QUEM VIU O ZÉ CACHAÇA? - PARTE I I I

PARTE I I I

Tião ainda permaneceu quieto no mesmo lugar. Fez um gesto com a mão para que Ligeirinho desse a volta e se aproximasse de Zé pela frente. Ao perceber que alguém se aproximava, Zé tratou de esconder o álbum dentro da roupa o mais rápido possível:

- O que você quer? - Perguntou Zé, assim que Ligeirinho chegou mais perto;

- Carma moço! Eu sou o ajudante do Delegado!

E cadê o Delegado?

Nesse momento, Tião aproveitou para sair de onde estava:

- Estou aqui! Eu só vim te buscar pra te levar para a delegacia!

- Tá me prendendo de novo?

- Não! É que parece que esta noite vai chover e o Dr. Prefeito mandou te colocar lá na delegacia por causa da chuva!

- Não, obrigado! Estou muito bem aqui! - Zé estendeu o lençol sobre a relva e se ajeitou pra deitar;

- O moço não tá entendendo; quando aqui chove, é de arrancar toco de pau!

- É sim seu Zé! Se tú ficar aqui, amanhã não vamos nem encontrar esqueleto do senhor pra enterrar! - Corroborou Ligeirinho com as palavras de Tião.

Zé olhava para os dois homens parados à sua frente com o olhar de desconfiança. Abriu a sacola velha e retirou de dentro dela uma garrafa de cachaça; sorveu uma talagada das grandes, respirou fundo e finalmente falou:

- Tudo bem! Mas é só por esta noite! Amanhã eu tomo meu rumo na estrada! - Os três homens seguiram rumo à delegacia.

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Não demorou muito e após se ajeitar na cama que o Delegado lhe ofereceu, Zé entrou em um sono profundo. O Delegado esperou mais alguns minutos e foi revirar os trapos dele. Pouco tempo depois, encontrou o que tanto procurava; o álbum de fotos que vira Zé olhando e chorando.

Afastou-se da cama nas pontas dos pés, foi para um canto isolado da delegacia e começou a folhear o álbum. À medida que observava as fotos, começou a entender um pouco mais da situação daquele andarilho. Tião parou o olhar em uma foto que lhe chamara a atenção: nela, Zé aparecia segurando um buquê de rosas com um dos braços e um ursinho de pelúcia, o outro braço envolto no gesso e seguro por uma tipoia, o rosto ainda meio que inchado e alguns hematomas em volta dos olhos. Nitidamente, podia se perceber as lágrimas que lhe caíam dos olhos.

Tião resolveu tirar a foto do álbum para olhar de mais perto sob a luz fraca da delegacia, quando um pedaço de papel caiu; ele pegou o papel e abriu. Nele estava escrito: “25 de junho de 2010 – a última noite”. Ele ficou sem entender direito quando observou atrás da foto mais alguns dizeres: “o dia da minha morte”.

O Delegado ficou a matutar o que seria aquilo, quando sentiu um ar quente em seu pescoço; lentamente foi virando para trás e quase caiu quando viu Zé com os olhos arregalados e com uma expressão de raiva na face:

- Quem te deu o direito de mexer nas minhas coisas? - Gritou ele quase cuspindo no rosto do Delegado;

- Eu precisava saber quem é você realmente e...

- Isso não te dá o direito de mexer nas minhas coisas!

- Tudo bem! Será que podemos conversar, calmamente? - O Delegado tentava amenizar a situação.

Aos poucos Zé foi se acalmando e baixou o olhar. Pegou o álbum de volta das mãos de Tião e voltou para a cama. Balbuciou alguma coisa que Tião só entendeu as últimas palavras:

- Amanhã a gente conversa...

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Ligeirinho e Tião estavam sentados tomando café, quando Zé cachaça apareceu. O Delegado ofereceu um lugar à mesa para ele e pôs o bule de café à sua frente:

- Deu pra vós micê descansar? - Perguntou Ligeirinho;

- Um pouco! Mas deu pra quebrar o galho! - Respondeu ele;

- Aproveita que o café tá quente e o bolo saiu do forno agorinha mesmo! - O Delegado oferecia a Zé as coisas em cima da mesa.

Tomaram o café sem falarem muito. O Delegado deu algumas ordens à Ligeirinho e em seguida ele saiu. Tião aproveitou o momento a sós com Zé e perguntou:

- Aquela foto, em que vós micê está com rosas nas mãos e um bicho de pelúcia, tem alguma coisa a ver com sua família?

- Tem tudo!

- Quer conversar um pouco?

- É sempre a mesma coisa; em todo lugar que eu chego, as pessoas querem saber sobre o meu passado. Eu tento enterrá-lo, mas sempre alguém o ressuscita das minhas lembranças... - Zé falava consigo mesmo, olhando para a parede. Olhou para o Delegado e continuou:

- Aquela foto, a minha cunhada tirou no dia do enterro de minha esposa e de minha filha!

- Como assim? - Tião se acertou na cadeira, olhando fixamente para Zé;

- Foi no dia vinte e três de junho de dois mil e dez, voltávamos de uma festa junina e sofremos um acidente de carro!

- Por isso vós micê estava com o rosto ralado e o braço enfaixado?

- Ela tirou aquela foto e fez questão de me dar, para eu nunca esquecer aquele dia!

- Mas, por que diabos ela fez isso? Já não bastava você ter perdido a tua mulher e filha? - Indagou Tião;

- Porque o culpado da morte delas duas foi “EU”!

Zé pôs o rosto entre as mãos e começou a chorar. Tião permaneceu calado, olhando e esperando aquele homem sentado à sua frente desabafar. Ofereceu um guardanapo de papel e perguntou em seguida:

- Aquelas letras escritas na foto e no papel, foi vós micê que escreveu?

- Foi! Para não esquecer a última noite em que elas estavam vivas no hospital e o dia do enterro delas, em que eu morri para a vida! - Zé levantou-se e foi pegar a garrafa de cachaça em sua sacola. Tião foi atrás:

- Entendeu por qual razão eu procuro beber?

- A destilada não vai fazer o moço se esquecer do acontecido! Ainda mais se foi vós micê o culpado! - Havia sabedoria nas palavras de Tião.

- Naquela noite, eu passei dos limites..., sequei uma garrafa de whisque, tomei mais de sete latas de cervejas..., acho que uns dois tequilas e..., sei lá!

- Mas se tu bebeu tudo isso, por que foi que resolveu dirigir?

- Minha mulher escondeu a chave do carro. Eu briguei com ela e peguei a chave de volta. Para não me deixar voltar sozinho, ela entrou no carro com minha filha e..., ai..., eu bati..., dormi no volante..., só sei que eu fui o responsável pelas mortes delas! - Zé gritou em meio as lágrimas. Pegou a sacola e antes mesmo que o Delegado pudesse impedi-lo, saiu da delegacia em direção à praça.

Tião ficou parado na porta da delegacia, olhando ele descer a rua entre passos trocados. Voltou e pegou o telefone; apertou alguns números e esperou:

- Dr. Orlando? Preciso de um favorzinho de Vossa Excelência!...

EMANNUEL ISAC