GARRAFAS AO MAR

Na sexta-feira 13 de julho de 2007, meu filho se perdeu no mar e nunca mais voltou.

Membro da Associação Cristã de Moços da Ilha do Governador, ele desapareceu dois dias antes do 40º Encontro Nacional de Líderes, para o qual ele havia se preparado durante todo o ano, a fim de impressionar jovens voluntários acemistas de todo o país durante os debates sobre a Utopia da Inclusão. Meu Ricardo. Meu pobre Ricardo. Tão atencioso no trabalho com idosos, tão carinhoso com as crianças carentes, tão empenhado em fortalecer a família e a sociedade. Meu anjo. Meu santo. Um amigo fiel, um namorado casto, comportado, pacífico, que sempre agitou bandeiras brancas e jamais atirou pedras contra agências bancárias, igrejas ou fábricas da Ford. Meu filho Ricardo era um homem. Um homem perfeito.

Aquele passeio na Praia do Quebra-Coco parecia destinado a levar meu filho embora para sempre. Esgotado, após várias partidas de futevôlei, deitou-se dentro de um barco de passeio a fim de descansar e, anestesiado pela fadiga, não percebeu a maré que subia e que, sorrateiramente, levou-o embora. Bem, você deve estar se perguntando como sei disso, pois, se alguém me contou o fato de tal forma, é porque assistiu o que ocorria e poderia ter evitado a tragédia. É que... Ninguém me contou nada. Acontece que é assim que gosto de lembrar. E deve ter sido deste jeito mesmo. Afinal, as mães sentem tudo. Ao menos as boas mães, como eu.

Desde então, meu marido e eu jamais deixamos de procurar por nosso filho. Mesmo quando a guarda costeira da Ilha do Governador desistiu das buscas, mesmo sem o apoio financeiro de nossos amigos do Lions Club, que julgavam a causa perdida, Barbosa e eu prosseguimos no incansável intento de encontrar nosso príncipe, nossa riqueza.

Durante cinco anos, não houve sequer uma única sexta-feira 13 que eu não retornasse àquela maldita praia. De binóculo, garrafinhas de água Perrier, vistoso chapéu de palha trançada, com um grande laço azul e presilha dourada, discreto maiô e entrada de banho de renda branca e botões de madrepérola. Silenciosa e ligeiramente impaciente, eu aguardava – tendo os olhos cobertos por meus inseparáveis Wayfarer Ray Ban e voltados para o mar – que Barbosa armasse a cadeira e o sombreiro a fim de que eu pudesse aguardar pelo retorno de meu filho com o mínimo de conforto. Sempre levava comigo algum livro de Augusto Cury, pois apenas cápsulas de rivotril não são capazes de me proporcionar um adequado estado de graça.

As pessoas já me conheciam na praia do Quebra-Coco e gostavam de tirar fotos comigo. Me chamavam de Mãe Coragem, Mulher de Aço, Dona Esperança e tantos outros epítetos que espelhavam a grandeza de minha maternidade, a excelência de meu caráter e espírito. Não, aquele assédio não me envaidecia. As pessoas me davam força, beijavam-me as mãos, mas isto não me desviou nem por um segundo de meu propósito: Ricardo.

Então naquela sexta-feira 13 de julho de 2012, o impossível aconteceu. Barbosa pôs-se de pé e, com a mão espalmada sobre os olhos, mirou o horizonte. Antes que eu pudesse reclamar, pedisse que ele parasse de barrar o sol, percebi a pequena embarcação se aproximando da praia. Abarrotado de bugigangas, ainda trazia o barquinho dois homens e uma criança. Apesar da barba crescida e de estar um pouco mais magro e moreno, reconheci de imediato meu filho, através das lentes do binóculo. Sim. Era Ricardo. Era Ricardo. Mas não era ele. Não era.

Barbosa e eu corremos na direção do reencontro, emocionados, enquanto alguns passantes percebiam o movimento, sem ao menos saber que uma espera de cinco anos, finalmente, havia chegado ao fim. Nos abraçamos a nosso filho e fizemos tantas perguntas, tantas, agradecemos a Deus à benção alcançada, rimos, choramos. Foi uma cena bonita, verdadeira, destas de filme, entende? Mas foi em vão.

Pai, Mãe, esse aqui é o Oleg, meu marido. E esse molecão danado de lindo aqui é o Ganesha, nosso filho.

Como assim “marido”, Ricardo? Esse moço é seu “amigo”, não? Você deve estar confuso... Afinal, foram cinco anos de insolação. Muito prazer, Dona Soraya, eu sou a mãe do Cardo.

Não, mãe. Ele é meu marido mesmo. Estamos casados há quatro anos.

Casados? Como assim, casados?! E esse menino, Ricardo? Como ele pode ser filho de vocês? Não quero nem pensar nisso, meu senhor Jesus Cristinho...

Nós adotamos o Ganesha há dois anos e meio. Era ele o que faltava para que completássemos nossa felicidade.

Deixem-me entender. Espera, espera. Maldito rivotril, que não me deixa pensar! Me dê uma resposta para isso, Augusto Cury, seu filho da puta! Que história é essa de casar com homem, Ricardo? E onde foi que vocês arranjaram esse fedelho?

Bom, mãe. O Oleg decidiu ir embora da Rússia em maio de 2008, logo depois que o prefeito de Moscou, aquele canalha do Yuri Luzhkov, disse que iria prender qualquer ativista do movimento gay que se manifestasse nas ruas durante o feriado do Dia do Trabalho. Oleg teimou em ir pras ruas e, desde então, passou a ser perseguido pela polícia, talvez sumissem com ele de vez, se o pegassem. Temendo pela própria vida, ele conseguiu – com a ajuda de uma amiga tcheca, comissária de bordo – entrar como clandestino no avião pessoal do magnata Dmitri Rybolovlev, que rumava para sua propriedade na Flórida, a Maison de l'Amitié. Mas acabou sendo descoberto em pleno voo e atirado ao mar... Foi quando o resgatei e nos apaixonamos.

E, quanto ao Mogli, aqui?

Ganesha, mãe. O nome dele é Ganesha. Bem, o Nesha já não era muito querido em sua vila porque é um dalit, pertence à casta mais baixa na hierarquia da religião hinduísta. As pessoas não ficavam à vontade em terem por perto um ‘intocável” que carrega o nome de uma entidade cultuadíssima em todas as cerimônias religiosas da Índia. Isto sem falar que a família dele se converteu ao cristianismo e acabaram sendo massacrados. Só quem escapou foi o Ganesh. Assim... Escapou, em termos. Ele foi levado para Durban, na África do Sul, para que seus órgãos fossem retirados e vendidos no mercado negro. Mas aí um traficante israelense viu potencial no garoto, que se encaixava no perfil exigido por um padre argentino que havia encomendado uma criança exótica para a prática do catecismo íntimo. Quando atravessavam o Atlântico, o navio que os transportava foi atacado por piratas somalis, que atiraram ao mar todos aqueles que não teriam serventia nenhuma, inclusive, o nosso pequeno aqui. Alguém deve ter ficado com pena e atirado ao mar a tábua sobre a qual encontramos Ganesha. Assim que colocamos os olhos nele, sentimos que seríamos uma família. Acho que ele sente a mesma coisa, não é, meu pequeno Brama?

E quanto a essa tralha toda? Você não está pensando em levar pra minha casa um russo veado e um fodido indiano, não é?

O quê? Essas coisas? São nossos tesouros, coisas que as pessoas não valorizam e jogam ao mar: música de qualidade, boa literatura, álbuns de família, cartas de amor, tapetes bregas, televisões antigas, rádios de pilha, lembranças, desejos, sonhos, enfim... Aquilo que as pessoas juram não precisar, nos parece o mais caro dos presentes. E quanto ao veado russo e ao indiano fodido, não se preocupe. Nós só estamos de passagem.

Então é esta a vida que você vai levar, Ricardo? Perdido neste oceano enorme de incertezas, feito uma garrafa de náufrago?

A beleza das garrafas de náufrago, mamãe, é que elas sempre carregam misteriosas mensagens. Sei que a senhora teria escolhas mais adequadas pra minha vida... Mas é que essa foi a escolha de nós três, entende?

E você vai ficar aí parado, Barbosa?! Enquanto seu filho parte em cima de um barquinho fuleiro, pra viver essa relação imprópria e criar um filho ilegítimo?! Ande, homem! Diga alguma coisa!

Ricardo, meu filho, me leve com você!

27/08/2013

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 27/08/2013
Reeditado em 28/08/2013
Código do texto: T4454193
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