Ausência de medo

Eram dez e quinze quando a porta bateu. 'Sempre pontual', ele sorriu, meio de canto de boca. Ouvia o som de seus pés batendo contra o assoalho, ouvia o crescente som de um subir de escadas e, alguns segundos depois, uma porta a bater com força. Aquilo deveria irritá-lo. Irritava mesmo. Por muito e muito tempo. Mas é que agora ele não tinha muito mais do que isso.

Ainda se lembrava do dia no qual ela nasceu. Se fechasse bem os olhos ainda podia ouvir o seu choro. Tão puro e tão brutal. Ah, desde o momento em que a segurou no colo pela primeira vez ele conheceu a definição da palavra 'brutal'. Era como segurar uma bomba nos braços. Acelerava o coração, te dava um soco, te empurrava no meio da vida e gritava 'sê intenso!'.

Sua esposa decidiu por chamá-la de Melissa. Melissa vinha de 'mel'. Era meigo, doce, suave. Mas aquela Melissa, a sua Melissa, tinha cabelos de fogo que lhe moldavam o rosto e dois enormes e assustadores olhos verdes. Era a personificação de um desafio. E ele se apaixonou perdidamente desde a primeira vez em que a viu.

Era uma menina corajosa e perigosamente curiosa. Gostava de ver como as coisas funcionavam, procurar tesouros perdidos, aventuras ocultas. Tinha desenvolvido boa habilidade em decifrar pessoas antes mesmo de chegar aos três. Não que as pessoas fossem assim tão complicadas a ponto de terem de ser decifradas. Mas a inteligência da sua menininha fascinava qualquer um que fosse um pouco mais observador.

Sempre fora a garotinha do papai. Sua mãe andava sempre com um 'quê' de preocupação de tão indignada pelo comportamento frequentemente imprevisível da menina. Envelheceu cedo, perdeu todos os seus encantos juntamente com qualquer tipo de gosto pela vida. Melissa lhe sugava. Os cabelos embranqueceram, a pele enrugou, ela desistiu do casamento e da filha como um último suspiro. O pai fez de tudo para isentar a garota de uma culpa que ela não podia controlar. Como se adiantasse. Ela era esperta demais para ser enganada.

Mas não tinha problema. Ela era tudo de que ele precisava. Seu coração aquecia de ternura quando ela chamava 'papai' ou quando escalava suas pernas para sentar em seu colo e lhe contar sobre a lagarta colorida que encontrara no jardim. Ela ria de um jeito tão vivo. Deixava cair a cabeça e seus cabelos ruivos se espalhavam pelos ombros. Fechava os olhos e era muito barulhenta. A própria casa era uma mistura sonora de sapatos sujos de lama, abajures caindo, e gritaria.

Ele queria que ela nunca crescesse. Que ficasse pequenina para sempre. É que a coragem dela o assustava. Um dia ela ficaria grande demais e ele não poderia mais protegê-la de tudo. 'É fácil ser corajoso quando não se tem nada a temer, querida'. E ela ria. Como se coragem fosse ausência de medo. Ser corajoso sempre teve mais a ver por sentir fascínio pelo medo. Ela amava o medo. Abraçava, comia, respirava o medo. Não tinha nada mais delicioso que aquele frio na barriga perante o desconhecido.

Já ele se afundava nos próprios medos. Como qualquer pessoa comum. Nunca foi um problema antes de Melissa. Mas, depois que ela nasceu, ele se sentia apenas medíocre. Queria ser o herói, encantar e ser tão incrível quanto ela. Mas era somente um velho pai apaixonado. Não podia fazer nada mais do que viver por ela.

Um dos seus principais medos era ver Melissa crescer. Se tornar adulta. Não de uma forma egoísta, não para ele, mas de uma forma absolutamente protetora. Era assustador pra ele acompanhar de perto a forma como aquela criancinha ruiva se transformava, aos poucos, numa mulher estonteante. Aquela Melissa de quinze anos impressionava a todos aqueles que torciam o nariz quando a 'pestinha' chegava em qualquer ambiente há alguns anos antes. O pai não entendia. Que havia de errado na vivacidade de uma criança? Por quê era tão ruim que ela fosse espirituosa?

Mas ela agora pouco tinha da criança que fora um dia. A sua forma de andar, falar, olhar, começava a chamar a atenção dos coleguinhas da escola, professores, até mesmo dos amigos do pai. Ela era inteligente, culta, esperta, e uma mulher linda. O pai queria fazer algo a respeito. Daria sua própria vida para protegê-la. Pela possibilidade de colocá-la numa redoma e afastá-la de todas as coisas ruins do mundo. Porque aos olhos daquela pequena mulher o mundo era mágico. Ela era corajosa e o pai não queria que ela se frustrasse com isso. Como se fosse possível. Agora ele nem sequer conseguia acompanhá-la. Melissa se fechara num universo individualista que definitivamente não permitia sua entrada. Não conseguia mais falar com ela ou muito menos entendê-la. E o que era a sua família feliz começou a se transformar num inferno.

"Me deixe em paz!

Você não me entende!

Eu odeio você!

Não te interessa!

É a MINHA vida!

Você é só um velho."

Ele queria não se assustar com esse tipo de comportamento. Queria mesmo. Ela não sempre tivera tal gênio? Mas era tão mais fácil quando ele fazia parte disso. Quando era o seu herói e podia acompanhar de perto cada travessura. Mas agora, ter sua filha em casa era o mesmo de não ter. Tanto fazia se estivesse trancada no quarto ou conectada por seu notebook ou smartphone, tecnologias que deveriam ter sido criadas para aproximar pessoas. Ele não sabia usufruir disso e, por tal razão, não merecia ser inserido ao universo dela. Ela não sabia ouvir as mesmas músicas. Ele não conseguia entender aquela linguagem. Ele não conseguia achar normal que sua filha quisesse se encontrar com aqueles homens feitos, tarde da noite, numa garupa de moto. Ele era só um velho. Se afundava na mediocridade que acreditava ter.

Mas não era tão simples. Ele jamais a entregaria ao mundo, assim, de 'mãos beijadas'. O mundo não cuidaria dela como ele poderia cuidar. Por isso ela a prendia e fazia questão de não economizar 'nãos'. O problema foi que nunca adiantou. Melissa, que tanto admirara o pai, agora já não lhe resguardava um mínimo de respeito. Ela acreditava não precisar de nenhum tipo de aprovação dele. Então já nem pedia. Apenas fazia. Desconhecia qualquer tipo de sentimento de culpa ou gratidão. Não era o que ele esperava. Aos poucos eles foram se tornando dois estranhos que apenas viviam na mesma casa.

Faltava apenas uma semana para o aniversário de dezesseis anos da filha quando ele recebeu, no meio da noite, aquele telefonema.

"Socorro pai! Me ajuda pai! "

Era mais forte que ele. Não conseguia aguentar, não conseguia se ver ali, naquela situação. Todos os sons à sua volta se calaram. Tudo sumiu. Conseguia ouvir somente o seu coração enlouquecido.

"Melissa?"

"Me desculpa pai. Me desculpa, vai?"

Ele tentou manter a calma. Não poderia ser sua filhinha. Ele a tinha ouvido chegar da aula de teatro, ás dez e quinze. Tinha suspirado, satisfeito, ao ouvi-la desmarcar um compromisso, por telefone, com uma amiga do colégio. Ela havia dormido em casa. Definitivamente não poderia ser ela. Não parecia. Aquela voz desesperada. Aquele medo. O choro, a respiração acelerada. Sua filha não tinha medo. Sua filha era inteligente demais para se envolver em qualquer situação insana.

Acredito ser impossível expressar o desespero e frustração que ele sentiu ao abrir a porta do quarto e encontrá-lo vazio. Os travesseiros sob a coberta, a janela aberta. 'Ah, Melissa, isso é tão ridiculo. Você é tão inteligente para isso'. Não poderia ser.

'Papai, por favor, venha me buscar.'

'Onde é que você está?'

'Ele está aqui. Pai, ele vai me matar. Vem logo, por favor.'

O dilacerante grito que se seguiu a partir desse momento foi a última vez em que ele ouviu a voz de sua filha. Ninguém nunca descobriu o que aconteceu. Os últimos vestígios deixados foram marcas de luta em uma cabine telefônica fora do estado. E foi como todas aquelas outras histórias sobre crianças desaparecidas. Cartazes e faixas, repórteres, especulações, agonia. Anos sem respostas. Dez anos sem respostas.

Não, ele nunca imaginou que Melissa fosse se tornar uma mulher comum. Que fosse cursar faculdade de Administração, se casar e ter filhos aos 25, assim como ele, assim como tantos outros. Ela não. Ela era especial. Imaginava-a viajando pelo mundo, conhecendo outras línguas, praticando esportes radicais. Imaginava-a adotando uma criança e criando-a de maneira muito mais liberal do que foi criada. Imaginava-a encantando o mundo da mesma forma com a qual o encantava diariamente.

Sua garotinha nasceu desprovida de medo, e sua paixão pela vida foi o maior presente que poderia ganhar. Ele não sabia exatamente se havia respostas para o que aconteceu. Algo que poderia ter sido feito diferente. Já nem esperava encontrá-la viva. Ou um corpo, algo para venerar. Ele sentia que ela estava morta. Simplesmente sabia. E não tinha problema. Ele já havia morrido, anos antes. Ele morreu no momento em que percebeu que Melissa, pela primeira vez na vida, sentiu medo. E ele não estava la para impedir que ela perdesse aquela coragem que a tornava tão especial. Ele era apenas medíocre. E, agora, apenas uma alma vagante.

Todos os dias, exatamente ás dez e quinze, ele a escuta chegar da aula de teatro. Ás quatro da manhã o telefone toca e ele escuta a voz de sua garotinha. Está dentro de sua cabeça mas é tudo o que ele tem. Ela sempre foi tudo o que ele tinha. Ele está morto, e já nem tem medo ou o que temer.

Melissa J
Enviado por Melissa J em 13/10/2013
Reeditado em 13/10/2013
Código do texto: T4524022
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