A PALESTRANTE

A PALESTRANTE

Por Elisa Dz

Estava esperando para entrar ‘em cena’ e sentia a boca seca. Sabia que as luzes diretamente em seus olhos iriam incomodá-la ao mesmo tempo em que lhe dariam certa segurança - ainda não tinha se acostumado a falar em público – desde que resolvera contar sua história a coisa tinha crescido de tal forma, que ela não teve tempo para pensar se gostava ou não daquilo.

Escuta seu nome sendo chamado, respira fundo e vai. Caminha com passos firmes sob os aplausos, mas ainda não ousa encarar o público. Pára diante do púlpito e aguarda até que se faça silêncio. Tira suas notas do bolso e as posiciona a sua frente apenas para sentir-se mais segura porque sabe que não precisará delas. Ergue o rosto e deixa a enorme cicatriz visível. Ainda quieta faz um breve reconhecimento do lugar, embora nunca tenha estado ali antes e não conheça nenhuma daquelas pessoas. De repente, abre o mais oceânico dos sorrisos e os acolhe a todos em sua alma dilacerada pela dor e começa a contar os caminhos por onde andou, sentindo que alguma coisa ali já mudou. Ela agora, já não era a mesma pessoa que entrou.

Aos doze anos eu já tinha dado à luz a duas crianças de meu próprio pai, que se encarregou de vendê-las para adoção. Era tratada como escrava e sofria todo tipo de agressão física e moral. Minha mãe, por mais que tentasse, além de ficar sempre muito machucada, nunca conseguiu impedi-lo. Quando eu completasse dezesseis anos, ele me obrigaria a casar só para ganhar um bom dote e se livrar da despesa. Foi assim com minhas irmãs mais velhas e seria assim com minhas irmãs mais novas, se uma delas não tivesse morrido tentando fugir e se meu próprio pai também não tivesse morrido.

Até os quatorze anos, achava besteira saber ler ou escrever. Não queria travar grandes batalhas ou mudar de vida, queria apenas passar pelos dias e de preferência, despercebida. Preferia trabalhar e sonhar com teatro, porque pelo menos no meu sonho eu podia escolher uma vida diferente a cada dia.

Mesmo no lugar mais miserável do mundo, existe um centro e uma periferia ainda mais pobre e quem não encontra lugar lá, vai montar seu barraco o mais próximo que conseguir dessa periferia. Para se obter água ou alimento, é preciso caminhar muito e vencer a concorrência. Não existem escolas e postos de saúde, quando há, não conseguem atender a demanda. Lá na periferia do mundo, a violência é mais do que uma ameaça, é Lei. As mulheres sem nenhuma proteção ou presença masculina por perto, são alvos fáceis de agressões sexuais. Quando meu pai morreu, todos os dias os homens do vilarejo onde morávamos se sentiam no direito de nos degradarem ainda mais, abusando de nossos corpos como bem entendiam, nos violentando fosse à hora que fosse. Suas mulheres se sentindo humilhadas se vingaram mutilando nossos corpos para dar exemplo, queimaram nossa casa, se apossaram de nossos pertences e nos expulsaram de nossa terra.

Alguns que ali vivem há muitos anos, tentam instalar pequenos comércios como mercados, barbearias e pequenas lojas, porque mesmo pessoas pobres têm necessidades básicas. Mas a crise é tão grande que não há ninguém para comprar o que ali se vende e por isso as pessoas vivem dizendo que aquele lugar não deveria existir. Ele apenas comprova a falência do combate à fome e à miséria, resultante da guerra do homem contra o próprio homem.

Eu não preciso dar um nome a esse lugar porque ele existe em cada canto do mundo, dentro de cada país, de cada cidade e cada um de nós aqui presente conhece um ou mais exemplos e sabe do que falo. Eu vivi isso. Vocês talvez ainda não.

Fugindo da fome, as pessoas sobrevivem à falta de alimentos, ao calor, ao frio, à falta de água, às milícias, aos grupos de bandidos e até mesmo aos animais. No caminho, centenas de mulheres são alvo de violência sexual ou se prostituem achando que assim melhorarão a precária condição de vida em que se encontram. Nessa trajetória, elas engravidam. Algumas crianças nascem e aumenta o cortejo, outras são abandonadas à própria sorte pelo caminho.

Ela conta de um acampamento para refugiados que fora construido para receber trinta mil pessoas. Em poucos meses teve que ser ampliado para comportar 90 mil refugiados e hoje, já conta com mais de 440 mil e os números não dão sinais de ceder. Os tetos de plástico, lixo e outros materiais das barracas perdem-se de vista. Realmente são os cinquenta km² do que certamente é a cidade mais miseravel do mundo.

O que mais dói, é que aos poucos a alegria que você tem ao chegar num acampamento destes é tomada pelo desespero de entender que nunca mais terá para onde ir. É como viver numa prisão a céu aberto. Não podemos nos movimentar livremente, falta comida, água, segurança e não há perspectiva de trabalho. Os policiais que foram colocados lá para evitar confrontos, além de nos intimidar, nos cobravam subornos. Como um miserável poderia pagar suborno? Muitos fogem da fome e da violência e se perdem numa armadilha ainda mais cruel – a desesperança.

Ela faz uma pausa para beber água e corre os olhos pelo seu público, ao retomar sua fala, novamente sorri antes de começar e ainda consegue brincar dizendo – vocês estavam tão quietos que temi uma fuga em massa – a empatia que recebe lhe dá forças para continuar sua história.

Quando minha família e eu fugíamos da fome, nós éramos sete - eu, minha mãe, minha irmã e seus quatro filhos. Minha irmã e dois de seus filhos morreram de fome pelo caminho. As últimas palavras de minha irmã foram para que cuidássemos de seus filhos.

Para os especialistas, o pior ainda está por vir. A previsão é de que a seca continue. Nosso planeta está tão devastado, que chove muito onde não precisa e falta água onde a situação é mais do que desesperadora e de nada adianta mostrar garotos esqueléticos e estereótipos da fome nas capas de jornais pelo mundo. A sensação que dá é que isso seria inevitável, que a imagem da vitíma passiva, da fome silenciosa permite a promoção de ações humanitárias, mas não o questionamento de como foi que o mundo deixou isso acontecer. Lógico que toda ajuda é bem vinda, mas sobreviver não basta. Queremos resolver o problema. A fome é obra humana. A seca era previsível e nenhum de nós fizemos nada!

O silêncio que havia ali era tão árido quanto a terra dizimada pela ausência de chuva. Todos a olhavam sedentos. Esperavam por mais.

Eu só pude contar isso a vocês hoje, porque quando consegui fugir do acampamento onde eu estava, caminhei por mais de vinte dias sem comida ou água - preferia perder a vida tentando sair daquele lugar do que ficar ali confinada, eu ainda tinha esperança de encontrar alguma coisa, fosse o que quer que fosse - fui resgatada por voluntários de uma ONG que dedicam suas vidas a ajudar refugiados e vítimas sociais.

São pessoas que tem casa, comida, roupa lavada, tem afeto, segurança e optam por passar pelo que estou passando quando não tenho outra opção. Minha primeira reação foi de uma indignação colérica, eu achava que aquelas pessoas se sentiam tão superiores a mim que podiam se privar um pouco do seu mundinho perfeito em prol daquela miserável sofredora. Então resisti enquanto pude. Pensava que receberia o atendimento pragmático de praxe, medicamentos pós-traumáticos que deixam as pessoas feito zumbis. Não importava o motivo e sim o resultado. Não partilhei minha angústia, meus medos, minha solidão, a saudade que sentia de minha família. Eu os fiz superiores a mim quando tudo que queriam era me ajudar. Sentiam angústia, medo, saudade, solidão também, mas queriam compartilhar da minha dor para amenizá-la. Sabiam que não mudariam minha história, não apagariam minhas dores nem fariam minha cicatriz desaparecer, mas fariam o impossível para tornar minha caminhada mais suportável, meu peso mais leve.

Durante muito tempo eu insisti na minha revolta, na minha indignação. Não acreditava que aquelas pessoas queriam me ajudar a caminhar simplesmente, porque um dia acordaram e decidiram fazer a sua parte para tornar o mundo um lugar melhor. Eu dificultei bastante a vida deles, mas em nenhum momento, eles desistiram de mim.

Foi então que mudaram de tática. Desistiram de tentar falar comigo. Fizeram-me ver o que faziam. Fizeram-me trabalhar com eles. E todos os dias lá estava eu tentando entender aqueles lábios e narizes cortados, ponta dos dedos decepada, torturas que tinham acontecido no dia ou na noite anterior, vítimas de estupro, violência em massa. Era trabalho que não acabava mais, que parecia nunca terminar. È uma catástrofe humana e não dá para impedir a fúria dos homens. No entanto a disposição daquelas pessoas em ajudar parecia não ter fim. O amor que havia ali eu nunca havia sentido antes em toda minha vida.

De repente me vi ajudando a suturar mãos, pés, braços, cabeças. Vi o quanto compartilhar minha história ajudava na recuperação dos outros e me fazia mais forte, me fazia enxergar que o descontrole e o desespero são normais e não uma punição, um castigo. Percebi que era difícil fazer tudo aquilo, mas nada se comparava a recompensa obtida.

Hoje sei que nasci quando aquelas pessoas me acolheram, quando desistiram de me fazer falar das dores e cicatrizes que eu tinha na alma e me mostraram que o mundo é muito maior que eu, que o pouco que posso fazer quando conto das estradas onde estive pode aquecer algum coração, pode ser a esperança que faltava naquele momento, pode ser a pausa necessária para a reflexão.

Quando eu sonhava com o teatro, era porque eu queria ter vidas diferentes para viver. Aqui, agora e por onde mais eu for para contar minha história eu sei que meu sonho se tornou realidade, porque um pedacinho de mim estará sempre com cada um de vocês. Obrigada por terem me ouvido.

Diante daquele público imenso que a ovacionava, nada brilhava mais que o sorriso envergonhado daquela menina de dezessete anos, que ainda sentia as pernas trêmulas e daria tudo para que sua mãe pudesse vê-la agora.