MADRUGADA, SONHOS, ILUSÕES, PENSAMENTOS, LEMBRANÇAS ...

A hora é a do silêncio das línguas cansadas de falar tantas coisas que não desejo ouvir. A escuridão abriga o medo do desconhecido, do futuro e, até mesmo, do passado. Passado? Será mesmo passado? Sempre trazemos dentro de nós o passado. Ou não seríamos o que e quem somos. Sempre desejamos resgatar algo que ficou para trás.

O carrinho da Geneal, a praia de Copacabana, o apartamento intimista e cheio de vida, o nhoque, o café, o cigarro, a admiração. Me perco nesse tempo que se diz pretérito, mas que ainda está tão vivo dentro de mim. Eu nunca esqueci. Jamais poderia esquecer a fase que ajudou a me fazer o que sou hoje. Então, como se pode falar em passado, se ele está atuando ainda no presente. Não dói, não preciso voltar no tempo. Só precisaria saber se ainda existes, se ainda vives. Onde está a pessoa que fez parte de minha vida, que tanto me influenciou pela admiração que eu nutria. Descubro que sou muitas em uma só, mas uma parte desse “muitas” foi de você que herdei. Você, que desapareceu como fumaça, me deixando atônita, ainda tão jovem sem entender nada. Apenas a sensação de perda. Irmão eu ainda tinha, mas a irmã que ele me deu se fora para sempre, envolta em uma névoa misteriosa e incerta.

15 anos, rua quando deveria estar na escola. O carro dele vindo em minha direção. Há meses eu não o via, mas, pela minha mãe eu sabia que o castelo havia se desmoronado. E eu também fazia parte desse castelo. Quantos anos se passaram? 36 anos. Mas está tão viva a lembrança de tudo aquilo em minha cabeça. Eu me pergunto se os adultos conseguem entender que o rumo da vida deles, pode afetar, de maneira definitiva, uma adolescente. E a minha foi afetada. Eu me senti órfã. Por quê? Eu não entendia como tudo se desmanchara, mas tudo se desfez em minha frente, sem que eu entendesse porque não pensaram em mim. Eu não contava. Eles nunca enxergaram que eu me importava, que eu sentia, que eu perdia, que eu não sabia lidar com aquilo.

Ah, meu irmão, doeu em você? E algum dia você se perguntou como aquela menina de 15 anos se sentiu? Você se importou com aquele coraçãozinho dilacerado? Não era comigo, não foi comigo. Então, porque me separou daquela irmã que você me deu e que eu admirava e amava tanto? Por que você e mamãe achavam que eu queria me separar também? Eu não queria. Tudo poderia continuar como antes, pois a amizade é algo que não se balança com o os fatos que não são feitos contra mim. Arrancaram-me de minha realidade, me puxaram para fora de uma amizade forte, me expulsaram da vida que eu amava. Nada me restou. E, atônita, me perguntava como eu iria sobreviver, como seria dali para diante sem uma pessoa que era tão importante para mim, que já fazia parte de minha vida, de meu coração e de minha perspectiva futura de seguir a irmã pela vida afora.

Hoje eu, depois de procurá-la tanto, reencontrei. Mas não foi um reencontro efetivo, apenas localizei-a, mas nem mesmo sei se ela vai querer rever quem um dia fora sua irmã mais nova, sua filha e que a adorava tanto.

Eu tenho duas fotos suas, que achei quando usava o computador na esperança, quase desesperançada, de te encontrar. Eu a encontrei.

E agora? Não sei. Acho que agora eu terei que aguardar que em seu coração ainda haja algum sentimento em relação àquela menina de 15 anos que te adorava, admirava e protegia da maledicência de todos. Porque aquela menina, que arrancaram de você, ainda existe, está dentro de mim, sentada no quarto escuro da minha existência, com lágrimas descendo pelo rosto e uma terrível sensação de castração e abandono.

É madrugada, hora do silêncio das línguas cansadas de falar tantas asneiras, hora de mergulhar na escuridão de mim mesma, hora de refletir, de sentir, de tentar me entender.

Ei, você, irmã que um dia tive, ainda tem vontade de me ver?

Talvez diga “não”. Mais uma negativa, porém, diferente de 36 anos atrás, em que eu fiquei sem respostas, perdida, sem chão. E, dessa vez, a menina deixará de existir e a mulher madura poderá, enfim, se despedir e sentir-se livre das perguntas sem respostas. A palavra “não” terá a força que é necessária para fazer, em um centésimo de segundo, a menina ceder lugar à mulher adulta que dá adeus ao passado e segue, de cabeça erguida, o seu destino.

É madrugada ....

Emar Vigneron

Campos dos Goytacazes, 3 de outubro de 2013 – 01:39 horas

(Para a irmã ..., que arrancaram de mim há tantos anos)

Emar
Enviado por Emar em 03/10/2013
Reeditado em 25/05/2014
Código do texto: T4508876
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