Pela Janela

PELA JANELA

Berná Fiuza

Maria Josefa Carminha ou Zefinha como era conhecida. Olhou com nostalgia sua

pequena casa da Vila Paraíso. Ali realmente ela viveu um paraíso. Era um adeus, havia doado-a a Mercedes, atualmente ela não tinha eira nem beira. Abriu a janela da sala deixando o sol iluminar o ambiente. Sorriu pensando nas visões de sua janela, aproximou-se dela apoiando seus cotovelos em seu peitoral, olhou a tela do horizonte como se estivesse se preparando pra ver um filme, seu próprio filme: viu-se abandonado pelo pai que a renegou ainda um feto, a própria mãe ingerindo beberagens e mais beberagens tentando um aborto sem sucesso, ela em trabalho de parto, após dar a luz, com tanta indiferença, sem se quer olhar o rosto do bebê, entregá-lo a avó e ganhar a estrada.

E assim, Zefinha foi criada por sua avó Tomila, mulher, interesseira, avarenta e ignorante, aos puxões de cabelos e de orelhas, trancos e barrancos. Apesar do maltrato e a pobreza a persegui-la desde o berço, ou melhor, da rede. Zefinha vivia sorrindo. Não tinha nem seis meses e já apanhava. Comia feijão amassado e pirão de pinga. Inda era saudável, bonita, de dentes perfeitos.

Nem bem ela desabrochou menina moça, já se viu obrigada a ser mulher pelo velho safado do seu Joaquim do armazém. Assustada e aos prantos, foi queixar-se á avó ao que foi submetida. Na esperança de um consolo ou ajuda. Em vez disso, levou muito bofetões na cara para aprender a ser esperta. Dá o xibiu de graça, nem pensar! Exclamou a velha. Bufando de raiva foi tomar satisfações com o sem vergonha do Joaquim, que conhecendo o caráter violento da megera, ofereceu-lhe de graça um ano de carne seca, toicinho e farinha de mandioca para ela ficar quieta. Ah, mas a velha barganhou! Queria mais garrafas de pinga, pinga! Só se Zefinha lhe desse de novo. Impôs seu Joaquim. Prontamente foi firmado o acordo entre os dois Canalhas. E Zefinha sem ter quem a protegesse se viu obrigada a servir seu corpo ao velho seboso em troca de algumas garrafas da branquinha para avó.

O tempo foi passando, sem o menor escrúpulo ou comiseração dona Tomila negociava a neta com outros comerciantes: Manuel da padaria, Tonico leiteiro, Carlão do frango... A menina mal teve oportunidade de iniciar o fundamental sem sequer concluí-lo.

Aos dezessete anos, cansada do domínio da avó e do abuso de seu corpo, pegou carona com um camioneiro. O pagamento como sempre foi seu corpo, mas ela nem se importou. O importante mesmo foi deixar para trás Serra das Cabras, sua cidade natal, nos confins de Mato Grosso. A pobreza do vilarejo em que vivia desde o nascimento, a exploração de sua avó e de seus sócios, num negócio em que ela era a mercadoria.

Comendo o poeiral da estrada na boleia do caminhão ela chegou á pensão de dona Clotilde, no Triangulo Mineiro. Que de pensão só tinha o nome: Pensão familiar da dona Clô. Na verdade, era mesmo um bordel de beira de caminho disfarçado de pensão. Embora achasse sua beleza chamativa apesar da magreza, dona Clô foi o único ser humano até aquele momento, que a enxergou como ser humano e a tratou com dignidade. Nunca a obrigou a se prostituir, viu logo que ela não tinha inclinação para a vida.

Sondando-a aqui e acolá, descobriu sua verdadeira vocação, ser escritora. A menina em lágrimas contou-lhe toda sua trajetória do nascimento até chegar a sua pensão e a tristeza de seu sonho ter ido de ralo abaixo. Dona Clô a olhou com seus olhãos verde Mata Hari, gesticulou as mãos de unhas pontiagudas pintadas de vermelho sangue. Abriu-lhe um sorrisão largo e perguntou-lhe: Menina, você nunca ouviu falar em supletivo primeiro e segundo grau? Zefinha ficou de boca aberta. Na verdade não. A mulher de imediato definiu a questão: ela ia estudar fazendo o supletivo, trabalhar em sua pensão em serviços de copa e cozinha. Mas ia lhe pagar um salário e lhe arranjar uma moradia. Lá ela não podia ficar! Corria o risco de ser confundida com suas meninas. Também, logo resolveu este problema, encarregou Mercedes, uma de suas meninas e seu braço direito, espalhar entre os clientes e entre as outras cabritas, noticia da chegada de sua sobrinha Zefinha, exigia respeito de todos por ela, por não ser uma dama da noite.

Ela pensou estar sonhando quando viu sua casinha. Simples, no entanto, só dela, com um quarto só seu, com cama e guarda roupa. Uma sala de visita com estofados e mesinha de centro. Cozinha com pia e uma torneira jorrando água, armário com pratos, panelas e talheres, uma mesa com cadeiras. Até um fogão a gás! E o melhor de tudo, um banheiro com um chuveiro que parecia um toró. Não mais se via carregando aquelas latas d’águas barrentas do riacho até o barraco da avó, debaixo de um sol causticante. Ela nunca teve nada disso. Sua cama era uma porta velha de madeira jogada ao canto do único cômodo em que dividia com a avó, comia seu pedaço de pão duro, sentada num tamborete, quando a avó estava sóbria e permitia.

Com sua simpatia contagiante, logo fez amigos na vila. Sentia-se importante, quando a vizinhança a cumprimentava com cordialidade. Ela adorava o cheiro de frituras e doces que vinha da casa de dona Irene, doceira e salgadeira de mãos cheias, diariamente ela tinha encomendas, por isso, os cheiros impregnavam continuamente a vila toda. Dona Irene nunca deixou de lhe levar uma prova de seus quitutes. A costumada a odores nauseantes e a comer pão duro com água, quando ela tinha um pouco de café dormido era uma festa. Os aromas das iguarias da quituteira lhe confortavam a alma e o estômago. Ela Também gostava dos moldes de dona Sarita, costureira. Que vivia com a fita métrica pendurada ao pescoço, suas primeiras roupas decentes, encomendadas por dona Clô, foram feitas por ela.

A sua casa era no início da vila e a janela da sala dava para a rua lateral, onde fervilhava o comércio e o tráfego de gente e de carros. Aos sábados, seu dia de folga, Zefinha plantava-se a janela observando o movimento. Conhecia todo da rua e ficava a fazer seus perfis: dona Quinoca, proprietária do Quinoca Bazar, com seu passinho miúdo. Cabelo preso atrás da cabeça com um birote, um sorriso nos lábios que nunca se apagava e a sua voz mansa encantava a freguesia. Sabia de muitas coisas. Até como tirar aquelas manchas difíceis das roupas, sua loja apinhada de mercadoria, sem espaço para todas, sugeria um depósito mal arrumado. Porém, ela sabia de todo o aglomerado. O que se procurava em sua loja, dona Quinoca tinha. Guarda chuva? Ela já perguntava: liso ou estampado? Botão? Madre pérola ou comum? Lantejoula? Dourada, prateada ou colorida? Elástico? Do fino ou do grosso? Deste modo, ela ia conduzindo seu bazar lotado de fregueses que se misturavam ás suas mercadorias. Seu Tobias, da oficina de carros, com seu vozeirão e o macacão sujo de óleo, inspirava confiança por ser procurado constantemente. Nunca deixou nenhum freguês na mão. Luzia, da L'uzias Butique, muita informada sobre as tendências da moda, não faltavam novidades em sua vitrine. Com quase sessenta anos, vestia-se com se tivesse vinte. Muito loira com suas saias curtas e seus decotes generosos, sucessivamente que Zefinha a via caminhando sobre seus saltos altíssimos, sentia certo receio que ela tropeçasse e seus seios pulassem para fora do decote, que mal lhe cobria os bicos. Dona Gardênia, da floricultura, com sua voz melodiosa passavam o dia cantando, enquanto vendia suas flores. Vez em quando, ela lhe dava um botão de rosa. Seu Maneco do mercado... quando cansava das pessoas, Zefinha contava quantos carros vermelhos, brancos, pretos, passavam só pela manhã.

Sabia quem vinha de longe todos os sábados, a cada quinze dias ou uma vez por mês, aproveitar as pechinchas do comercio. A janela era seu mundo encantado. Nem sentia suas pernas cansarem por ficar a manhã em pé debruçada sobre ela. Somente seus cotovelos revelavam às horas de apoio ao seu peitoral pelas manchas escuras e encardidas que se tatuaram ao longo dos anos.

Vinte anos. Dona Clô achou que Zefinha merecia uma festa. Nunca ela teve sequer um bolo de aniversário, e hoje ia ter uma festa! Sobre a mesa da cozinha estava um enorme pacote endereçado a ela. A dona da pensão lhe disse ser seu presente. Seu olho derramou grossas lágrimas quando o abriram lhe mostrando um vestido de organdi verde de saia rodada, sandálias douradas de salto alto, brincos e colar de strauss. Dona Clô disfarçando a emoção, lhe revelou ser sua toalete do baile de sua formatura. Zefinha a abraçou como estar abraçando a própria mãe. A dona da pensão também já não lhe escondia seu bem querer, como se ela lhe tivesse saído de suas entranhas.

Foi no baile que ela conheceu Jacinto e se perdeu de amor um pelo outro, dona Clô se decepcionou um pouco por ela não dar continuidade aos estudos, almejava que ela fizesse uma faculdade. Até já tinha guardado umas economias para esse momento. Contudo, não fez objeção ao casamento. Deu-lhe de presente o vestido de noiva mais bonito que encontrou. Fez-lhe a festa com as guloseimas de dona Irene. Pôs suas meninas em roupas de galas. Só faltou o noivo que não apareceu.

Pobre Zefinha! Viu seu mundo de sonhos desmoronarem. No entanto, não derramou uma lágrima. Em vez disso, teve um ataque de histeria, gargalhou por quase uma hora. Tiveram que lhe chamar um médico e dá-lhe um sossega leão para que ela não morresse de rir-se. Tempo depois, souberam por Mercedes, que o sujeito era casado no Pará e pai de dois filhos.

Profundamente decepcionada com os homens, Zefinha não quis se casar com mais ninguém. voltou aos estudos, colando grau anos mais tarde. Um dia viu seu primeiro livro publicado, Vila Paraíso. Foi um sucesso. Depois publicou outros e mais outros com seus personagens criados através da janela. Estava quase rica. Porém, uma dor maior feriu densamente seu coração, um infarto fulminante levou dona Clô embora. Mercedes assumiu a pensão que logo foi á banca rota.

Em vista dos tristes acontecimentos, Zefinha resolveu fechar sua casinha por uns tempos e sair de cidade. Comprou um apartamento de cobertura no Rio de Janeiro e mudou-se pra lá. Contudo sua solidão era imensa. Além do que, no Rio de Janeiro, ela não vivenciava os seus personagens, eles se distanciaram muito dela.

Numa noite, viu na tv uma reportagem de sua cidade natal, sobre uma velha indigente que morrera e não podia ser enterrado por não ter um túmulo nem parentes que providenciassem. A prefeitura passando por graves dificuldades, não tinha fundos de reserva para esses eventos.

Ela reconheceu prontamente a avó. Sem hesitação voltou a Serra das Cabras, todavia não foi reconhecida por ninguém, já não era a mesma pessoa, quando deixou a cidade, não passava de uma adolescente assustada. Magríssima de vestido de chita curto e decotado, que mal lhe cobria os ossos. Agora se apresentava como uma mulher bonita, educada, instruída. Vestida com elegância e sobriedade. Sem se identificar, usando apenas o primeiro nome. hospedou-se no único hotel da cidade, providenciando de imediato o enterro da avó. Embora não tenha comparecido ao sepultamento.

Nada havia mudado na pobre e medíocre cidade. Os filhos davam seguimento ás patifarias dos pais. Logo, ela ficou sabendo, que o filho do falecido velho e seboso Joaquim, estava de olho comprido nas duas filhas de Raimundo da varginha, Ana de sete anos e Rosália de treze. Até já havia lhe oferecido algum mantimento em troca das garotas. Ela precisava agir rápido. Ciente do que eles eram capazes em safadeza. Sabia também que o pai ia ceder. O flagelo da fome e o infortúnio da miséria era uma desgraça tamanha que entorpecia os sentidos e os sentimentos humanos. Uma besta que devorava sem piedade as entranhas e a dignidade de qualquer pessoa sob seu jugo.

Raimundo, Alzira, sua mulher, mais os oito filhos, pulavam de alegria ao descarregarem a carroça abarrotada de alimentos e um envelope recheado de cédulas de cinquenta Reais. Ela foi obrigada ao cinismo, como os velhacos de lá, a carroça como os alimentos, mais o envelope de dinheiro, em troca das duas meninas. Os outros oitos filhos eram homens, já taludos. Que se virassem! Sem jeito, o casal lhe disse que já havia entregado as filhas ao filho do falecido Joaquim, por um quilo de feijão e de toicinho. Ela lutou pra não demonstrar o quanto esta revelação a deixou fragilizada. No entanto, seus olhos pereciam dois lagos. Santo Deus! Que mundo é este, duas crianças indefesas só valem um quilo de feijão e de toicinho? Perguntava-se. Talvez tenha chegado muito tarde. Pensou. Ou talvez não. Ainda tinha esperança.

No mesmo instante, ela se apoderou do envelope e mandou que pusesse tudo de volta á carroça. A família se desesperou. Ajoelhou-se se arrastaram aos seus pés, implorando-lhes. Ela irredutível falava: Tragam-me as duas garotas e tudo isso será de vocês. Ameaçados de perderem o dinheiro e a carroça de alimentos, devolveram o toicinho e o feijão ao filho do velho Joaquim, que os ameaçou, os xingou, contudo, trouxeram as garotas de volta. Com a custódia das duas crianças ela deixou definitivamente sua cidade natal para nunca mais voltar.

Adotou as duas meninas. Colocou-as na escola e as tratavam como suas filhas, com a chegada das duas crianças, sua vida deixou de ser solitária e vazia, agora ela tinha uma família para se preocupar, amar, para dividir as alegrias, dores e tristezas.

Desconectou-se de seu filme com as vozes das filhas chamando-a de volta: mamãe, mamãe, anda logo! O que faz ai em pé olhando para nada? Ela fechou a janela sorrindo cheia de amor para as meninas. Abraçando-lhes respondeu: só estava olhando pela janela meus amores.

Berná Fiuza
Enviado por Berná Fiuza em 25/08/2013
Código do texto: T4451315
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