O momento de Clotilde

Clotilde olhou o relógio e pensou que ainda havia tempo. Não estava na situação da moça do filme (Cléo das 5 às 7), mas, nos últimos dias, tinha-se lembrado várias vezes das horas passadas pela jovem, que esperava por uma sentença de vida ou morte. No fim, o exame dava negativo. Não era bem o seu caso. Já possuía o resultado; do fundo da gaveta da cômoda,um envelope espreitava-a. Ao longo dos dias, arrastando-se pela casa hibernal, procurava não pensar no assunto. Tinha a sua disposição mais de duas horas, sem dúvida; mais de dois dias, com certeza; teria dois meses? dois anos?...

Caminhou pela cozinha, medindo os passos. Ainda na cama, havia recebido um telefonema da empregada, avisando que não ia poder vir. Na peça deserta, que lhe pareceu grande como nunca, deu-lhe vontade de fazer algo diferente. Uma receita sofisticada, quem sabe. Remexeu em recortes e revistas de culinária, desanimando diante do número de ingredientes exigidos pela maioria dos pratos. Decidiu-se pelo básico de todo dia. Da cozinha passou à sala de jantar, onde se esmerou na arrumação da mesa. Podiam vir, tudo estava em ordem.

Seguiu caminho até a sala. Por trás dos vidros, ficou observando umas crianças que passavam na rua. Falavam alto, riam, gesticulavam. Assim como seus filhos, quando carregavam seu entusiasmo para um lugar qualquer. Assim como seus alunos, de quem começava a sentir saudades.

As vozes foram perdendo volume, até que um silêncio abafado se instalou a seu redor, um silêncio que a encheu de pânico. O coração bateu célere, o suor umedeceu suas mãos. Coragem, falou a si mesma, coragem, voltou a murmurar. Imóvel, buscou forças para recuperar o autocontrole. Uma eternidade depois, acomodou-se no sofá e, na passada, ligou a televisão. Sons variados fizeram-lhe companhia.

Tornou a examinar o mostrador do relógio, as horas não pareciam avançar. Ruídos vindos da calçada deram-lhe novo ânimo. Não demorariam a chegar. Apareciam corados, falantes, atropelando os fatos. Diante dela que... Sentiu o rosto molhado, deixou que as lágrimas corressem, sem freios.

A campainha, por fim, soou. Os guris? Rapidamente, levou as mãos aos olhos. Ouviu um "mãe" no horizonte. Serviu-lhes o almoço, gratificada. Mais tarde, a sós com o marido, confessou:

- Não passei bem. Tive muita vontade de pegar o exame...

- Por favor, já te falei: o exame está bom.

- Mas...

- Clotilde, quero te dizer uma coisa: marquei o médico. Amanhã tu vais conversar com o psiquiatra. Vai te fazer bem.

O marido falava com ela como um pai falaria a uma filha pequena. O exame estava bom? E então? Encontrava-se muito mais confusa do que a moça do filme. A outra, pelo menos, tinha aproveitado intensamente as duas horas de espera. Solitária, aproximou-se da mesa e começou a recolher os restos da refeição.

Béti Mecking
Enviado por Béti Mecking em 30/03/2007
Reeditado em 02/04/2007
Código do texto: T431809
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