PASSADO PERDIDO

O sol já estava há poucas horas de completar sua caminhada pelo céu e os ventos de inverno açoitavam meu rosto enquanto eu descia do velho ônibus azul que circulava pela cidade.

— Mas será que nem mesmo quando você marca de nos encontrarmos você consegue chegar na hora certa!?

— Não enche. — respondi com um sorriso cínico. Aquele era Erick, um verdadeiro chato, mas meu amigo. Nos conhecíamos desde o ensino médio e entramos ano passado na mesma universidade para estudar história, nossa paixão em comum. O problema é que ele tinha a mania de se estressar só porque me atraso uma hora ou duas de vez em quando... Dá para acreditar!?

— Então... Aonde vamos?

— Lembra da pesquisa de campo que temos de fazer para o Sr. Mandrac? — fui falando enquanto caminhávamos pela calçada, minha voz carregada de animação. — Eu já sei aonde podemos encontrar pessoas para entrevistar. Procurei um pouco nos registros da prefeitura e achei sobre um prédio que consta como um dos mais antigos da cidade toda. Bom, lá diz que o dono dele faliu num tempo de crise e que ele ficou meio que abandonados, mas com sorte achamos um morador antigo lá.

Erick não parecia estar gostando muito da ideia, mas continuou andando mesmo assim. Depois de mais alguns minutos chegamos ao velho prédio e paramos em frente a entrada. Ele possuía apenas quatro andares e estava mais acabado do que eu havia imaginado: rachaduras, pintura desgastada e janelas com madeiras tapando o buraco de vidros quebrados compunham a aparência da estrutura decadente.

— Você não acha mesmo que eu vou entrar ai, né? Os únicos moradores que você vai encontrar são ratazanas do tamanho de cachorros e centenas de baratas. — ouvi a voz irônica do meu amigo do meu amigo covarde começar a dizer.

— Como sempre, medroso. Por que mesmo que eu continuo andando com você?

— Talvez porque eu seja seu único amigo?

— Não enche. — respondi rindo. Verdade seja dita, eu não era o tipo de pessoa que atraia muitas amizades. Somente os estranhos como Erick. Estranhos como eu. - Bom, se você não vai, eu vou sozinho. A história está esperando para ser descoberta. — proferi heroicamente e então entrei no edifício.

— Só não venha esperar que eu vá te salvar quando um drogado te arrastar pra dentro do apartamento dele... — o ouvi resmungar lá de fora, mas sem dar muita atenção.

A parte de dentro do prédio não devia em nada à sua aparência do lado de fora. Eu estava num pequeno salão fracamente iluminado apenas pela luz que entrava por algumas janelas. O cômodo possuía uma porta, uma parede cheia de caixinhas de metal onde deviam ser guardadas as correspondências e uma escada que supus levar para os apartamentos nos andares de cima.

Umas letras vermelhas, pichadas em uma das paredes, me chamou a atenção. Com um pouco de esforço consegui ler o que dizia: “Acorda, desgraçado”. Por que alguém escreveria uma coisa daquelas? Li mais algumas vezes até que finalmente dei de ombros e comecei a subir para os outros andares.

O piso de madeira rangia sob meus pés enquanto eu batia de porta em porta sem receber nenhuma resposta. O silêncio naquele local era algo tão sufocante quanto o cheiro de mofo que estava por toda parte. Somente quando eu já estava prestes a desistir é que algo diferente aconteceu: ao toque da minha mão a porta de um dos apartamentos deslizou, abrindo alguns centímetros e me permitindo ver o que algum dia deve ter sido uma cozinha, mas que agora era um amontoado de pó e móveis quebrados.

A quem eu estava querendo enganar? Só de entrar naquele prédio já dava para notar que não havia ninguém morando lá. O jeito seria descer e admitir que Erick tinha razão. Mas não ainda. Algo dentro de mim estava me impelindo a entrar naquele apartamento. Normalmente, quando eu sentia algo assim as coisas não terminavam muito bem, mas não era algo que eu conseguisse ignorar facilmente.

Engoli em seco e entrei. A cozinha dava em um pequeno corredor com três portas: uma à esquerda, que levava a um banheiro sujo; uma mais a frente, que estava trancada; e uma à direita, com um pequeno quarto que entrei para olhar melhor. Seria apenas mais um cômodo velho e empoeirado para mim, como todo o resto daquele lugar, mas algumas páginas embaixo de cama de solteiro chamou minha atenção.

Precisei usar a luz do meu celular para conseguir enxergar as letras naquela escuridão e então meu sangue gelou com o que li na primeira folha: “Diário de Thomas A. Felix”. Aquele era o meu nome. Quais eram as chances de eu encontrar um diário de alguém que tem o mesmo nome que eu!? Com as mãos tremendo levemente virei a folha e comecei a ler as outras páginas. Um grande nó começou a se formar em meu estômago enquanto meus olhos percorriam aquelas palavras.

Acho que devo começar me apresentando e depois devo me desculpar. Oi, eu sou Thomas, seu mais novo amigo. E sim, eu sei que já faz alguns dias desde que ganhei você e que ainda não escrevi nada. Me sinto mal por isso. Mas não entenda errado, não é que você não seja especial, o problema é que você é muito especial. Afinal, você foi um presente da minha mãe.

Ela é a melhor pessoa do mundo! No meu aniversário de oito anos, alguns dias atrás, ela me deu você e disse que era para eu te contar sobre tudo que eu tivesse vontade, que você seria meu amigo. Eu não tenho nenhum outro amigo de verdade. As outras crianças na escola parecem não gostar muito de mim, nem eu gosto tanto delas... mas isso não importa.

O que aconteceu foi que quis começar escrevendo algo importante em você, passei os últimos dias pensando nisso. Sem sucesso, é claro. Pelo menos até hoje. Hoje, nessa noite, tem algo que eu realmente preciso contar para alguém. Isso vem me perturbando e causando pesadelos desde quando consigo lembrar, mas mamãe me diz que não posso falar para ninguém porque faria com que o Coisa ficasse nervoso.

Como se ele precisasse de algo para ficar nervoso. Aqui, trancado em meu quarto, posso ouvir sua voz carregada de ódio. Também ouço os estalos dos seus tapas em minha mãe enquanto ela implora inutilmente que ele pare. Acontece quase toda semana: ele chega bêbado ou irritado e faz de tudo pra começar uma briga, minha mãe manda eu me trancar no meu quarto e então fico ouvindo todo aquele inferno sem poder fazer nada para ajudar. Dói em mim ouvir todos esses gritos. Dói em mim ver as marcas roxas pelo corpo da minha mãe. Dói em mim não poder protegê-la... Não importa quantas vezes eu passe por isso — e já foram muitas — eu sempre choro descontroladamente, trancado em meu quarto. A propósito, me desculpe por estar molhando suas páginas.

Mas o pior é que depois de tudo ela ainda insiste para eu parar de chamá-lo de Coisa e começar a chamá-lo de pai. Simplesmente não consigo... Não posso acreditar que eu seja filho de alguém tão desprezível. Já é difícil acreditar que minha mãe, tão doce e gentil, tenha se apaixonado por ele! Será que ele já foi uma pessoa decente algum dia? Não importa...

Posso te contar um segredo? Quando assoprei a vela do meu bolo de aniversário desejei que ele morresse.

Calafrios percorreram meu corpo ao terminar de ler aquelas palavras. Que vida terrível deve ter tido aquela criança sendo filha de um monstro como aquele. Eu sabia que, no nosso mundo, bastava ligar a televisão para vermos histórias ainda piores. Porém, fui afetado de uma forma estranha por aquela em minhas mãos, talvez porque o nome do menino era igual ao meu.

Foi lendo pela segunda vez aquelas páginas que percebi os contornos de algo escrito na parte de trás da última folha. Quando a virei vi grandes e grossas letras negras dizendo: “ATRÁS DE VOCÊ!”. Todos os músculos do meu corpo congelaram. De repente, pela primeira vez, tive uma real percepção do local onde eu estava: o cheiro de mofo, o silêncio total, o estado de abandono do prédio, a porta aberta atrás de mim que dava para o pequeno corredor daquele apartamento... tudo cresceu de forma assombrosa em minha mente, como um monstro prestes a me engolir.

— Calma, Thomas... — sussurrei para mim mesmo, meu coração martelando forte dentro do meu peito. - vou contar até três e você vai virar e ver que não há nada além de um velho corredor vazio atrás de você. Um... dois... três!

Realmente, não havia nada lá. Aquilo era só uma frase idiota escri... Então tudo aconteceu no que pareceu ser apenas um segundo. Ouvi passos pesados ecoarem pelo chão e a porta do final do corredor sendo destrancada. Uma figura vestida com roupas negras e um moletom com o capuz cobrindo o rosto passou rapidamente por mim, seguindo caminho para fora do apartamento e escadas abaixo pelo que consegui acompanhar com os ouvidos.

Precisei de alguns minutos para sair do estado de choque e conseguir me mexer. Coloquei as páginas do diário no bolso da minha blusa e, com as pernas ainda um pouco trêmulas, comecei a ir em direção a saída do prédio numa velocidade suficiente para sair rapidamente do lugar e ao mesmo tempo prestar atenção em cada sombra pelo caminho. Quase ri de alívio quando finalmente saí para o ar fresco da rua.

— Ei, Erick, você... — mas minha voz foi interrompida pela visão dele vomitando no chão, seu rosto ainda mais pálido do que costumava ser. Ele era um grande medroso e vivia se assustando por qualquer coisa, eu sabia bem disso. Mas apenas coisas realmente terríveis o deixavam naquele estado. — Ei, o que aconteceu?

— Não foi nada. — proferiu após alguns segundos respirando fundo e se recuperando.

— Nada?! Vamos lá, me conta. Saiu um cara correndo de dentro do prédio e você se assustou?!

— Eu já disse que não foi nada. Vamos embora logo. — sua voz mau humorada saiu como um tapa em meu rosto. Em todos esses anos eu nunca havia visto ele agir daquela maneira. Ele sempre foi o bonzinho e solícito, não o estressado revoltado com tudo. Esse era o meu papel!

Precisei correr para acompanhar seus passos rápidos que já iam em direção ao ponto de ônibus. Ele nem ao menos havia perguntado sobre o que encontrei dentro do prédio. Algo realmente estranho estava acontecendo. Naquele momento, para a sorte da minha sanidade mental, eu não podia imaginar que aquilo era apenas o começo.

Fui tirado pelo som do despertador do meu celular de um estranho pesadelo onde era obrigado a ver minha mãe apanhar repetidas vezes de um homem que nunca vi na vida. Era sábado, nove horas da manhã. Suor escorria pelo meu rosto e eu ainda podia sentir uma angústia apertar meu peito por causa das cenas do sonho. Isso só reforçava o sentimento de pena que sentia pelo pequeno Thomas, que teve esse pesadelo como sua própria realidade.

Entretanto, enquanto eu levantava e começava meus afazeres matinais, esses pensamentos ruins foram desvanecendo e dando lugar a uma dose de ansiedade misturada com grandes partes de felicidade. A maioria das pessoas aguarda os finais de semana com grande expectativa, esperando por horas de descanso ou diversão depois de dias repletos de obrigações chatas. Mas eu tinha um motivo ainda mais especial para aguardá-los e o nome desse motivo era Jullie.

A garota que me fez ver que o mundo onde vivemos não é um lugar tão desprezível assim e que, com a pessoa certa, ele pode até começar a se tornar agradável. Nos conhecemos no ultimo ano da escola, alguns anos atrás. Ainda podia me lembrar claramente de como, gaguejando de nervosismo, eu disse que a amava. E de como ela, com um sorriso que eu poderia descrever como a imagem mais bela que já vi na vida, disse que sentia o mesmo por mim. Infelizmente, a universidade em que ela entrou ficava em uma cidade um pouco longe e ela precisou se mudar para lá para seguir seu sonho de ser médica. Mas ainda assim conseguíamos nos ver quase todo final de semana.

Passei as próximas horas arrumando a bagunça que havia pelo meu apartamento e dando um jeito na minha própria aparência. Já era começo de tarde e eu estava terminando de preparar o almoço quando ouço baterem na porta.

— Ah, droga, lá vem a chata me perturbar. — disse em voz alta enquanto começava a me dirigir à porta, meu rosto estampado com um sorriso de pura felicidade. Mas ao abri-la não encontrei ninguém do lado de fora. — Amor!?

Olhei para os dois lados do corredor e não vi ninguém. Frustrado, já ia fechando a porta quando notei o envelope no chão. Alguns segundos se passaram antes que eu pudesse criar coragem de levá-lo para dentro. Ao conseguir, fui para a sala e sentei no sofá para examiná-lo melhor. Não havia selo, tampouco um remetente, apenas o papel amarelado e envelhecido pelo tempo. Um pressentimento ruim percorria meu corpo dizendo para que eu não o abrisse, mas ignorei. Meu coração acelerou no momento em que decifrei o seu conteúdo: páginas do diário de Thomas.

11 de novembro de 1994

Parece que não estou dormindo e isso não é um pesadelo. Já estou esperando há horas que eu acorde, mas não acordo. Não, realmente não é um pesadelo. É apenas a realidade, se é que tem alguma diferença. Entretanto, é bem provável que essa última tarde se repita constantemente nos meus sonhos pelo resto de minha vida: Minha mãe demorando para voltar do supermercado; batidas fortes na porta; o Coisa abrindo e falando com um homem que se identificou como policial; a notícia de que havia ocorrido uma assalto onde a vítima foi baleada...

Na hora eu não senti tristeza nenhuma, apenas a certeza de que nada daquilo era real. Então eu apenas sentei no meu quarto e esperei que minha mãe chegasse ou que eu acordasse na minha cama com o despertador apitando. Nada disso aconteceu; e a cada hora que passava, mais meu coração se afundava num imenso horror.

Não sei por que estou me forçando a registrar sobre esse dia. Nem ao menos sei por que ainda estou vivendo. Você sabe que esse pensamento já passou várias vezes pela minha cabeça. Você também sabe o que aconteceu quando eu finalmente tentei dar fim à minha existência.

Era uma tarde fria e eu estava sozinho no apartamento. Decidido, me dirigi à cozinha e peguei a faca mais afiada que encontrei. Quando comecei a pressionar a lâmina contra a pele dos meus pulsos a dor foi tão horrível que foi um alívio: ela percorreu toda a minha mente indo aos lugares anteriormente ocupados apenas por tristeza e medo. Cada gota de sangue que começava a escorrer pelos meus braços até o chão era um doce lembrete de que logo tudo terminaria, logo eu não precisaria mais me preocupar com nada.

Foi então que minha mãe chegou. A expressão em seu rosto mudou rapidamente de espanto para decepção até por fim virar raiva. Seu corpo tremia enquanto ela avançava em minha direção. Quando me alcançou, arrancou a faca da minha mão e a jogou no chão, desferindo em seguida um tapa que acertou em cheio o meu rosto. Fiquei totalmente sem reação pelos próximos minutos enquanto ela fazia um curativo em meu pulso, minha bochecha queimando com a força de seu golpe.

— Você não pode fazer isso, tudo bem!? — proferiu com uma voz irregular que mostrava que ela estava se controlando para não chorar. — Você nunca mais vai fazer isso. Você vai crescer... conseguir um bom emprego... vai encontrar o amor da sua vida e dar toda a felicidade do mundo para ela, pois isso será o bastante para que você também seja feliz. Está me entendendo, Thomas!? Promete que vai tentar fazer o que estou dizendo?

— Mãe...

— THOMAS, você promete que vai realmente tentar fazer o que estou dizendo? — gritou, dessa vez não conseguindo segurar as lágrimas que começavam a descer aos montes.

— Si.. sim. Eu prometo.

Eu sei que já te contei sobre esse dia, mas penso que talvez me ajude a manter minha promessa escrevê-lo de novo. Vou precisar de toda a ajuda possível.

Ao terminar as últimas palavras daquelas páginas um grande mal estar começou a tomar conta de mim, nublando toda a felicidade que eu estava sentindo há poucos minutos. Era algo que ia muito além de pesar pelo que eu havia lido: minha sala parecia tremer levemente; minha visão começou a se turvar; e o mais estranho, um apitar que ia cada vez ficando mais frequente se fez ouvir dando a impressão de que vinha de todas as direções.

Durante alguns segundos meu corpo foi dominado por todas aquelas sensações e eu senti que estava prestes a perder a consciência. Mas tão inexplicavelmente quanto chegaram, elas também se foram, restando apenas o som da minha respiração ofegante.

— Mas que droga foi essa!? — consegui dizer após recuperar o fôlego. De um dia para o outro parecia que minha vida havia virado um ímã de coisas estranhas.

Um novo som preencheu o ar e, ainda um pouco atordoado, demorei alguns segundos para perceber do que se tratava. Novamente batiam na porta, dessa vez de forma mais delicada. Guardei rapidamente a carta em uma gaveta e lavei meu rosto para só então ir ver quem era.

— Finalmente... — a doce voz tão familiar chegou aos meus ouvidos. Era Jullie. Seus cabelos negros estavam soltos e iam até a altura dos seus ombros, contrastando com a pele branca que tinha. Os olhos, castanho escuros, possuíam um brilho que me encantava todas as vezes que eu o via.

— Estava apenas testando sua paciência. — proferi sorrindo, logo em seguida envolvendo ela em meus braços e a beijando calorosamente antes mesmo dela entrar. Eu não queria esperar nem mais um segundo para sentir a maciez daqueles lábios rosados.

— Parece que alguém está animadinho hoje.

— Isso foi só uma amostra, nosso final de semana está apenas começando. Mas vamos entrar, nosso almoço está pronto e nos esperando, madame.

— Hum... deixa eu adivinhar! — levou a mão ao queixo e fez uma expressão de profunda concentração que me fez querer beijá-la novamente, tão linda ficava daquele jeito. — Eu diria que meu adorável chef preparou um requintado prato de macarrão com carne moída.

— Ei, como você sabe?

— Tirando o cheiro da comida e a mancha de molho de tomate na sua blusa!? Meu amor... a única coisa que você faz para comermos é macarrão com carne moída. Sempre! — o som de sua risada preencheu o ar e ela deu um beijo em minha bochecha.

— Ah é?! Não é todo homem que se esforça em cozinhar algo para a namorada, sabia?! Se as outras mulheres soubessem disso eu já teria uma fila de pretendentes esperando na porta do meu apartamento.

— Claro que sim, Thomas. — riu de novo.

Os poucos segundos da sua presença já eram o bastante para me trazer paz novamente. Não importava quão desesperado eu estivesse era sempre assim: bastava ela ficar comigo e eu começava a melhorar pouco a pouco.

A tarde passou enquanto comíamos e conversávamos. Todas as coisas estranhas que haviam acontecido iam sendo deixadas de lado pela minha mente e o mundo parecia estar voltando a ser um lugar normal. Mas não por muito tempo.

— O que é esse bilhete colado no seu espelho? — ouvi a voz de Jullie vindo do banheiro. Àquela hora o céu já começava a escurecer, mostrando o brilho das poucas estrelas que conseguiam aparecer sobre as luzes da cidade.

— Bilhete?! Que bilhete? — fui até lá e a encontrei lendo uma pequena folha amarelada, seu rosto mostrando uma expressão estranha. — Deixa eu ver.

Após algum tempo ela me entregou o papel, a expressão estranha ainda dominando sua face enquanto me observava lendo.

23 de maio de 1996

Você não vai acreditar! Parece que aquelas pessoas que dizem “Há um lado bom para tudo” estão realmente certas!! No final, apanhar do Coisa tantas vezes desde que minha mãe morreu fez de mim alguém realmente corajoso. Corajoso o bastante para enfrentar um grupo de idiotas que caçoavam de um menino. Bem... acabei sendo atacado por eles também, mas pelo menos eles foram embora algum tempo depois e deixaram eu e o garoto em paz.

Ele não tinha amigos, assim como eu. Mas o problema dele era outro: ninguém gostava de ficar olhando para aquele rosto rosado, enrugado e cheio de marcas do que parecia ter sido uma grave queimadura. Nem mesmo eu gosto muito. Porém, começamos a conversar após esse incidente e descobri que, ao contrário da sua aparência, a sua personalidade era bem agradável.

E foi assim que consegui meu primeiro amigo de verdade (depois de você, é claro). Ainda não sei muito sobre ele, mas vou te contando conforme for descobrindo. Ah, já ia me esquecendo: o nome dele é

A página possuía um rasgo irregular que havia cortado o final da frase, mas não era nisso que eu pensava no momento. “Como colocaram essa droga de página no meu espelho?!” Pensei. “Não é possível, simplesmente não é possível.”

Indignado, contei à Jullie sobre o diário de Thomas enquanto eu revistava cada cômodo do meu pequeno apartamento em busca de alguém que pudesse estar escondido lá. Não havia ninguém.

— Thomas... — não só sua expressão, sua voz também estava estranha, hesitante — eu preciso ir embora.

— O quê? Já? Pensei que ia passar a noite aqui comigo. Olha, não precisa ficar assustada com isso, é só alguma bobeira.

— Não é isso, é que... eu preciso ir. Tenho um trabalho para fazer, sabe... então acho melhor voltar mais cedo para minha casa. Não faz essa cara! No próximo final de semana eu pro... eu prometo que vamos ficar juntos.

— Se você diz...

Ela se despediu com um último beijo e me deixou parado em pé na porta. Aquela partida havia sido tão inesperada que nem ao menos me ofereci para acompanhá-la até lá em baixo. Agora a frustração daquela noite perfeita perdida tomava conta de mim e decidi que iria na casa do Erick arrancar qualquer informação que ele estava omitindo sobre toda aquela história. Ele parecia saber algo que não queria contar e, se não soubesse nada, pelo menos eu teria alguém em quem descontar minha raiva.

Subi no ônibus com a intenção de chegar lá de surpresa só porque eu sabia que ele odiava quando eu fazia aquilo. Entretanto, percebi que percorrer todo aquele caminho para encontrar a casa dele vazia só me deixaria mais frustrado, então liguei para ele. Alguns segundos se passaram até que atendesse.

— Erick?!

— Por favor... não. Para. Não, não, não, NÃO. — gritos desesperados de dor e de choro vieram do celular, arrepiando minha pele e fazendo meu coração bater forte. A ligação caiu.

Liguei para a polícia e em seguida tentei falar com ele novamente, mas ninguém atendia. Os poucos minutos que faltavam para chegar ao ponto de ônibus em que eu devia descer pareciam uma eternidade. Se eu não estivesse tão preocupado teria percebido o homem de roupas negras e com um capuz escondendo o rosto que dobrava a esquina indo na direção oposta a que levava à casa do meu amigo.

Saltei do veículo quando ele parou e corri pela calçada, já avistando a residência de Erick. Ao que parecia a polícia ainda não havia chegado. Encontrei a porta entreaberta quando a alcancei e, assim que entrei, um cheiro indescritível chegou ao meu nariz fazendo meu estômago embrulhar.

Estava tudo escuro e silencioso. Andei cautelosamente pelos cômodos, acendendo as luzes e segurando uma faca que havia pegado na cozinha. Sala de estar; Sala de jantar; Banheiro; Escadas; Corredor. Fui passando um por um até que cheguei na porta quarto do Erick. Pela intensidade do odor, agora quase insuportável, eu podia dizer que a sua fonte estava ali dentro.

Ao adentrar, a visão de um corpo totalmente desfigurado deitado em uma poça de sangue me atingiu ao mesmo tempo em que entendi o que era aquele fedor. Deixei a faca cair no chão e me curvei bruscamente para vomitar. Aquele era o cheiro de carne queimada. A carne queimada de meu amigo Erick.

O resto daquela noite de sábado foi um verdadeiro inferno. Assim que me recuperei o bastante do choque fui interrogado pelos policiais que chegaram minutos depois de mim. Contei apenas os detalhes mais básicos para eles, achei melhor não falar sobre as páginas de diário que eu estava recebendo. Afinal, uma coisa não tinha nada a ver com a outra, tinha!? Eu preferia acreditar que não.

Ainda fiquei lá em frente a casa tempo o bastante para presenciar outra cena horrível: os pais de Erick chegando. Eles haviam saído para fazer compras naquela noite, seguindo a rotina de suas vidas normais. Quando receberam a notícia do ocorrido suas faces se contorceram em pura dor e o grito de desespero da desolada mãe se fez ouvir por toda a rua.

Era muita coisa terrível para se presenciar em tão poucas horas. Assim que fui para casa troquei minhas roupas e tomei um longo banho para tirar o cheiro de carne queimada que parecia que havia impregnado todo o meu corpo, mas ainda podia sentir aquele odor mesmo após me esfregar freneticamente com o sabonete. Em seguida deitei na cama e fiquei lá até agora. Já devia ser início da tarde de domingo e eu não havia conseguido dormir nem um pouco.

Algo muito pior do que o cheiro perturbava o meu ser: a dor de perder um amigo. O único amigo. Erick era uma ótima pessoa e nesses últimos anos de amizade fez mais coisas boas por mim do que eu poderia agradecer, embora eu nunca tenha dito isso a ele. Mas ainda havia mais uma coisa. Uma coisa que eu estava desesperadamente evitando de pensar.

Será que aquilo tudo era culpa minha?! Foi minha insistência em entrar naquele prédio que causara aquela desgraça?! O remorso me destruía por dentro. Lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, não pela primeira vez naquele fim de semana e provavelmente não pela última. Comecei a considerar a ideia de contar à polícia minhas suspeitas. Era o mínimo que eu poderia fazer por Erick agora.

Motivado por aquele pensamento levantei da cama e me dirigi à sala em busca do telefone. Meu corpo estava dolorido e eu estava totalmente exausto, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Antes de discar o número da polícia, no entanto, percebi de relance um papel no chão da cozinha que parecia ter sido empurrado por baixo da porta. A minha vontade foi de xingar e começar a chutar e quebrar tudo o que eu encontrasse pela frente, mas estava fraco e cansado demais para isso. Derrotado, caminhei e alcancei o que eu já sabia ser outra página do diário de Thomas.

04 de fevereiro de 1998

Devo mais uma vez agradecer à minha mãe. Graças a ela e à promessa que me fez fazer eu consegui resistir e pude viver até chegar no dia de hoje. O dia em que eu finalmente encontrei alguma esperança de que posso ser feliz no futuro. Sim, você já deve estar imaginando, não é?! Eu estou apaixonado. E não é uma paixão qualquer, dessa vez eu acredito que possa ser amor de verdade. O melhor de tudo? Acho que ela também me ama. Você também já deve saber de quem estou falando, mas vou contar como tudo aconteceu. Primeiramente, nessa manhã

O barulho do telefone fez com que eu sobressaltasse, interrompendo a leitura. Corri para atendê-lo ainda com a folha em minhas mãos.

— Alô?

— Oi, Thomas!? — uma voz que me era vagamente familiar respondeu no outro lado da linha. Dava para perceber que se tratava de uma mulher idosa.

— Sim, ele mesmo. Quem é?

— É a Margarete, vizinha da sua mãe. Lembra de mim?

— Ah, claro. Lembro sim.

Uma pequena pausa foi dada antes que ela falasse novamente, como se estivesse organizando os pensamentos.

— Bem... não sei como falar isso e acho que não há nenhuma maneira certa de fazê-lo, então vou direto ao ponto.

— Sim?

— Sua mãe foi encontrada morta, agora há pouco.

— O quê?! — suor começou a escorrer pelo meu rosto e eu sentia que estava prestes a vomitar. A página em minha mão estava sendo amassada sem que eu percebesse.

— Olha, sinto muito. A polícia ainda está aqui e está investigando para descobrir o que aconteceu. Ao que parece ela foi morta na manhã ontem e ficou lá até hoje. Só descobrimos ela lá porque...

Desliguei o telefone sem mais conseguir ouvir aquelas coisas. Minha cabeça girava e minha respiração estava ofegante. Terminei de amassar o papel em uma bolinha e a joguei contra a parede da sala. Me deixei cair de joelhos e depois deitei no chão gelado da sala sem saber o que fazer. Primeiro o Erick e agora descubro que minha mãe também estava morta. E agora era quase certeza de que aquilo tinha algo a ver com o diário e com o cara de roupas negras que estava no prédio abandonado. Tudo culpa da minha idiotice.

Um calafrio percorreu meu corpo ao mesmo tempo em que as peças se encaixavam em minha mente. Eu havia recebido a página do diário contando sobre o amigo novo que Thomas fizera pouco antes de Erick ser morto; e como Margarete disse, minha mãe foi morta na manhã de ontem, mais ou menos o horário em que eu lia sobre a mãe do garoto. Agora... Olhei para a bolinha de papel amassada. Julie. Corri para o telefone, as mãos tremendo ao discar o número da minha amada.

— Atende, Julie. E por favor, não esteja gritando de desespero, por favor...

— Alô? — suspirei aliviado ao ouvir a voz calma dela.

— Julie, você precisa vir aqui agora!

— Mas Thomas...

— AGORA! — gritei descontrolado, não conseguindo conter mais uma onda de lágrimas que varria meu rosto.

— Si... sim. Estou indo.

— Não desliga, vai falando comigo, por favor.

Ela me obedeceu. Falou de bobeiras quaisquer enquanto me ouvia soluçando e chorando do outro lado da linha, preocupada mas sabendo que era melhor chegar ao meu apartamento para depois saber o que havia acontecido. Os minutos passaram enquanto eu morria de medo de que a voz dela parasse ou algo de ruim acontecesse, mas já não chorava mais quando ela finalmente bateu em minha porta.

— Viu?! Já estou aqui.

Desliguei o telefone e corri para atendê-la. A levei até o quarto e segurei nos braços dela como se tivesse medo de que ela pudesse sumir a qualquer momento. Olhei fundo nos seus olhos e comecei a me acalmar, pensando em como começaria a contar aquelas últimas tragédias. Entretanto, o sorriso de pena que surgiu de repente em seu rosto me desconcentrou.

— Meu amor, eu te amo — proferiu numa voz doce — e vou estar te esperando, está bem? Não se preocupe, tudo vai dar certo.

Ela não deixou que eu respondesse, selando a minha boca com um beijo. Demorou alguns segundos para que eu me soltasse dela, estranhando a situação. Minhas costas se arrepiaram. Um passo firme se fez ouvir atrás de mim. Virei apenas em tempo de ver um borrão preto se movimentar rapidamente. Senti uma forte pancada em minha cabeça e cai inconsciente.

Abri os olhos lentamente enquanto sentia minha cabeça latejar. O que é essa dor!? Me perguntava mentalmente. Que horas são?! Demorou alguns segundos para que as lembranças voltassem para minha mente, vindo com uma onda de medo que aumentou ainda mais quando percebi que havia alguém deitado ao meu lado na cama.

Com um sobressalto sentei no colchão. Embaixo de um lençol branco dava para se ver os contornos do corpo de uma pessoa de bruços a poucos centímetros de mim. Observei atentamente, mas não consegui perceber nenhum movimento. Tomando coragem, levei minha mão até a borda superior do tecido e o puxei.

Assim que reconheci quem era aquela pessoa percebi que preferia que fosse o assassino ali embaixo, pronto para me matar, mas não ela.

— Jullie?! — Toquei em seu braço, a pele gelada me causando arrepios.

Comecei a virar seu corpo para cima, lágrimas descendo pelas minhas bochechas. Ao ver seu rosto o horror foi tão grande que me afastei bruscamente, caindo no chão. Deitei ali mesmo e chorei, não tendo forças para fazer mais nada. A face dela, que um dia fora tão linda, agora possuía dois buracos negros no lugar aonde deveria haver olhos; os lábios haviam sido arrancados, deixando à mostra fileiras de dentes brancos; para completar, seu nariz era uma massa disforme e roxa que parecia ter sido esmagada por algo.

Por que tudo aquilo estava acontecendo?! Por que alguém resolveria assassinar cruelmente todas as pessoas próximas a mim?! Eu não fazia ideia e a dor das perdas não me deixava raciocinar direito. Tudo o que eu conseguia fazer no momento era ficar deitado no chão e chorar.

Aos poucos, um som se tornou cada vez mais alto parecendo vir de todos os cantos do quarto. Demorei um pouco para percebê-lo sobre meu choro. Era o mesmo apitar que eu havia ouvido anteriormente após ler uma página do diário de Thomas. Junto com ele, minha visão foi ficando branca como se meus olhos estivessem de frente para alguma luz.

Eram coisas demais acontecendo em tão pouco tempo e eu sentia que já estava começando a perder minha sanidade. Quem sabe eu já não estivesse louco?! Provavelmente policiais entrariam no meu quarto em alguns instantes e me prenderiam, alegando que assassinei três pessoas. E quando eu tentasse falar sobre páginas de diário e sobre um homem vestindo roupas negras eles explicariam que isso foi invenção da minha mente e que não haviam encontrado nenhuma folha de diário no meu apartamento. Eu não duvidaria muito de que essa era a verdade.

Minha mente girava com pensamentos ruins, dor e culpa enquanto aquele som e luz dominavam todos os meus sentidos. Porém, quando foram embora e eu me encontrei no chão frio novamente, uma decisão me acometeu rapidamente: eu iria novamente naquele maldito prédio. Algo me dizia que o cara encapuzado estaria lá e eu precisava encontrá-lo, se não para matá-lo, pelo menos para conseguir alguma explicação daquilo tudo.

Com algum esforço, suprimi toda a angústia que havia dentro de mim e foquei meus pensamentos na raiva, adquirindo uma calma fria e sedenta por esclarecimentos e vingança. Não demorou muito para que eu chegasse em meu destino. Parado na calçada, observei a fachada decadente do edifício. Já era noite, embora eu não soubesse a hora, e um vento frio uivava como que predizendo alguma tragédia.

Mal tive tempo de pensar, lá estava ele: em uma das janelas do primeiro andar, um vulto negro com forma humana se mostrava. Meus músculos enrijeceram por alguns segundos, mas a imagem do rosto de Jullie fez com que eu me movesse. Retirei uma faca e uma lanterna de uma sacola que havia pego antes de sair de casa e entrei correndo no prédio. Não queria que aquele assassino tivesse tempo de sair do apartamento em que eu tinha visto que ele estava.

O cheiro de mofo me recebeu assim que entrei e comecei a subir as escadas. Parei no corredor do primeiro andar. O silêncio reinava no local. Havia duas portas em cada uma das paredes laterais, todas fechadas, e no final estava uma escada que levava para o próximo andar. Pela posição da janela em que ele estava, eu sabia que ela pertencia ao apartamento da primeira porta à direita.

Girei a maçaneta e a abri alguns centímetros, deixando-a entreaberta. Com a lanterna ligada na mão esquerda e a faca na direita, chutei a porta bruscamente, fazendo com que ela batesse na parede para garantir que não havia ninguém escondido atrás dela. O feixe de luz varreu nervosamente a velha e empoeirada cozinha que aparecia na minha frente. Não havia ninguém lá. Onde estava aquele maldito?!

O medo começava a fazer meu estômago revirar, mas eu precisava seguir em frente. Assim que andei dois passos para dentro do cômodo, o som de passos fortes vindos lá de fora quebraram o silêncio, me sobressaltando. Olhei para o corredor a tempo de ver o homem de vestes negras subindo as escadas. Não pensei duas vezes, comecei a persegui-lo correndo o mais rápido que conseguia.

O que eu mais temia ao entrar no prédio era que ele podia se esconder em qualquer canto e me pegar de surpresa. Mas agora eu sabia onde ele estava e o fato dele ter corrido de mim me dava ainda mais coragem. Deixei uma raiva insana tomar conta da minha mente enquanto corria atrás dele. Segundo andar. Terceiro andar. Minha mão doía, tão forte eu segurava o cabo da faca. Quarto andar.

Por fim, saímos na cobertura do edifício. Ele parou a meio caminho do parapeito e se virou para mim. Parei a poucos passos dele, arfando. O capuz cobria boa parte do seu rosto, deixando apenas seu queixo e boca à mostra. Saliva voava da minha boca enquanto eu falava, tanto pelo ódio quanto pelo cansaço que eu sentia.

— SEU DESGRAÇADO. Quem é você? Por que matou aquelas pessoas?

Ele apenas continuou na mesma posição, sem dizer nada. Não aguentei mais. Larguei a lanterna no chão e avancei ferozmente, caindo em cima dele no chão e posicionando a faca em seu pescoço. Porém, ao ver o rosto que estava embaixo do capuz eu congelei. Aquele era com certeza o último rosto que eu imaginaria ser o do assassino. Senti vontade de vomitar. O que diabos estava acontecendo?!

Saí de cima dele e me arrastei para trás, sentando no chão. Ainda em choque, larguei a faca e apenas observei enquanto ele levantava e descobria sua cabeça completamente. A face que eu via era exatamente a mesma que a minha. Agora eu tinha quase certeza de que eu havia ficado louco.

— Está na hora de acordar, Thomas. Você já ficou aqui tempo demais. — proferiu com a voz também igual à minha.

— Do que está falando?! — consegui falar numa voz quase inaudível.

— Você sabe. Esse mundo não é real, é apenas um lugar que sua mente criou enquanto você se recuperava, mas agora já está na hora de partir.

Eu não sabia o que dizer, então ele continuou a falar.

— Eu não matei sua mãe, ela morreu durante um assalto, assim como você leu no diário. Também não matei Erick, nem ele tinha o rosto normal como você idealizou nesse mundo. Aliás, ele se suicidou no ultimo ano da escola de vocês por causa das queimaduras que deformavam sua face. Ao lhe dar aquelas páginas eu estava apenas tentando fazer você lembrar seu verdadeiro passado. Bom... eu também precisei acabar com a perfeição deste lugar para que sua mente pudesse deixá-lo para trás, por isso aconteceram essas falsas mortes.

— CALE A BOCA! Você está mentindo... só pode estar mentindo. Mas... eu estou louco?! — comecei a chorar, minha cabeça parecendo que explodiria de dor. Entretanto, no fundo eu sabia que ele falava a verdade.

O outro eu caminhou até perto de mim, tirando do seu bolso um pequeno caderno com capa de couro e uma caneta. Me entregou os dois e depois desapareceu no ar. De alguma forma estranha parecia que minhas mãos haviam adquirido vida própria e agora começavam a se mexer sozinhas. Assisti hipnotizado enquanto elas abriam o caderno em uma página em branco e começavam a escrever:

03 de outubro de 2000

Estou batendo na porta do lugar onde presenciei os piores momentos da minha vida. Meu motivo?! O Coisa. Mesmo depois de eu conseguir me mudar para um apartamento próximo à universidade em que estudo ele continua atormentando minha vida. Com seu vício na bebida aumentando conforme os anos, ele chegou num estado em que mal consegue se manter em um emprego tamanha a frequência com que fica embriagado. Como resultado disso, vez ou outra ele aparece para mim pedindo algum dinheiro. Eu dou, não querendo arrumar nenhuma confusão.

Entretanto, na última vez em que ele foi me procurar não era eu que estava em casa, mas sim Jullie. Quando cheguei a encontrei desesperada dizendo que aquele imundo tentara se aproveitar dela. Com isso ele passou todos os limites. Eu tenho que por um fim nisso, não quero que ele apareça com aquele rosto odioso na minha frente nunca mais.

Finalmente a porta se abre, deixando aparecer um homem alto, gordo e com a barba por fazer. Pelo cheiro e pela aparência nota-se que ele não toma banho há alguns dias e que com certeza está bêbado. O interior do apartamento atrás dele está tão mal cuidado e sujo quanto o dono.

— Seu desgraçado, o que tentou fazer com a Jullie? — cuspo as palavras com todo o ódio e desprezo que carrego e começo a empurrar ele para dentro do cômodo.

— Eu?! Eu não fiz nada... essa mulher é louca!

Meu sangue começa a ferver. Antes que eu possa me controlar desfiro um soco no rosto dele que acerta em cheio, fazendo ele se curvar.

— Nunca mais abra essa boca podre para falar da Jullie. E NUNCA MAIS ME PROCURE PARA NADA! VOCÊ É UM BOSTA QUE SÓ SERVE PARA FAZER OS OUTROS SOFREREM!

Ele me encara e faz uma careta de ódio como eu nunca havia visto antes.

— MOLEQUE INGRATO!

O Coisa avança sobre mim. Tento me defender mas sinto meu pé deslizar sobre algum líquido que havia sido derramado no chão, provavelmente alguma bebida alcoólica. Caio de costas no piso, ficando desnorteado. Com toda sua fúria, aquele monstro monta sobre mim e começa a descer repetidos murros contra minha cabeça. Tudo o que sinto é dor, mas após alguns segundos finalmente apago inconsciente.

Olhei para o que escrevi e pude enxergar toda a cena acontecer. Aquilo havia sido real. Mais alto e frequente do que das outras vezes, o mesmo apitar que havia ouvido começou a soar. Junto com ele, o mundo todo começou a se despedaçar em fragmentos que iam para o céu até que tudo se tornou branco. Foi então que acordei.

Eu estava em uma sala toda branca. Me sentia fraco e meu corpo pareceu mais pesado do que o normal quando tentei levantar um braço, apesar de aparentemente eu estar mais magro. Uma variedade de fios e tubos se conectavam a mim e, ao olhar para o lado, consegui ver uma máquina que monitorava meus batimentos cardíacos enquanto apitava.

Uma jovem moça vestindo um uniforme branco entrou rapidamente para me ver. Não conseguia reconhecer seu rosto, mas podia ver o espanto que tomava conta dele, como se estivesse vendo um fantasma.

— Senhor Thomas, fique calmo, por favor. O médico já está a caminho — sua voz calma e doce chegou aos meus ouvidos.

— O... Eco...eu? — numa tentativa falha, tentei perguntar a ela o que estava acontecendo, mas tudo em mim parecia estar enferrujado. Mesmo assim, ela pareceu entender.

— Não se esforce, por favor. Seu corpo ainda está fraco. O senhor... — hesitou por um instante — bem... o senhor acaba de acordar de um coma... um coma de 13 anos.

09 de setembro de 2013

Há quanto tempo não escrevo, meu velho companheiro?! Mas eu não poderia ir sem me despedir. Afinal, você foi meu primeiro amigo e agora é o único que me restou. Já faz alguns meses desde que acordei do coma, e desde então vim me recuperando e descobrindo o que aconteceu enquanto eu não estava.

Fiquei feliz em saber que o Coisa foi preso por tentativa de homicídio. Fiquei ainda mais feliz, e digo isso sem nenhuma hesitação, em saber que ele foi assassinado pouco tempo depois ao se envolver em uma briga com outro detento. Espero que tenha tido tempo para sofrer muito com remorso por tudo que ele fez, principalmente com a minha mãe. Embora eu não tenha muitas esperanças de que um monstro possa ter tal sentimento.

Posso dizer que quando consegui por meus pensamentos em ordem naquela cama de hospital a primeira pessoa em que pensei foi Jullie. Será que ela tinha sofrido muito com minha perda?! Mais importante, será que ela ficaria feliz em ver que voltei para ela?! Bom, não exatamente. Treze anos é muito tempo. Aparentemente, mais tempo do que um amor poderia esperar. A única pessoa que ainda fazia minha vida valer alguma coisa seguiu em frente e se casou com outro. Ah, eles vão ter um bebê, não é lindo?!?!

Sabe o mais irônico de tudo? As manchetes de jornais diziam: “Um milagre: homem acorda do coma após 13 anos”. Boa parte das pessoas comentavam dizendo que estava ai uma prova de que Deus existe. Mas elas não sabem. Não fazem ideia do que é acordar com um corpo tão fraco que o menor movimento é um grande esforço; o que é pensar em si mesmo como um jovem de dezenove anos e ter trinta e dois; o que é ver que toda a vida seguiu em frente e só você ficou para trás. Se pedissem para que eu escrevesse a matéria do jornal, o título dela seria: “Uma maldição: homem acorda do coma após 13 anos”.

Por mais que eu me recupere fisicamente, sei que nunca poderei ter minha vida de volta. Alguns podem dizer para eu começar uma vida nova, aproveitar essa segunda chance. Porém, não tenho forças para isso. Estou cansado. Cansado de ficar esperando pelo dia em que a vida melhora quando na verdade ela só me dá alguns poucos momentos de felicidade para depois desabar em algo terrível. É por isso que essa é a última página que eu escrevo. Mas antes de terminar, preciso deixar dois recados.

Para Jullie: obrigado por todos os sorrisos que você me deu. Saiba que não a culpo por ter encontrado uma nova pessoa, era o melhor que poderia ter feito. Espero que ele te faça tão feliz quanto eu gostaria de ter feito. Eu te amo, Jullie. Sempre vou amar.

Para minha mãe: onde quer que você esteja, se é que está em algum lugar, me perdoe. Eu não fui capaz de cumprir a minha promessa.

Adeus.

Thomas A. Felix

NANDOX
Enviado por NANDOX em 10/09/2013
Código do texto: T4475554
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.