Enterre seus mortos

Há muitos anos aquele quarto guardava caixas cheias de bugigangas: papéis, fotos, livros e objetos antigos. O pó teimava em se acumular sobre tudo, formando um véu que a impedia de chegar perto, ainda que houvesse grande desejo de esvaziar aquele espaço para dar-lhe outro uso. Um hóspede estava por chegar e era a oportunidade perfeita para se desfazer daquelas velharias de quase trinta anos, cujo destino ela nunca soube (ou quis) definir.

Num final de semana encheu-se de coragem e acordou cedo; colocou uma roupa de briga e aventurou-se pelo mar de caixas empoeiradas. No princípio desesperou-se, pois conforme esvaziava as caixas, o volume de coisas triplicava, e encontrar um destino para tudo aquilo ficava cada vez mais difícil. Chegou a pensar em simplesmente jogar as caixas fechadas no lixo, mas a curiosidade por rever o que estava guardado – combinado à vontade de reviver certos momentos bons do passado – cortou sua praticidade pela raiz.

Foram dias e dias de leitura, lágrimas, sorrisos, saudades fundas, vontade de se enfiar num buraco... O mergulho foi avassalador. Crianças próximas que agora eram adultas e distantes; amigos que juraram amizade eterna em cartas amareladas e que ela já não sabia mais da existência; paixões tão alegres e coloridas, agora apenas bilhetes com palavras vazias, exalando seu hálito de poeira e trincando o coração.

A cada noite, depois de ter passado horas a decifrar os hieróglifos de um passado tão diverso de sua vida atual, tomava um demorado banho e caía exausta na cama. E em cada uma dessas noites, todas as lembranças já mortas e enterradas ressuscitavam em seus sonhos, zumbis empoeirados e amarelecidos trazendo de volta um tempo que não existia mais.

Sonhou vividamente com amigos, amores, madrugadas, almoços familiares, festas juvenis, brinquedos quebrados, crianças pulando à sua volta; transpirava ondas de emoção e muitas vezes acordava chorando. Os zumbis de sua existência, revoltados por terem sido despertos de sua letargia poeirenta, atacavam vorazes seu sono; os esqueletos de seu armário despertavam-na com o tétrico chacoalhar de seus ossos brancos.

Depois de uma semana de pesadelos constantes, conseguiu resumir suas lembranças em três caixas novas, vermelhas, que enfiou num lugar oculto, alto e fundo, de um guarda-roupas também recém comprado. A dolorosa limpeza abafou a revolta de seus mortos particulares e renovou o quarto, que ganhou um sofá cama confortável para seu futuro hóspede. E foi com perfume de flor de laranjeira, tapete macio e lençóis secos ao sol que o hóspede descansou da viagem naquela noite.

... e foi naquela mesma noite que ele acordou assustado com um forte barulho. Acendeu o abajur e viu a porta do armário aberta e algumas caixas caídas, sem tampa, cujo conteúdo se espalhou pelo chão. Ao todo, três caixas. Vermelhas.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo "A revolta dos defuntos"

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