Pesadelo?

A tarde estava sombria e abafada, sequer um vento atrevia-se a circular. No alto, grossas e pesadas nuvens cobriam todo o céu, aumentando ainda mais a sensação de opressão.

Dentro do quarto, a penumbra dominava todo o ambiente, só quebrada por pequenos feixes de luz, vazados pelas frestas da veneziana, refletindo as pequenas partículas de poeira esparsas pelo ar. Era um dormitório pequeno, bastante simples. A maioria dos móveis não combinavam entre si, cumprindo ali somente sua função prática, descuidando-se por completo da estética. Ao lado da porta, um armário de madeira, muito antigo, parecia ser a peça mais nobre de todo o cômodo. Do lado oposto, junto à janela, uma mesa e uma cadeira. E sobre a mesa, livros levemente desorganizados, papéis, canetas, uma rosa vermelha, já perdendo o viço, dentro de um copo com água. Nas paredes nuas, a gritante ausência de pessoalidade, nenhum quadro, nenhum retrato, nada que indicasse que qualquer pessoa vivesse ali em definitivo. No teto, um ventilador velhíssimo, funcionava sofrivelmente, parecendo apenas espalhar o calor ao invés de combatê-lo. No centro do cômodo, a cama, também em madeira, móvel que, assim como o armário, parecia trazer consigo alguma nobreza.

Atravessada sobre o colchão, alguém dorme. Os longos cabelos castanhos espalham-se em desalinho, contrastando com o branco dos lençóis. Gotículas de suor brotam do rosto de feições delicadas, escorrendo pelo pescoço e encharcando o tecido da blusa, já bastante colada ao corpo. Seu sono é inquieto, cheio de sobressaltos. Movimenta a cabeça de um lado para o outro, murmurando palavras desconexas. As feições então suaves, tornam-se tensas, aterrorizadas.

“Abra! Abra!” Batidas impacientes na porta pareciam querer coloca-la abaixo. – São eles! Pensou a mulher em desespero. “Só podem ser eles! Já sabem de tudo!” Senta-se na cama e tenta levantar-se, mas é como se uma incrível força a mantivesse no mesmo lugar. “O que faço?” Pergunta-se. “O que é que eu faço agora? São eles! Sabem de tudo! Melhor abrir a porta e me entregar.” Ponderou em meio a própria loucura. “Não! Jamais entenderão! Não tive culpa! Não foi minha culpa! Melhor fugir.” Pensou consigo mesma. “Salto a janela e desço pela calha até o térreo, depois resolvo para onde ir. Não posso ficar aqui e me entregar. Jamais entenderiam.”

“Abra! Sabemos que está aí! Abra logo senão será pior!” A voz cada vez mais impaciente esmurrava a porta, querendo entrar a qualquer custo, invadindo o ambiente.

Tentou ir até a janela, mas as pernas continuavam presas, pesadas como chumbo. O desespero começou a tomar conta de todo o seu corpo. Sentia na garganta um aperto sufocante, como se uma corda lhe envolvesse o pescoço em um laço mortal. “Assassina!” Vozes internas começaram a ecoar em sua mente, vindas de todos os lados, cada vez mais raivosas e ameaçadoras, cada vez acusando mais. “Assassina!” “ O que vocês sabem?” Murmura ela, com voz embargada. “O que sabem de mim?” “Vocês não sabem nada!” Disse, dessa vez gritando para as vozes, enquanto tentava em vão sair do lugar. Grossas lágrimas começaram a brotar dos olhos castanhos e a correr pelas faces. Jogou-se ao chão. Talvez conseguisse arrastar-se até a janela e então alcançar a fuga. Era como se tudo acontecesse em câmara lenta, como se aquele momento angustiante não fosse mais passar. Faltava-lhe ar, e o nó invisível apertava-lhe cada vez mais o pescoço. E as pernas insistiam em não funcionar, condenando-a à total imobilidade. Chora agora convulsiva, certa de seu destino, não há o que fazer.

A porta se abre, passos dentro do quarto. “Não!” Um grito rouco e desesperado sai da sua garganta.

“Lívia! Lívia! Você está bem, menina! Faz meia hora que estou batendo em sua porta.” Era a dona do pensionato, preocupada com a hóspede mais antiga. “O jantar já esta esfriando.”

Lívia levanta-se atordoada e vai direto a janela, abrindo-a por completo. Lá fora a brisa fresca que sempre vem após uma chuva. No ar uma mistura de odores; flores, terra molhada, e o cheiro delicioso que vinha da cozinha. No céu, a imensidão cinzenta de antes, havia dado lugar a algumas estrelas esparsas, brilhando naquele fim de tarde princípio de noite. Respirou fundo, como se pretendesse limpar os pulmões da atmosfera vivida à pouco. “Um pesadelo. Não mais que um pesadelo.” Ao longe ouviam-se, repicando, os sinos da Matriz.

“Dona Antônia”. Indagou a mulher. “Que toque é esse dos sinos? Está diferente.”

“Então ainda não sabe, menina! Foi morto o novo médico. Precisa ver, um pecado. Um rapaz tão moço, da sua idade.... Estão dizendo que foi um crime passional. Que mundo é esse, não é minha filha?”

Luciana Rodrigues
Enviado por Luciana Rodrigues em 10/04/2007
Reeditado em 11/04/2007
Código do texto: T444508