Eu preciso da sua ajuda. – implorou Lucca, desesperado.

- Desligue o telefone, Lucca. Falei com meus assessores celestiais e decidi te dar uma mãozinha. Vamos marcar uma coletiva. – sem se despedir, Lucca jogou o celular no chão e pulou da cama, assustado – Desculpe se não anunciei minha chegada. – de repente, trombetas e harpas soaram. – Pronto, cheguei formalmente.

- Eu quase morri de susto, Deus! Você tem essa mania de aparecer sem aviso prévio, eu sei, mas não custa anunciar de vez em quando. Questão de educação. – reclamou o jornalista.

- Que filho da puta! Eu te ajudo, e você me chama de sem educação. – disse, indignado, pegando o cigarro de Lucca que estava em cima da cama. – Cadê o isqueiro? – perguntou, olhando ao redor. Achou o objeto ao lado do abajur.

- Eu preciso divulgar essa matéria para conseguir um emprego, mas não vejo a menor chance. Eu tinha esquecido que, apesar da suposta fé em Deus, ninguém realmente acredita em você. Se eu disser que te vi, vão me chamar de louco, como acabou de acontecer. – Lucca abriu a janela, incomodado com a fumaça do cigarro de Deus – Será que você pode segurar o vício um pouco?

- Mas você está ficando folgado, hein? Fale direito comigo, não te dou confiança para isso. Agora estou mais puto do que antes. Então quer dizer que mesmo os fiéis duvidam da minha presença? Estou abalado. Você tem uma bebida para me oferecer?

- Uísque ou vinho?

- Uísque, por favor. Capriche. – Lucca saiu do quarto para preparar o drink para o visitante, que o seguiu. – Vocês são mais hipócritas do que eu pensava. Dizem que acreditam em mim, nos meus milagres, pedem mil coisas e agora negam a minha existência? Que raça ruim! – disse, irritado, pegando a bebida. – Eu quero provar a minha existência, e você vai me ajudar!

- Eu? Como? – Lucca não acreditou no que acabara de ouvir.

- Você é jornalista, não é? Vai ser meu assessor aqui na Terra. Estou garantindo a sua vaga no céu. Convoque uma coletiva de imprensa. Vou me apresentar oficialmente. Cansei das dúvidas acerca da minha existência.

- Meu Deus, que homem complicado! Eu que precisava de ajuda e, agora, você resolve inverter os papéis. – Lucca pegou o vinho e encheu uma taça. Bebeu um pouco, pensando na confusão em que havia se metido. – Eu realmente não sei o que fazer. Nunca imaginei que fosse ter problemas com Deus.

- Eu só me decepciono com vocês. Deveria ter criado mais animais, plantas, florestas e montanhas. Eles não me desapontariam, não me ofenderiam e jamais duvidariam da minha existência. – lamentou, sentando-se no sofá. – Quero outro drink. – disse, após o último gole. – Minhas próprias criaturas são meus algozes.

- Você fez um péssimo negócio quando criou a humanidade. Eu não quero te desanimar, mas foi o maior ato de burrice de todos os tempos.

- Pode parar de jogar na minha cara que eu acabei com a minha vida quando coloquei vocês sobre a Terra? Eu perdi a maior parte dos meus cabelos e o que resta está branco. Acha que isso foi porque o tempo passou? Não, foi por causa dos aborrecimentos que vocês me causam. Estou cansado de ouvir o meu santo nome sair da boca de pessoas que sequer têm dignidade para pronunciá-lo. – falou Deus, recostado no sofá, com as mãos na cabeça.

- Acho que já sei como vou fazer o release para convocar a imprensa. Você gosta de literatura, certo? Posso criar um release literário? – perguntou Lucca, pegando o papel e a caneta.

- Não sei como seria isso, mas faça o que quiser. Eu só quero resolver a minha vida para ir embora desse lugar horrível. Depois que eu acertar as minhas contas com vocês, vou deixar o Diabo tomar conta do que restar. Fiquei profundamente desanimado com a conclusão a que cheguei.

- E qual foi a conclusão? – perguntou, anotando o que dizia o seu novo assessorado.

- Que a hipocrisia humana não tem limites, e eu estou cansado desse desmando. Se não me respeitam e não acreditam em mim, não tenho mais o que fazer aqui. Cadê a minha bebida? – perguntou, usando um tom autoritário.

- Eu sou seu assessor, não seu escravo. O copo está ali, o gelo está na cozinha e o uísque, no armário. Sinta-se à vontade. – Lucca continuava anotando tudo o que havia sido dito pelo Todo Poderoso.

Lamentando a própria sorte, Deus se levantou e preparou a sua bebida. Nunca, em toda a sua existência aparentemente pacífica, havia passado por uma situação semelhante. Seu terno branco alinhado contrastava com a sua expressão transtornada e seus cabelos bagunçados. Os olhos negros transpareciam tristeza.

- Eu vou mandar todos para o inferno e vou reconstruir esse lugar. O Demônio que se vire com essas almas pecadoras. O que você acha? – perguntou ao seu companheiro.

- Acho uma boa saída para os seus problemas, desde que você não se esqueça da vaga que me prometeu se eu conseguisse te ajudar. – lembrou Lucca, olhando para o homem que estava na sua frente.

- Interesseiro. Continue assim e sua passagem para as profundezas está garantida. – alertou, enquanto o jovem ria do desespero de Deus. Lucca nunca imaginou ver o Ser Supremo tão transtornado.

- Eu preciso de meia hora para terminar o texto e convocar a imprensa. Isso vai ser um escândalo!

- Não gosto de escândalo, já te falei. Quero algo discreto. E, por favor, que isso se restrinja aos profissionais da imprensa, de preferência aos menos histéricos. Não quero euforia e alvoroço quando eles virem que eu realmente existo. – e deu um gole no uísque que havia preparado.

Lucca foi para o computador, que ficava em seu quarto, enquanto Deus ficou na sala. Para passar o tempo, ele resolveu ligar a televisão. “Filme idiota, programa sem conteúdo, sensacionalismo, assassinato, agressão, futilidades e novela. Não é à toa que esse mundo caiu em um poço sem fundo”, pensou, enquanto trocava os canais.

Deus parou em um canal religioso, no qual um homem gesticulava freneticamente e falava de maneira rápida e sufocante.

- Irmãos, vocês sabem que Deus tudo pode e tudo faz. Olhem ao redor, vejam como estamos. Filhos matam pai e mãe. Netos agridem avós. Assassinatos e acidentes são assuntos garantidos em nosso dia-a-dia. Precisamos mudar. – pela primeira vez, Deus se interessou por algo que passava na televisão e sentiu esperanças. – O Diabo está acabando com o nosso convívio e precisamos começar a eliminá-lo de nossas vidas hoje! Ajudem! Para conseguir tirá-lo de suas vidas, é necessário que vocês enviem seus dízimos. Temos que construir um ambiente apropriado para derrotar Satanás. Nossa pequena igreja não aguentaria esse trabalho. Ajudem e serão recompensados!

Sem acreditar no que acabara de ouvir, o Senhor ficou paralisado diante do televisor, onde o homem continuava a realizar sua lavagem cerebral. Havia um número de telefone na tela. Sem hesitar, Deus anotou o número e ligou para o lugar. Após uma musiquinha irritante, resolveram atendê-lo.

- Alô. Eu gostaria de falar com o pastor que está pregando neste momento. – pediu, de maneira educada.

- Senhor, ele está ao vivo, não pode te atender agora. E não sei se vai poder depois. Ele realmente anda muito ocupado. – informou a secretária. – Está precisando de oração? É só dar o seu nome que nós iremos rezar pelo senhor.

- Menina, aqui é Deus. Eu realmente preciso conversar com esse homem que não para de falar baboseiras para ludibriar as pessoas e... – antes que terminasse, a mulher desligou o telefone. – Que audácia! Desligou na minha cara!

Ele correu para o quarto de Lucca e se sentou na cama. Ficou olhando o rapaz, que digitava rapidamente e parecia profundamente concentrado.

- Preciso de um psicanalista. Pode me levar a um? – perguntou. Lucca olhou-o incrédulo. – Estão tentando enganar os fiéis com supostas palavras de Deus. Eu não diria metade dessas baboseiras a ninguém. Dizem que eu curo câncer, AIDS, hepatite e homossexualidade. Estou traumatizado. Preciso de ajuda especializada.

- Não seja dramático. Você está vendo essas coisas pela primeira vez? Onde esteve durante esse tempo todo? – ironizou Lucca.

De repente, a cadeira onde o jornalista estava sentado partiu ao meio. Após o estrondo, ele gritou.

- O que eu te fiz agora? Você é muito sentimental. Deus do céu! – disse, esfregando a coxa. – Doeu, sabia?

- Termina esse texto e convoca essa coletiva. Eu quero voltar para a minha casa. Esse aqui é o verdadeiro inferno. Nunca mais ponho os pés aqui. Falta muito?

- Estou terminando. – após dez minutos de silêncio, Lucca foi até a sala e ligou para alguns conhecidos que trabalhavam em diversos jornais de sua cidade. “Coletiva com Deus?”, perguntavam. “Você está bêbado?”, “Você está brincando comigo, né? Eu estou trabalhando, cara” e muitas gargalhadas foram as respostas que obteve. Ele voltou para o quarto desapontado.

- Isso vai ser um fracasso. Ninguém acredita em você. Deus está sem nenhuma credibilidade. Não existe ironia maior! – disse ao homem que estava deitado em sua cama, olhando para o teto. Sua expressão estava vazia. Ainda assim, ele conservava a elegância.

- Você acha que alguém vai? – Deus se sentou para encarar o anfitrião.

- Eu notei que alguns ficaram curiosos, mas não acredito que você conseguirá arrastar multidões dessa vez. – respondeu Lucca, enquanto Deus voltava a deitar, com a expressão de quem acabara de ser nocauteado. – Desculpe, eu realmente não queria te decepcionar.

- Vocês me decepcionam desde o dia em que nasceram. Mas não é nada pessoal – acrescentou, quando percebeu a cara de espanto do rapaz. – Eu não quero saber! Ligue para todos os jornais locais porque eu quero acabar com essa palhaçada logo. Se eu ficar mais um dia nessa Terra, eu vou cometer um ato de insanidade. – esbravejou, enquanto acendia outro cigarro. – Você quer?

- Não, obrigado. Vou continuar o meu trabalho. Espero que me renda bons frutos. – e foi para a sala. Lucca telefonou para todos os contatos de sua agenda, mas não recebeu garantias. Ele acreditava que ninguém havia engolido a ideia de uma coletiva com Deus. Era surreal demais. Mesmo assim, ele não desistiu. – Marquei a coletiva para amanhã. Não existe nenhuma possibilidade de ela dar certo. É muito complicado acreditar, mesmo para os mais convictos de sua existência.

- Eles vão pagar para ver, Lucca. Tenho certeza. Jornalista é curioso demais. Duvido que eu fique esperando por muito tempo. Eu criei todos vocês. Quer apostar? – provocou, enquanto ria. Lucca achava que a vinda de Deus tinha causado danos à saúde mental do Ser Supremo. Ele, a despeito da preocupação do rapaz, parecia certo de que tudo sairia conforme o planejado.

- Por que você que falar com todos esses jornalistas? – Lucca acabara de perceber que não havia ficado claro o motivo da reunião.

- Aguarde e verá. – respondeu sarcasticamente o homem que havia se apossado de sua cama e de seus vícios.

III – A partida

Lucca acordou com o som de trombetas e harpas invadindo o seu quarto. Nunca ouvira tanto barulho em sua vida. Ainda deitado e sonolento, tentou abrir os olhos. De repente, viu que o Criador estava em pé, na sua frente. Deus estava com uma aparência ainda mais bonita. Mudara o terno, mas os sapatos lustrados ainda eram os mesmos. Agora, a vestimenta era azul clara. E, diferente de outras vezes, ele carregava um lenço vermelho no bolso do terno. Parecia estar preparado para uma grande festa.

- Gostou da minha chegada? Anunciei-a como você pediu. Não queria assustar Vossa Santidade – ele usava um tom irritantemente irônico. Deus puxou a cadeira do computador para se sentar. – Será que você pode levantar da cama para se arrumar? Ou prefere que eu coloque a sua roupa? – e sorriu de maneira debochada.

- Você chegou muito mal. Poderia ter evitado a ironia e essa risadinha irritante. – Lucca já apresentava sinais de irritação com a presença de seu convidado. – Dá para eu me arrumar em paz?

- Claro! – respondeu Deus, acomodando-se na cadeira e olhando o jornalista descabelado que acabara de levantar da cama.

- Vai ficar me olhando mesmo? – Lucca estava extremamente irritado com a inconveniência divina.

- Não. Além de não gostar de homens, você não tem muitos atrativos, se é que me entende. – e se levantou da cadeira, gargalhando com as palavras ofensivas de Lucca. – Cuidado com o palavreado. Eu sou um senhor de respeito, mocinho!

“Não sabia que Deus era tão debochado. Ele está muito engraçadinho hoje. Está aprontando alguma coisa.”, pensou Lucca, após sair do banho. Colocou sua calça surrada, uma blusa social e seu all star preto e branco.

- Que roupa mais sem graça é essa? Exijo que você se vista de maneira mais adequada. Você vai me apresentar ao mundo, paspalho. – o jornalista deu um grito ao ouvir a voz que não sabia de onde vinha.

- Meu Deus! Dá para parar de me assustar? Que inferno! – gritou Lucca, enquanto seu assessorado ria de sua expressão transtornada. – Você tirou o dia para me infernizar, hein? Vamos logo antes que eu perca a minha pouca paciência.

Os dois entraram no carro do jornalista. A coletiva tinha sido marcada em um salão de festas da principal avenida da cidade. Temendo que ninguém aparecesse, Lucca resolveu que seria melhor aproveitar mais um pouco a companhia de Deus enquanto ele estava de bom humor.

- Por que você está tão alegre hoje? Sei que você é meio instável, mas eu estou te achando estranho demais. – questionou, curioso.

- Você vai entender, Luquinha. Eu estou feliz demais hoje. Estou a um passo de garantir a minha paz eterna e, sinceramente, não há nada mais valioso do que isso para mim. – e Deus sorria de uma maneira leve, como se estivesse perto de encontrar o caminho para a felicidade. – Eu nunca estive tão bem!

Ao entrar na rua do salão, Lucca foi obrigado a reduzir a velocidade. Repórteres, cinegrafistas, policiais, fiéis com faixas e cartazes e inúmeros curiosos se aglomeraram no local. Deus estava radiante.

- Eu não divulguei a sua presença para esse monte de gente. Você tem certeza de que quer entrar? Sei que não gosta de multidões. – Lucca parou o carro. Sem aviso prévio, Deus abriu a porta e saiu do carro. Estava charmoso e atraiu a atenção de todos os que ali estavam. O seu assessor também abriu a porta do veículo e se posicionou ao lado do Todo Poderoso.

- Estou preparado. Isso vai ser um escândalo! – exclamou Deus, passando pela multidão em direção à entrada do salão. Lucca olhou assustado para o homem que, agora, caminhava no meio de pessoas que apontavam, gritavam, choravam e cantavam para ele.

Sem olhar para o lado, Deus, sorridente, adentrou o salão e se sentou na cadeira principal, cujo espaldar era alto e brilhante. “Perfeito para o Ser Supremo”, pensou, vaidoso. Ao seu lado, Lucca se acomodou em uma cadeira mais simples e menor.

Flashes, gritaria, câmeras e tumulto enchiam o ambiente. Lucca pegou o microfone e pediu a todos que se sentassem para que ele pudesse apresentar Deus. As entradas foram fechadas e o silêncio tomou conta do lugar. Enquanto o assessor dava boas-vindas ao visitante inesperado, a porta foi aberta com violência. Por ela, entrou um homem magro, alto e com cabelos negros. Ao contrário da elegância divina, ele usava roupas simples. As calças justas e escuras ressaltavam as pernas grossas. A blusa e o tênis vermelhos deixavam-no com a aparência de um jovem rebelde. Os olhares de Deus e do Diabo se cruzaram. Ambos sorriram.

- Quem é você? – perguntou um repórter de televisão, esticando o microfone para o Tinhoso, que ainda não havia pronunciado uma palavra.

- Deixe-me apresentar meu convidado de honra. – interrompeu Deus, chamando o homem para se sentar a sua direita. – Esse, meus caros colegas jornalistas, é o Diabo em pessoa. – revelou. Gritos de pavor, mais flashes e pânico tomaram conta do lugar. Algumas beatas que invadiram a coletiva repetiam freneticamente o sinal da cruz e pediam que o Espírito Santo as protegesse.

- Mas o que eu estou fazendo aqui, meu amigo? – sussurrou Satanás no ouvido de Deus, tentando se defender da ira dos fiéis. – Pode me explicar?

- Parem com a palhaçada, seus hipócritas. – e, automaticamente, todos os insultos contra o Tinhoso cessaram. – Ele é meu convidado, mas, assim como vocês, não sabe o motivo de estar aqui hoje. – Lucca olhava assustado para Deus, buscando explicações.

- Eu estou de saco cheio de vocês. – continuou Deus, agora em pé. – “Deus, ajude-me”, “Deus, esteja ao meu lado”, “Deus, você é tudo para mim”, “Deus não existe”, “Deus está onde agora que eu preciso?”, “Deus vai me ajudar nessa luta”. Chega, chega! – berrou, enfurecido. – Eu cansei dessa palhaçada. A hipocrisia domina esse lugar. Vocês só fazem merda e, quando a situação foge ao controle, a responsabilidade é de quem? É minha! É minha porque eu estava dormindo. É minha porque eu não ouvi os pedidos de vocês. É minha porque eu não existo, então vocês acabam se danando.

“Eu enchi! Vocês são acomodados demais. Querem que tudo caia do céu. Sabe há quanto tempo eu não ouço um agradecimento sincero? Eu fiz a maior besteira da minha vida quando coloquei essa raça aqui. A Terra! Ah, ela era tão linda. Os bichos viviam em harmonia. A natureza era respeitada. O ar era limpo. As águas eram cristalinas. Tudo, tudo era paz nesse lugar. Aí eu tive a infeliz ideia de mudar um pouco o cenário e criei seres medíocres que, ao invés de me ajudarem a melhorá-lo, só serviram para destruir toda a beleza que existia aqui. De todos os mundos existentes, esse era o mais encantador. Todos falavam que eu tinha conseguido a maior proeza de todas as galáxias. A Terra era o maior exemplo de experimento que deu certo, até a chegada de vocês.”

Lucca tentava conter o homem exasperado que estava ao seu lado, mas não conseguia pará-lo. O Demônio estava preocupado e queria ajudar o jornalista, mas não conseguia se mexer. Estava boquiaberto com a reação de seu amigo. De repente, Deus puxou um molho de chaves de todos os tamanhos.

- Estão vendo isso aqui? São as chaves do planeta. Eu as utilizo para entrar e sair de onde quiser, no momento em que desejar. Estou doando a minha onipotência e onisciência. Cansei de vocês. – e, dirigindo-se ao Diabo, pediu que ele ficasse de pé. – Agora, eu passo a bola para ele. – e entregou as chaves para o Tinhoso, que estava completamente assustado com a situação.

- Eu? Eu não quero ficar responsável por esse lugar. O ser humano é pior do que eu. Tenho muito medo do que eles podem fazer comigo. Recuso, cara. Passe a bola para outro. – disse, empurrando a mão de Deus.

- Você me deve muitos favores, Satanás. Eu nunca te cobrei absolutamente nada. Chegou a hora de você retribuir. – e colocou o molho nas mãos do suposto inimigo. – Segura, os filhos são teus agora.

Após entregar as chaves e se despedir de Lucca e do Demônio, Deus, com toda a elegância que lhe era característica, saiu triunfante do salão, acenando com seu lenço vermelho para todos os rostos estáticos e apavorados que buscavam alguma explicação. O Diabo estava completamente assustado. Era a pior tarefa de sua vida.

- Ah, esqueci uma coisa. – disse Deus, voltando o olhar para os repórteres. – Para não perderem muito tempo, eu já pensei na manchete de vocês. “Deus abandona o barco.” – e gargalhou enquanto desaparecia lentamente.

O caos e a desordem estavam oficialmente instaurados.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 25/05/2013
Reeditado em 15/06/2015
Código do texto: T4308553
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