A lembrança que nunca se perderá
 
 
                                                                                “As lembranças se manifestam de uma maneira
                                                       tão misteriosa, não? Lembramos de coisas quando tínhamos 12 anos e  muitas
                                                  
                                vezes esquecemos o que fizemos 12 dias atrás. Acho tão intrigante isso! E fascinante.”
 


Aos dezesseis anos, em todas as tardes de domingo, lá estava ele, na fila de bilheteria do único cinema local, para transbordar sua mente, espírito e emocional como o que mais gostava; filmes. Logo no início, já não lhe interessava tanto as cenas, mas pensava, refletia e abstraia-se com o que mostravam as legendas:
“Estou empacotando meus pertences no xale que minha mãe usava para ir ao mercado e vou-me embora do meu verde vale e desta vez não voltarei jamais. Estou deixando para trás cinqüenta anos de memória. Memória. Estranho que a mente esquece tanto do que se passou há apenas um instante e retenha de forma clara e viva a memória do que se passou anos atrás." .Ele guardou aquele instante visual e auditivo em um  lugar especial do seu coração. 

A seu lado, a garota por quem ele tanto se interessava, brigava e brincava com ele, já não era tão interessante, Naquele momento ele não mais a chamaria de Angharad e até tinha esquecido que ela o chamava de Huw, gritando, lá de cima da colina, respondendo ao seu chamado. Passou logo esse instante meio que ébrio de emoções; a irmã, nem tanto, ela queria mesmo era estar do lado de fora, molhando os pés na água que ainda era transparente naquele vale cheio de carvão. Deixaram de lado as personagens que “vestiam” em cada filme que viam, e, já a partir da estátua da mulher que mantinha o braço erguido com uma tocha e a melodia era a mesma, a solfejavam de cor...Nem sempre a abertura era a mesma, mas David gostava mais desta.

Angeline e David agora mascavam Chiclete e acariciavam um as mãos do outro; ele, roçando levemente o rosto dela com um quase intocável beijo. Eles não foram ao cinema para ver o filme, mas para experimentar as mudanças cada vez mais novas que o corpo de um sentia ao toque leve da mão do outro. Impressionante! Eles de nada entendiam, mas gostavam. Nem perguntavam a ninguém. Queriam parecer estarem voando, era o bastante. 

O lugar onde moravam era quase igual àquele do filme, igreja, pastores, fiéis, fofoqueiras e pecados; muitos pecados sussurrados de boca em ouvido. Todos levavam nas mãos a Bíblia e uma pedra invisível para atirar assim que soubessem de um “escândalo” igual ou pior que o deles, trancado a sete chaves, ou enterrado sob uma pedra do piso da sala, com o pé do guarda-louça em cima.

Angeline em um conturbado domingo saiu da igreja correndo e foi vomitar no lugar mais perto que encontrou: escondida e abaixada entre os pés de narcisos ela sentiu-se aliviada: a broa que comeu pela manhã não lhe fizera bem. Entretanto as irmãs da igreja já tinham dado início ao “de boca em boca”, mesmo ajoelhadas. Todos já sabiam. À saída os comentários eram todos iguais: - só podia dar nisso - viviam juntos perto do rio - outro dia peguei os dois tão juntos que pareciam um só - coitados dos pais... Que desgosto! Os homens eram ainda mais cruéis. De auréola negra invisível, pareciam o verdugo, o “coisa ruim” a jogar raios negros, fedorentos e espinhosos. Faziam que ignoravam e nem sabiam, que “suas” mulheres sumiam à noite para “tirar a roupa do arame” que esqueceram ou para levar um chá para a vizinha que não se sentia bem... diziam em segredo, umas às outras  que  "é bom trair, eles gostam" Fingiam tão bem...
Os enamorados, não, todos viam os olhares, sorrisos, pele rosada, andar lento, os tocares e falares amorosos. Eles nada escondiam.

Mas David e Angeline casaram-se e cinco meses depois nasceu Hirinna, uma menina que parecia uma maçã., consistente e rosada. As irmãs da igreja e os colegas da mina de carvão, com  raras exceções, torciam para que outra notícia surgisse, vinda agora de outra filha, de outra irmã da congregação. Enquanto isto não acontecia, empanturravam-se nos aniversários de Hirinna, e de Irving, outro filho do casal, que, para inveja de todos, viviam em total idílio e pouco se davam ao trabalho de se interessarem por algo que não fosse os afazeres da casa e a escola dos filhos, apesar da decadência do local e da pouca e desinteressada dedicação da professora e autoridades "envolvidas".

Angeline e David fizeram mais um banquete com o pouco que guardavam: porcos, ovos, queijos, frutos cristalizados, vinho barato, desta vez, um pouco mais caprichado, para o festejo do cinquentenário de casamento.
Ela estava com setenta e dois anos e ele com setenta. Passaram da idade, diziam as "noticiantes de plantão"  na época do casamento. Os anos foram passando, correndo, como pessoas para se abrigarem da chuva ou da neve. O corpo de ambos foram adquirindo formas tortas, traços fundos, Os olhos já não brilhavam como antes. Quando penteavam os cabelos um do outro, sempre espantavam-se com as surpresas, mas nada diziam. David gostava de inventar penteados para mexer na sedosidade dourada dos cabelos da mulher (que já não eram tão sedosos) e Angeline vivia afundando carinhosamente os dedos na cabeça do marido, fazendo círculos que o faziam dormir gostosamente. Uma vez ele a pegou olhando para os dedos e tirando vários fios de cabelo castanho-cinza encaracolados. Olharam-se e sorriram: “eles estão fugindo”, disseram como se combinado estivesse.

Coisas estranhas estavam acontecendo. Ela perguntava ao marido logo cedo, para onde ele ia, dizia que precisava dele para ir à cidade. Quase nunca iam à cidade; os filhos compravam o que era necessário e o marido ainda não tinha sido dispensado da mina. Olhavam-se amorosamente após a pergunta e sorriam. A lembrança voltava, como querendo brincar de esconde-esconde.
Certa noite ele acordou com um barulho na escada. Angeline havia tropeçado na camisola e caíra dois degraus, machucando-se. Com carinho ele a levantou e disse:
- meu bem, você ia aonde?
- para que você quer saber? Quem é você?
-sou seu melhor amigo, estarei sempre com você, lembra?
- ah, sim! Leve-me então ao banheiro... obrigada!

Felizmente viviam uma época em que CTI nada significava para eles, muito menos o “mal do alemão”. Viviam felizes. Os filhos estavam por perto, sempre que podiam, os verdadeiros amigos também.

Numa tarde de verão, estavam juntos debruçados no beiral da varanda que circundava a casa, olhares distantes, lá no local onde o verde do vale é mais verde e os narcisos mais lilazes, mãos dadas. quando Angeline disse, aborrecida: - por que o apito da mina ainda não tocou? Nossos filhos precisam almoçar. Isto não pode continuar assim! Vou lá ver o que aconteceu e não me siga! Disse, olhando para David.
- Querida, não vá, deixe que eu vou saber o que houve (a mina já tinha fechado há anos) – vou trazer nossos filhos, não se preocupe.
- Ela o empurrou e, como o marido estava na beira de um degrau, caiu lá embaixo, quatro degraus depois. Ela olhou aqueles olhos cor de mel, por onde desciam lágrimas, e um lampejo de memória forte a fez gritar:
- David, meu amor! Perdoe-me, eu não queria isto! Desceu devagarzinho e segurou a mão do seu amado.
- Eu sei, minha Flor Lilás. Você nunca faria nada de mal comigo, eu sei. Venha... Levantaram-se com a ajuda de um casal de netos que nada entenderam .No dia seguinte, descerraram a porta e a vida se abriu para um dia gostoso, com chuva fininha, aconchegante, quando só podem acontecer coisas boas. Eles  ainda viveram juntos por poucos, mas amorosos anos. 


Quando o amor em conjunto exerce sua função de forma terna, cuidadosa e leal a memória se vai, mas volta. E nos piores momentos, ela não falha.

Eles despediram-se sabendo um, quem era o outro, do mesmo jeito que o coração e a memória transbordavam desta certeza, quando jovens.