Dia de mudança

Deixar para trás coisas importantes pode ser perigoso se a porta se fechar.

Engano é achar que estarão sempre lá, ate criar raízes a nos esperar,

cansados e distraídos, para pega-las de volta.

Melhor mesmo é levá-las, mesmo se não couber tudo numa mesma sacola,

nos bolsos, ou nas mãos.

Juntar e levar tudo que um dia nos será útil, ou apenas nos resguardando de uma possível futura saudade, daquelas que dói fundo, ou daquelas que só incomoda rapidinho, e depois passa.

Não deixar nada passar despercebido.

Às vezes, deixamos de reparar em coisas comuns e cotidianas, e são essas as que mais farão falta daqui a cinco minutos. As outras coisas podem até nos enganar,

fazendo cara de imprescindíveis, mas ficaram novamente em caixas, por anos, ou até a vida toda, jogadas em cômodos inutilizados da casa, ou em alguma casa de parente, daquelas com um barracão contêiner de cimento e tijolo, que serve de dispensa da família inteira.

Em cada porta retrato, um momento especial.

Em cada disco ou fita, uma melodia ou um refrão que se fez importante e tantas vezes foi repetido ali, sem nenhuma pretensão, naturalmente, apenas por gostar.

Nos quadros – a medir e enfeitar a parede – pensamentos preocupados, de se servirão em um novo cômodo, se será este semelhante, ou se suas molduras combinarão com a nova cor da parede.

As roupas – essas ai nem se fala. Vão uma a uma saltando em nossa frente, a desejarem que as coloquemos na mala e a recolocamos em seguida a um novo guarda-roupas (ou o mesmo, penso eu ser a preferência delas), em um novo lugar.

Não querem de maneira alguma irem para campanhas de doação, ou filhos dos empregados, e nem os piões da fazenda de algum tio. Já criaram apego ao nosso corpo.

E muito menos virarem panos de chão ou flanelas pra desengorduras os móveis ou desembaçar o vidro do carro. Isso seria por fim a sua existência, perderiam a função de roupa, e nada mais seriam. Voltariam ao seu estado original, antes de tomarem forma em confecções, seriam novamente tecido, e só e bruscamente tecido, isso era regredir em suas existências.

O velho cinzeiro, o tapete da sala e o do banheiro, os enfeites da mesa de centro, os imãs de geladeira, e até as flores do jardim, tomam nesses momentos, um caráter humano, como se um barco estivesse se afundando, e fossem todos pessoas, que precisassem de ajuda para serem resgatadas. Não poderíamos deixá-los simplesmente para trás.

As pequenas coisas é que fazem diferença em alguns momentos, que talvez até o sofá passasse despercebido, mas jamais um abajur, ou o vaso de plantas solitário no fundo da casa, já sem plantas mesmo, só o vaso.

Em cada cômodo um segredo diferente, que chegam a tornar as paredes cúmplices de momentos que nos fazem agradecer por elas serem feitas de cimento, e que os novos moradores não virão a saber, nada por elas.

Criaram talvez novas formas, e ganharam novas cores e quadros, a ferirem novamente a matéria com pregos que entraram um a um para afixar nelas adornos domésticos.

O quarto que era dos pais, será agora de um filho, a biblioteca um quarto morto – quanta vida há em uma biblioteca – com um sofá, uma televisão e algumas revistas do ano passado.

O banheiro, descobrira, sem pudor algum novos corpos. A garagem terá novos horários de funcionamento, apesar de que pela casa, serão moradores de classe média, com a mesma vida – acorda as sete, deixa os meninos na escola, vai pro trabalho, volta pra almoçar, vai de novo pro trabalho, volta às dezoito. Muda um pouco fim de semana, no geral é parecido, mas sempre muda.

O jardim, talvez ganhe uma piscina, a esburacar-lhe o chão, e fazendo trocar à calma e a paz, pela farra de fim de semana e feriados, e o barulho sem limite das crianças.

Até o pé de manga poderá talvez ser retirado, e ir embora nos caminhões da prefeitura, ou ficar servindo de sombra para uma nova avó costurar durante a tarde, e pendurarem lâmpadas coloridas na época de natal.

Ou pode tudo ficar vazio para sempre, quem sabe?

Será a casa entregue as algazarras dos moleques da rua, e pode até, que continue nas mesmas cores, e do mesmo jeito.

A maior duvida agora, é a respeito de o que me preparam as novas paredes que vou dentro de pouco tempo adentrar.

Será que guardaram segredos? Será que demorara a sair da função de casa, até se tornar um lar?

Se tem por perto, tão bom pão pela manhã, e vizinhos tão silenciosos?

Se gostaram de música e se suportarão meu ronco?

Será que o banheiro seria tão discreto, quase cego, como o velho banheiro 2 x 2,5?

Se o jardim dará flores em Setembro e em Maio, e se terá lugar para serem guardados com o devido merecimento todos os Jorge Amados, Machados de Assis, João Cabrais de Melo Neto, e tanto outros, que juntos com Coltrane, Miles Davis e João Gilberto, vão comigo para essa nova morada?

Certeza tenho só uma, de que será diferente, em outras cores e disposições geométricas.

A duvida maior agora, é se, lá do alto, estarei seguro como aqui em baixo.

Levarei tudo, empilharei o que não couber confortavelmente pelo espaço, os relógios de parede, os posters, e fotos, o violão, os livros... enfim, tudo. Pois se a saudade de outros cantos se fizerem presente, tudo ali terei ao meu alcance, se, não da mesma forma, pelo menos trarão conforto às recordações, e acalmara a alma.

Muda-se o CEP, os vizinhos, os caminhos, as linhas de ônibus, até o numero do telefone.

Muda-se tudo...

Muda-se a vida.