Duas pombas e um corvo

*Deixem suas opiniões, por favor. Elas nos fortalecem.

Não reagia em lágrimas há muito tempo. E naquele noite, sentado na poltrona de couro no interior de sua sala exageradamente grande, permanecia com seus sentimentos e emoções secas, rígidas e ásperas, assim como em todos os outros dias que viveu. A data que se seguia já não lhe valia uma pequena peça de latão. Pode-se questionar que aniversários não se pesa tendo como contrapeso, metais. Mas a comparação serviu apenas para desvalorizar o possível valor que ainda restava na vida do desgraçado homem que completava vinte e sete anos: Melo Montanhês.

A imponência do nome sempre lhe havia rendido respeito, até que foi tido como “demônio” ao ser encontrado sobre um cadáver desmembrado de um cidadão miserável da vila próxima à mata. Quando surpreendido ante o corpo, não disse uma única palavra, e após questionado, assumiu o ato. Nessa cena macabra Melo presenciava seus dezessete anos. Um carniceiro precoce! A família Montanhês não soube o que fazer a respeito, mas para aliviar a pressão, assumiram a responsabilidade de cuidar do filho com problemas de “transtornos”. Logo após a morte dos ascendentes da família, restou apenas Melo, os termos em terras e os valiosos bens herdados, e para continuar a ironia, também lhe sobrou os mesmos “transtornos”. A partir daí se trancou no forte deixado pelos pais, e só saia para continuar suas práticas macabras. Sempre à noite, onde sob a luz da lua, tingia em forte vermelho as terras do mundo.

O único ser, e inanimado ser, que ainda lhe prestava afago, mas ainda assim com certa relutância, era a poltrona, a velha poltrona herdada do pai. Mas naquela noite ela parecia mais revoltada que nos outros dias, e isso já estava sendo computado pelo tipo intolerante de Melo. Após se contorcer algumas vezes no assento, procurando a posição exata que o fizesse gozar ainda mais o calor que emanava das madeiras em chamas da lareira – mas em vão procurou –, sentiu-se atraído por consecutivas batidas que vinha da porta do cômodo ao lado. Ante a realidade, praguejou quase que com infindas palavras aquele infortúnio. Quem é que estivesse à porta sofreria as maldições do último Montanhês. O grande relógio em sua frente marcava 22: 05 horas. Logo se levantou rapidamente do móvel onde estava, amenizando as ondas de contrariedade que lhe sobrevieram há pouco tempo, e se deu ao fato de ter que atender a porta.

Enquanto seguia pelo grande corredor que unia a sala onde estava ao hall de entrada, pôde ver por uma das janelas que alí havia o corpo que dava luz, ainda que pouca, à noite silenciosa, e impedia os demônios mais recatados de saírem ao claro. Não era seu caso, e nunca foi. Naquela noite já estava disposto a “comemorar” sua data, mas de fato algo o consternava, algo que, antes de surgir o desejo de matar, já o acometia de forma sutil. Já na porta, e depois de abrí-la, se deparou simplesmente com um pacote no chão, embrulhado com papel colorido em listras. Não havia nome, nem data, nem envelope, sequer alguém esperando para o entregar, somente a noite e o pacote em dimensões quadradas. Tomou-o nas mãos, entrou e fechou a porta atrás de si, e em passos lentos seguiu novamente pelo corredor. Sem esperar pelo momento certo, se é que haveria de ter, rasgou o embrulho em listras com agressividade controlada. Não foi curiosidade e muito menos esperança daquele embrulho ser realmente um presente que o fez abrir logo a encomenda, mas algo o fez, e isso Melo não deixou transparecer. Ao ver o que havia dentro da caixa seus olhos brilharam intrigantementes, não era comum receber alguma coisa, muito menos duas pombas vivas.

– Que diabos das terras escuras enviaste-me esta oblação? – Disse Melo gritando, como se tentasse falar com alguém no último cômodo do casarão. As pombas, assustadas, tentaram voar de dentro da caixa, mas foram impedidos por terem seus pés atados à correntes e fixadas no fundo em madeira. Aquilo intrigou Melo, mas ainda assim não abrandou sua fúria.

Seguindo em passos largos à sala de onde sequer deveria ter saído, segurando a caixa com desprezo, praguejava ainda mais o ser que a ele enviou o embrulho. Marchava como um soldado descontente e de seus olhos suscitava a ira necessária para fulminar o mais feroz dos titãs. Ao chegar na sala, arremessou-se na poltrona e pôs-se a olhar as brasas já quase totalmente cinzas do que antes ardia em chamas. Logo lhe veio na memória o corpo nu de uma donzela jogada em uma fogueira. O corpo se desfigurava ao fogo a medida que novas memórias sobrepujavam às anteriores. E assim seguiu por alguns minutos. Vidas ao fogo, às aguas, enforcadas, ensanguentadas…Nenhuma que vencesse por misericórdia do “demônio”.

A caixa em sou colo logo se tornou o centro dos seu pensamentos. A maldade tomou-lhe a mente e conduziu-o à continuação do que antes denominara oblação. Se aquilo que recebeu fosse de fato uma oferenda, deveria ser conduzida como tal. Não testada, antes, entregue ao fogo. Tomou a caixa num gesto formal, segurando lateralmente com as duas mãos, e levantou-se. Conduziu-se vagarosamente à porta da lareira e ajoelhou-se frente a ela. Sem hesitar estendeu os braços e posicionou a caixa sobre as brasas de calor brando. Tomou alguns troncos lenhosos e colocou-os ao redor da pequena arca. Abriu o registro da chaminé permitindo que o ar circulasse, e o fogo logo subiu, vivo e pronto a queimar. Melo, por último abriu as partes que compunha a tampa da caixa e pôs-se a observar a agonia das aves.

– Receba, seja quem fores.

A crueldade de um homem começa antes do ato. Antes de tomar a faca, de tomar a vida. A maldade começa quando, na mente, os valores são rejeitados, as forças bondosas são vencidas pelas vontades insanas e o desejo da prática se torna maior que o receio da sabida consequência. A maldade está no homem, e no homem o que o faz mau.

Como que por evento inexplicável, uma das pombas soltou-se da corrente que a prendia e voou poucos centímetros até alcançar a borda da caixa. Começou a bater suas asas desesperadamente sobre o fogo tentando apagá-lo, mas em vão, as chamas já altas começaram a atingir suas penas e seu corpo, e da dor fez sua morte. A segunda pomba, vendo a outra caída sobre a lenha, estendeu suas enormes asas e puxou-a, levando-a para perto de sí no interior da caixa. Não havia mais nada a fazer. O que restou à segunda, e isso foi percebido por Melo, foram lágrimas a rolar dos seus pequenos olhos já cansados. Tentava cobrir a primeira com suas asas do fogo que já invadia, mas, idôneo, a queimava. Resistiu o máximo que pôde, mas também veio sobre ela o fim. O sacrifício estava feito.

O homem que assistia a cena não falou nada durante algum tempo, até que toda a lenha se queimou e revelou o pauco de curtinas fechadas do teatro da morte.

– Amém! – Disse Melo, tendo nos olhos a expressão da satisfação.

De súbito, de algum lugar da sala suscitou uma voz suave e penetrante que ao ouví-la não conseguiu atribuir a ninguém que conhecesse.

– Hoje o que queimou, ontem, por você, foi desprezado. Era necessário que visse o que rejeitou: a paz e o amor. Agora, que venha sobre ti a justiça.

Ainda ajoelhado ante as cinzas, sua atenção foi direcionada, de súbito, às vidraças da janela, as quais, quando as viu, já estavam ao chão. Um vulto negro adentrou a sala pelo vão que se formou e pôs-se a sobrevoar o interior da sala. Melo se levantou rapidamente e, começando a temer aquilo que ao certo não sabia o que era, tentou fugir, mas foi surpreendido pelas garras afiadas do vulto cravando suas costas.

“O corvo vem! E, voraz, devora as carnes pútridas da humanidade.”

Aqui se finda um demônio.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 13/06/2013
Reeditado em 13/06/2013
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