O Homem da Cabeça de Papelão

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem qualquer importância social. O País do Sol, como geral todos os países lendários, era o mais comum e menos surpreendente em ideias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a Capital, composta de praças, ruas, jardins, prédios e avenidas. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo. O povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor do imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do bom senso. Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância, era uma exceção mal vista. Isso porque, quando criança, sua respeitável progenitora, descobriu-lhe um terrível defeito: Antenor só dizia a verdade, não a sua verdade, mas a útil, a verdade verdadeira. Desde menino, o rapaz de boa família (tão boa que até sentimentos tinha) descordava das normas de seus concidadãos. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Impossível! Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de se vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Família, amigos, médicos e professores indignavam-se com a forma com que ele aprendia exatamente o contrário do lhe era ensinado. Era visto como louco. Até sua mãe encontrar um motivo para não ser forçada à expulsá-lo de casa: nada do que fazia Antenor, era por mal. Muito pelo contrário, era incompreensivelmente bom.

“É doido, mas é bom.”

Queria trabalhar, mas não era contratado, e quando era, meses depois o despediam por desobediência. Os parentes já não o cumprimentavam mais. Antenor começava à pensar na sua má cabeça, quando apaixonou-se por Maria Antônia. Achou justo pedir a mão da moça, que lhe deu uma resposta condicional:

- Só caso se o senhor tomar juízo!

- Mas o que você chama de juízo?

- Ser como os mais.

- Então você gosta de mim?

- E por isso é que só caso depois.

“Como tomar juízo? Como arrumar a cabeça?” Nos desatinos do amor, Antenor caminhava pelo comércio da cidade até avistar uma relojoaria, na placa dizia “relojoaria e outros mecanismos de precisão”. Achou graça e entrou.

- Traz algum relógio?

- Trago a minha cabeça.

- Ah! Desarranjada?

- É o que dizem, pelo menos.

- Em todo caso, há tempo?

- Não posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral.

- E o senhor vai ficar com a minha cabeça?

- Claro.

- Mas não posso andar sem cabeça!

- Enquanto a conserto, empresto-lhe uma de papelão.

- Regula?

- É de papelão! – disse o honesto negociante.

Dois meses depois, estava cercado de amigos, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado e sua amável mãe o via mentir, trapacear e ostentar o contrário do que era. Antenor não pensava. Agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a. Outras Marias ricas, de posição, apareceram e eram de opinião da primeira. Ele só tinha de escolher. Sua fama crescia cada vez mais, foi eleito deputado por todos, incluindo até o presidente da República. Anos mais tarde, quando nomeado Senador, desfilava pela cidade de carro quando voltou a ver a relojoaria. “Minha cabeça! Eu esqueci! Tenho que buscá-la” Entrou na casa do negociante e afirmou.

- Há um tempo deixei uma cabeça aqui...

- Não precisa dizer mais. Te espero ansioso desde que ia desmontar a sua cabeça... Tem se dado bem com a de papelão?... Não são tão más. Fabricação por serie vende-se muito.

- Mas e a minha cabeça?

- Aqui está.

- Conserto-a?

- Não.

- Não? Então o desarranjo é grande?

- Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio.

- Faça o obséquio de embrulhá-la.

- Não vai usá-la?

- Não.

E ao invés de voltar a viver no País do Sol como o rapaz que não conseguia ser nada mas que tinha uma cabeça brilhante, ele preferiu ser "Antenor, o homem que conseguiu tudo com uma cabeça de Papelão".

João do Rio
Enviado por Isabela Luiz em 22/08/2013
Reeditado em 23/10/2013
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