Assassinato na Rua Camaleoa

ASSASSINATO NA RUA CAMALEOA

Berná Fiuza

Ele estava na espreita há duas horas. O céu estava carregado, prenúncio de tempestade. Pra ele não importava, com ou sem tempestade ele ia permanecer em seu posto de olheiro. Paciência ele tinha de sobra, hoje ia lavar sua honra.

A estreita rua em paralelepípedo abrigava casas geminadas e velhas, ele fez seu ponto estratégico na esquina da rua, onde foi plantado um poste antigo, assemelhava-se a um barril gigante. De lá, acobertado pelo poste, podia ver quem entrava ou saia da rua.

O farol de um carro entrando na rua quase o flagrou rápido ele escondeu-se atrás do poste. Em mansidão o carro estacionou enfrente a casa de número cinco. Os pingos da chuva caiam grossos e abundantes, contudo, ele conseguiu vislumbrar a dama descendo do carro, de estatura média e esguia, vestia-se em preto, um chapéu de abas largas e um véu cobria-lhe o rosto.

Sorrateiramente a dama entrou na casa. O carro voltou em marcha ré com a mesma mansidão em que estacionou.

Ele estava sozinho novamente!

A tempestade já dominava a noite escura e sombria. O homem estava encharcado da cabeça aos pés, seu corpo tremia em espasmos. O envelope depositado no bolso interno de seu casaco queimava-lhe o peito. Tirou-o com cuidado para que não se molhasse, a mão trêmula o abriu. Pela décima vez o lê:

- Quem o está alertando é alguém que lhe tem apreço; sua mulher tem um amante há tempo. Seus encontros são nas quartas feiras, quando você vai ao clube jogar gamão com os amigos. Se quiser a prova vá até a rua Camaleoa número cinco.

Seu peito inflamado de ódio só pensava em desforra, eles lhes pagariam muito caro por essa traição. Enxugou os olhos com dorso da mão, em seguida, apalpou o bolso externo do casaco, para certificar-se de que o objeto estava lã, sentiu seu contorno e a frieza do metal. Suspirou profundo. Ia esperar mais um pouco, tinha que fazer a coisa certa!

Mais de onze horas. O homem caminhou com passos lentos até a casa cinco, parou enfrente á porta abriu a sacola ensopada pela chuva que carregava consigo, sem nenhuma pressa, procurou dentro dela um pequeno arame, quando o encontrou com gesto meticuloso introduziu-o na fechadura que deu um pequeno estalo e a porta abriu-se.

O homem adentrou na sala de mobília antiga. Observou diversos objetos espalhados nela: sobre um dos estofados, meias de seda feminina, um pé de sapato de mulher em salto agulha, um palitó, uma gravata, nas cores vermelhas e pretas. Ao chão, próximo ao outro estofado, um colete masculino em veludo verde musgo, sapatos também masculino, molhados e respigados de lama. Na ponta do corrimão corroído, pendurado meio aberto com alguns de seus objetos a mostra, uma bolsa de mulher e um cinto de homem. No primeiro degrau da escada, um brinco de vidro imitando esmeralda. Ele apanhou o brinco. Não, não tinha sido ele quem havia lhe dado. Só lhe dava jóias. Certamente foi o amante, um amante pé de chinelo pelo visto! Afinal, pra que ela ia querer um amante rico, se o trouxa do marido tinha rios de dinheiro.

Com um olhar de reprovação subiu lentamente a escada de madeira que rangia ao seu peso. Cautelosamente chegou ao hall. Sentiu-se enojado, gargalhadas e gemidos altos vinham do quarto. Ele foi se agachando de encontro á parede até sentir seu traseiro ao chão, dobrou as pernas escondendo a cabeça entre elas. Soluços desesperados sacudiram-lhe o peito. Por que ela lhe fez isso? Sempre a amou. Deu-lhe tudo! A única coisa que lhe pediu foi ás quartas feiras.

Os gemidos aumentaram em frenesi, o homem num gesto impaciente levou as mãos enluvadas aos ouvidos. Pouco depois...o silêncio. Ele levantou-se

dirigindo-se ao quarto, parou enfrente a porta hesitando por segundos abriu-a e entrou. O quarto encontrava-se na penumbra, intencionado em acender a luz, mas achou melhor deixar com estava, a surpresa ainda é a melhor estratégia.

O casal de amantes tinha adormecido.

Ele os olhou com desprezo, o homem encontrava-se de costa e a mulher de bruços com a cabeça apoiada ao seu peito. Num gesto incisivo e sistemático ele tirou do bolso de casaco o revolver, destravando-o colocou o silenciador. Mirou a cabeça da mulher e puxou o gatilho, ela apenas estremeceu!

O homem acordou em sobressalto, como se de um pesadelo. Sentou-se na cama o viu de arma em punho, seus olhos espantados o indagavam? Ele sustentou o olhar, como se surpreendido. Todavia não lhe deu tempo de esboçar um gesto, atirou em seu coração. O homem tombou pesadamente sobre a mulher.

Em instante, uma enorme mancha vermelha tingiu o lençol. Ele ficou olhando-os por um tempo, esperando algum movimento deles. Mas continuaram estáticos na posição grotesca em que caíram. Com passos pesados ele abandonou o quarto e a casa.

A tempestade havia cessado, seu único vestígio eram as calçadas ainda molhadas. O homem aspirou o ar da noite, estava mentalmente exausto, caminhou apressado até a avenida próxima, no trajeto encontrou vários sacos de lixo, abriu um deles, colocando dentro a sacola, a arma e as luvas. Não tardaria passar o caminhão do lixo!

Chegando a casa, foi direto para seu quarto, que se encontrava vazio, pareceu satisfeito, entortou a boca no breve sorriso. Tirou a roupa e foi para o banho, após a ducha quente sentiu-se mais relaxado. Quando retornou ao quarto estancou estupefato, sua mulher estava deitada na cama lendo um livro. Ao vê-lo lívido exclamou:

- Gurgel! Santo Deus! está sentindo alguma coisa meu bem? Como você está pálido!

Ele balbuciou algumas palavras sem sentido que a mulher não ouviu bem. Recuperando-se do fôlego e do susto a interrogou com aspereza:

- Onde esteve?

- Meu querido como você está perturbado! Eu lhe falei logo pela manhã, que ia estar na casa de Ondina. O quê houve?

- Nada que possa lhe interessar! Negócios!

Pela manhã, a mesa do café, a mulher diz-lhe que vai passar o dia fora, visitando a tia enferma. Ele nada respondeu. Continua com os olhos fixos sobre o jornal aberto em sua frente, procurando uma notícia. Assim que ela deixa a sala de refeição, ele faz uma ligação pra alguém marcando um encontro. Em seguida, sai apressado sem falar com ela. Por sua vez, ela dirige-se a uma saleta reservada e também faz uma ligação:

- Oi, sou eu, caiu o telhado!

Dois meses depois...

João Marcos Gurgel já havia tomado todas as providências necessárias que lhe convinha: nomeou um novo diretor para uma de suas empresas, convocou uma assembléia para votarem no novo presidente de seus aglomerados industriais, delegou seu cargo alegando stress, por recomendações médicas precisava de férias. Despediu-se dos parentes e amigos, como se fosse fazer uma longa viagem, dirigiu-se a sala da presidência no décimo andar, fechando-se lá. Abriu a janela e se jogou. Caiu ao chão como um pacote flácido.

Três meses passaram-se...

Abertura do testamento de Gurgel. Sua viúva ainda chorosa e inconsolável pelo seu suicídio está de olhos bem abertos e ouvidos atentos ao testamenteiro, que lê os últimos anseios do falecido: É meu desejo consciente e final, que todo os meus bens nessa cidade, pertença a minha amada esposa Isabel, pelos anos de afeição, amor e fidelidade que me dedicou. Compensando-a da injustiça de um contrato nupcial que lhe garantia apenas um terço de meus bens invalidado com nossa separação em vida ou a minha morte. Sob a determinação de que todas quartas feiras, durante dois anos, ela pernoite na casa número cinco da rua Camaleoa. O não cumprimento da determinação revogue-se ao contrário. Que todos os meus bens nessa cidade sejam doados a instituições de caridades.

Um ano fazia que Isabel e o amante dormissem nas quartas feiras na casa cinco da Rua Camaleoa, satisfazendo assim, o desejo de seu falecido marido.

Numa dessas quartas feiras, quando o casal de amante entrou no quarto, estacaram lívidos, o falecido encontrava-se sentado confortavelmente numa poltrona á espera deles.

- Eu sempre digo a mim mesmo, saber esperar é uma grande qualidade!

Como tem passado o casal de pombinhos?

- Guurgel! Você morreu!

- É verdade minha querida, mas hoje estou aqui em vista!

- Morreu coisa nenhuma Isabel! Já viu um morto tão corado e bem disposto assim?

- Também é verdade, meu prezado amigo e ex-advogado Leonel!

- Então diga-nos a que veio o que quer de nós?

- Calma, Leonel, tudo á seu tempo! Meu objetivo é uma conciliação, desfazer mal entendidos. Afinal, meu irmão falou tão bem de vocês; o melhor amigo e o infinito amor.

Fazendo do gesto a ação, o homem tirou da sacola ao seu lado, uma garrafa de champanhe francesa e duas taças de cristal. O casal os olhava desconfiados.

- Eu não confio nele Isabel, este homem não pode ser Gurgel, nós o enterramos. Quem é você realmente?

O homem sorrir enigmático antes de respondê-lo.

Eu sou irmão gêmeo de João Marco vivo com nosso avô na África. Os pouco parentes que me conheceram já partiram. Eu sou João Pedro Ou será vice

versa? Nós há muito sabíamos de suas traições, incluindo os desvios de dinheiro,

assim como as tentativas frustradas de vocês para tirar nossas vidas. Desde que o ilustre advogado e nosso amigo fiel, querido Leonel, tomou ciência de nossa decisão em nomear Isabel nossa herdeira universal.

- Por quê diabos está falando nós, nós, se até o presente momento, não tínhamos, conhecimento de sua existência, ou melhor, de sua falsa existência?

- Meu caro Leonel, somos tão idênticos que parecemos um só. Não dar pra saber que uma de nossas existências é falsa!

- Mas você morreu! Assistimos seu sepultamento e não tinha nenhum irmão seu presente. Quem estava em seu lugar?

- Pobre querida Isabel! Que confusão em sua cabecinha de pouco neurônios! Após derrubar o telhado de João Marcos, ficou tão ansiosa pelos seu espólio, que nem percebeu quem estava presente em seu funeral. Quem você acha que tirou a própria vida, João Pedro ou João Marcos? Ou será que ambos ainda vivem?

- Não nos venha com esse papo de assombração. Nunca soubemos que tivesse um irmão gêmeo, você é João Marcos certamente! Podemos provar exigindo um exame de suas digitais. Gostaria de saber como conseguiu enganar a todos?

- Estou disposto a colaborar com a verdade. Porém, como pode ter segurança de que sou João Marco ou João Pedro? Os mortos não voltam meu querido Leonel, mas o dinheiro compra tudo caríssimo, honras, consciências, segredos e silêncio!

- O que está querendo nos dizer com esses fraseados?

- Logo vão saber, meus caros.

- Meu querido, seja João Pedro ou João Marcos, se voltou com o objetivo de resgatar seus bens, è muito tarde! Pela Lei sou sua viúva e herdeira universal, enterrei seu corpo na presença de dezenas de testemunhas. A não ser que queira assumir seus crimes de mortes e falsidade ideológica?

- Isabelzinha, não há como provar tais crimes! Você herdou apenas um milésimo da fatia de nossa riqueza.

- Um milésimo? Mas Leonel sempre me diz que todos os seus bens me cabem!

- São a ganância meus queridos, que fazem determinadas pessoas que se dizem espertas não enxergarem o óbvio. Vocês atentaram para a palavra nessa cidade, duas vezes escrita no testamento?

- Eu não ia mesmo esquentar minha cabeça com palavras soltas no testamento, se o espólio foi feito nessa cidade. Além disso, Leonel também não percebeu nada fora dos parâmetros legais.

- Brilhante minha querida, brilhante!

- E o casal, você os matou, não matou?

- Ah, o casal amigos nossos, que sem o menor escrúpulo os enviaram ao matadouro. Matei-os querida Isabel? Onde estão os corpos?

- Você deve ter pagado para alguém desová-los bem longe daqui. Já que nunca foram encontrados seus corpos.

- Não deixa de ser uma possibilidade Leonel.

- Por favor, nos revele o que fez com eles?

- Nada sei a esse respeito, minha querida, a não ser deduções. Pense que as pessoas têm sonhos que almejam realizar, quando surge uma oportunidade não deixam passar em branco.

- Não entendi sua explicação.

- Era o que eu temia minha querida. Como lhe disse, são somente suposições.

Serenamente ele levantou-se pediu calma ao casal. Ele viera em paz,

honrar o desejo do irmão, esclarecer os mal entendidos. Entregou-lhes a garrafa de champanhe e as duas taças. Sugeriu-lhes um brinde ao amor, a vida! Mas que bebessem com tranquilidade para apreciarem a magia de seu sabor.

- Brinde a vida meus queridos, precisamente hoje! Essa e a derradeira vez que me vêem. O passado deve ficar no passado. Até a eternidade meus queridos!

- Espere! Você não vai brindar conosco?

- Só se for com água minha querida Isabel, já fui um alcoólatra!

- Viu meu amor, ele não pode ser João Marcos ele nunca foi um alcoólatra, nem morria de amores por bebidas alcoólicas. Embora nunca dispensasse uma taça de um bom champanhe.

O homem os deixa sos no quarto, mas fica parado no hall, ouve o estalo da rolha do champanhe escapando da garrafa, o borbulho do líquido derramando nas taças; risos, murmúrios... Alguns minutos depois... O barulho de uma taça ao chão e um baque surdo, em seguida de outra taça ao chão, outro baque surdo... Ele entra novamente no quarto, o casal está caído cada um para um lado, olha os corpos ao chão com indiferença; sorrir triunfante!

- Como eu lhes disse meus queridos, o dinheiro compra tudo, inclusive cianeto!

Tranquilamente ele deixa a casa na rua dá sinal para um táxi.

- Amigo aeroporto internacional!

Berná Fiuza
Enviado por Berná Fiuza em 26/08/2013
Código do texto: T4452257
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