Invisível

Mais um dia amanhecia. Os olhos negros e sem esperanças tentavam encarar mais um nascer do sol. Por trás da bela paisagem matinal, um mundo descolorido esperava o menino. Ao longo de seus dez anos, nada havia sido fácil. Todos os passos foram dados na expectativa de dias mais leves. Dias que nunca chegaram e, agora, ele sabia que jamais chegariam.

Levantou-se do papelão no qual estava acostumado a se deitar. Aquele lugar desprotegido tornara-se seu abrigo diário. Ali, ele chorava, dormia e acordava, torcendo para que chegasse o dia em que não mais precisaria abrir seus tristes olhos jovens.

Era dezembro. A criança solitária ouvia os infernais jingles natalinos que invadiam todas as ruas da cidade. Ele queria que desligassem a música, que respeitassem a sua invisível existência e não lhe trouxessem mais dor. Lembrou-se de seus pais e perguntou-se, com nó na garganta, onde eles poderiam estar. Não sabia a resposta. A memória mais recente que tinha deles era do momento em que havia sido abandonado sob uma ponte, perto do rio onde brincava todas as manhãs. Fazia dois anos que não os via. Desde então, estava vagando por vias escuras, perigosas e esquecidas.

Puxou seu boneco, o único que o acompanhara desde que seus pais o deixaram, e foi lutar por mais um dia. Enquanto caminhava, avistava outras crianças de sua idade. Todas elas estavam de mãos dadas com as respectivas mães. Algumas choravam, apontando para brinquedos caros nas vitrines. Outras, sorridentes, comiam biscoitos e chocolates. E ele, sozinho, queria um pedaço de pão para saciar a dor do estômago habitual. Ou um pouco de água para enganar a fome que o consumia. Colocou a mão sobre a barriga. Os incômodos estavam cada vez maiores.

Parou em frente a uma padaria. Seus olhos percorriam os balcões e as prateleiras recheadas de coisas gostosas. Desejava ardentemente que alguém lhe estendesse a mão e dissesse que ele poderia escolher qualquer coisa para se alimentar e se sentir mais forte. Apesar da sua vontade, as pessoas passavam e não o enxergavam. “Será que são todas cegas? Será que são más? Será que elas têm medo de mim?”, perguntava a si mesmo, com lágrimas nos olhos. “Que tipo de perigo eu poderia oferecer aos que me rodeiam?”

Olhavam-no pelos cantos dos olhos, demonstrando nojo e desprezo. A cada olhar que lançavam ao menino, parecia que uma flecha era cravada em seu jovem peito. Ele queria gritar, chorar e dizer que só desejava ser ouvido, amado e amparado, mas sabia que esse ato despertaria ojeriza, medo e, provavelmente, a polícia seria convidada para presenciar a sua dor. Ele não queria isso. Não gostaria de incomodar e de assustar ninguém.

Depois de meia hora parado em frente ao local, percebeu que, mais uma vez, havia sido duramente ignorado. Olhou para o lado e notou que havia um homem vestido de Papai Noel. Ele convidava os transeuntes a entrarem na loja de brinquedos e mexia com todas as crianças que passavam na calçada. Na tentativa de ganhar um sorriso, o menino andou alguns metros e parou perto da caixa de som, que ecoava altas músicas natalinas.

O homem do Natal, então, afastou o microfone e olhou para a criança. Diante de olhos doces, o imitador sentiu-se balançado. Ele sorriu para o menino e ofereceu um pirulito que trazia em sua grande sacola. A criança, retribuindo o sorriso, aceitou de bom grado a oferta.

Enquanto abria o doce, viu que outro homem se aproximava do Papai Noel. Eles falaram algo inaudível e olharam para o pequeno. Com olhar endurecido e voz furiosa, o rapaz ordenou que o jovem fosse embora naquele momento porque assustava seus clientes. “Vá, garoto, vá. Você está afastando todos os que passam por aqui. Suma!”

Esperando que o Papai Noel afastasse aquele monstro e lhe oferecesse palavras de carinho, o menino manteve-se firme ao lado do som. O homem de vermelho, então, fez um gesto com a cabeça e mandou-o embora. Antes que fosse ameaçado, o pequeno saiu caminhando pela rua, segurando o boneco em uma mão e o pirulito na outra. Estava se sentindo sujo, perigoso e, ao mesmo tempo, sabia que não seria capaz de fazer mal a uma formiga. “Por que ninguém vê isso?”

O sol começava a ficar cada vez mais forte. Aquele seria um dia movimentado, de muito calor, alvoroço, carros, vozes e passos. Quantos dias faltavam para o Natal? Por uns momentos, parou e tentou trazer à memória as datas comemorativas que tinha passado com sua família, em sua casa. Lembrou-se de alguns natais. Embora não fossem fartos, ele se sentia amado. Recebia beijos, abraços e carinhos. Presentes, quase nunca. Mas isso não importava. Ele estava cercado por seus pais. A memória o traía, e ele não sabia bem se aquilo acontecera ou se fazia parte da fantasia criada para alentá-lo. Tudo havia mudado muito e sempre restavam dúvidas: ele realmente vivera bons momentos? Por que nada era como antes? Questionamentos sem fim e sem respostas.

Pôs-se a andar mais uma vez. Estava faminto. O pirulito ainda estava em sua mão, mas, só de pensar em consumi-lo, sentia-se enjoado. Precisava de algo que o alimentasse e o deixasse mais forte. Guardou o doce dentro do bolso de seu short rasgado e continuou a caminhar. Ainda tinha esperanças de conseguir um alimento decente. Avistou, então, uma lanchonete. Ele sabia que tinha um senhor que costumava passear por ali todas as manhãs. E esse idoso já havia sido generoso com ele: pagara um salgado e um copo de suco para a criança, pedindo apenas um sorriso em troca. A criança não havia esquecido o sabor da comida e o gesto de amor de Samuel.

Ao chegar ao estabelecimento, parou perto de uma mulher que carregava um bebê no colo. Para não afastar quem conversava no local, o menino manteve-se em silêncio, atrás de uma parede. Na sua quietude, pôde ouvir a conversa de duas senhoras. Elas diziam que ele faria muito falta no mundo. “Não havia gente com coração maior do que aquele, Lourdes. Ele abria mão de si para agradar os outros. Os bons estão nos deixando. Como ficará o mundo sem Samuel?”, e continuaram o diálogo, sem saber que a morte do generoso homem acabara de atingir a criança de uma forma brutal. As lágrimas, agora, rolavam pelo seu rosto doído. Samuel era o único que, nesses dois anos, ajudara-o. Sentiu-se ainda mais só.

Decidiu que iria lutar para conseguir encher o seu estômago. E lutaria não só por ele, mas também pela memória do senhor Samuel, aquele homem tão generoso que, em sua mente infantil, havia virado anjo e iria protegê-lo agora. Respirou fundo e, novamente, recomeçou a sua jornada pelas vielas da cidade.

Estava mergulhado em um mar de pessoas que, a todo o momento, esbarravam nele e não pediam desculpas. A invisibilidade a que estava destinado o atordoava, mas ele não sabia como mudar esse estigma. Era um menor abandonado e, assim como tantos outros, estava fadado ao esquecimento.

O menino, angustiado com um mundo que o tratava como insignificante, resolveu abordar as pessoas. Queria que elas o enxergassem e que entendessem que ele era somente uma criança. Chegou ao calçadão do Centro da cidade, recheado de pessoas com caixas de presentes, apressadas, falando ao celular e tombando tudo ao redor. Ainda assim, batalharia por ajuda. A fome estava matando-o aos poucos. Ele não queria mais sentir dor.

Avistou, a poucos metros, uma menina e sua mãe. Elas estavam de mãos dadas e conversavam alegremente. Acreditou que ambas possuíam corações e olhos e se aproximou. Ao perceber que elas não o notaram, ele gritou:

- As senhoras podem me dar algum dinheiro para eu comprar mariolas? É melhor vender do que roubar. – pediu, assustado com a própria coragem.

As duas olharam para ele e passaram direto. Como todos os outros, elas também não enxergavam e ouviam a criança. Ele, então, desistiu de viver aquele dia. Percebeu que não havia solidariedade e amor no mundo. Os olhos eram voltados para as lojas. Os ouvidos estavam conectados às caixas de som que gritavam promoções. Palavras e pessoas passavam despercebidas.

O garoto voltou a caminhar para a sua casa, que ficava sob uma marquise, em uma esquina escura e solitária. Mesmo durante a tarde, era possível ouvir o eco do nada no lugar. Botou a mão no bolso e notou que ainda carregava o pirulito. Guardaria o doce para outro dia. Deitou-se no papelão, seu companheiro de noites e dias assustadores. O sol ainda queimava sua cabeça, mas ele precisava dormir para acabar com a fome e com a tristeza. E, com olhos marejados, rezou para que amanhã conseguisse vender, e não roubar.

Paula Vigneron
Enviado por Paula Vigneron em 22/09/2013
Reeditado em 12/06/2015
Código do texto: T4493332
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