Ponta de Lança

Ponta de Lança.

Bernà Fiuza

- Em meados de mil novecentos numa pequena cidade do sul, apareceu por lá um menino de dez anos, pequeno e magricela como ele só de cabelos bem vermelhos espetados.

A princípio, os moradores não perceberem a presença do garoto. A cidade era pobre, com serio problema de saúde; uma epidemia dizimava a população, as maiores vítimas eram as crianças. Foi quando a mulher mais fofoqueira e curiosa da cidade se deu conta de sua presença. De onde surgiu este menino tão magricela e espichado, com esses cabelos espetados e o corpo coberto de sardas, parece á ferrugem e essa vestimenta de couro curtido de boi e esses pés descalços? Mas nada disso era importante. O que lhe chamou mesmo a atenção foi aquele saco vermelho pequeno sobre suas costas, o que teria naquele saco? A faladeira coçava-se de curiosidade para descobrir: Imagine ela deixar passar isso, de jeito algum, tinha que ser a primeira, a saber, e a primeira a contar para todos. Sendo assim, tratou logo de chamar o menino indagando-lhe de sua vida:

- Menino, menino, venha cá!

O garoto olhou-a assustado, mas não arredou o pé continuou do outro lado da rua sem entender a pressa dela em querer lhe falar.

- Mas será possível seu magricela, não me ouve chamá-lo? Venha aqui perto de mim, preciso fazer-lhe algumas perguntas.

O garoto ficou quieto pensando se devia ir ou não. A mulher batia o pé em impaciência. Por fim, ele resolveu atravessar a rua e ir ao seu encontro.

- Menino sujo e fedido, se não tivesse o cabelo tão espetado, ia dá-lhe um puxão só para aprender a obedecer quando alguém lhe chamar!

- Eu não tenho que lhe obedecer, a senhora não é minha mãe! O que quer saber sobre mim?

- Eu não quero saber nada de você! Bem... O que faz na minha cidade, de onde você vem, o que tem neste maldito saco que carrega em suas Costas?

- Ah, então seu aborrecimento sou eu por não saber quem eu sou? Fica enchendo-me de perguntas qual é seu interesse sobre mim?

- Ora menino, eu não sei quem você é nem de onde veio, para ficar circulando na minha cidade, ainda mais com estas roupas estranhas e este saco sobra ás costas. Quem me garante que não é para esconder seus roubos?

- Eu, eu garanto, pois não sou ladrão. O que eu posso lhe adiantar é que venho de muito longe. Meu pai tem muitos filhos e muitas moradas, estou em sua cidade em missão especial e o conteúdo no saco que repousa em minha costa, saberá no momento certo.

- Respondeu o garoto, afastando-se em passos rápidos.

- Seu pestinha malcriado, você vai arrepender-se do que me falou!

Desde então o pobre menino não teve mais sossego, a mulher espalhou por toda cidade sua presença. O povo o olhava de banda, com intolerância, preconceito e soberba. Como os adultos o tratavam assim, as crianças passaram a imitá-los, o perseguiam e o apelidaram de ponta de lança, por causa de seus cabelos espetados. Por mais que ele tentasse serem amigos das crianças, atencioso e prestativo com os adultos pobrezinho eram rejeitado! Todos o temiam e o escorraçavam, até desconfiavam dele sem que o coitado soubesse a causa. Era sereno e delicado com os seus semelhantes.

Um dia... Cansado de ser rejeitado por todos, decepcionado com a cidade, sentou-se sob uma árvore, abriu o saco sobre suas costas e tirou uma pequena flauta de bambu começou a soprar o pequeno instrumento que saiam sons doces, harmoniosos e tristes, como sua alma se encontrava naquele instante. A cidade começou a chorar sem controle, todos tinham conhecimento que era a música à causa do pranto, todavia, não sabiam de onde vinha aquele som tão triste. A fofoqueira da cidade teve uma inspiração e começou a gritar histérica:

- É o menino, é o menino novo na cidade, só pode ser ele, o demônio disfarçado de criança para nos enganar! É ele que nos faz chorar. Precisamos tomar providência, vamos chamar o padre para benzê-lo!

Vieram o padre, o prefeito e outras autoridades em prantos para ver o tal demônio. O padre soluçando, ficou indignado com a ignorância da cidade. Era apenas uma criança! O prefeito em lágrimas pediu-lhe que parasse de soprar a flauta. O menino obedeceu e foi embora para o matagal.

Passados alguns dias, o menino voltou a circular pela cidade contrariando assim os habitantes que se julgavam livres dele. Alguns entortavam o nariz a sua passagem, outros os ignoravam por completo. Ponta de lança indiferente ao desdém da cidade foi até prefeitura falar com o prefeito que muito a contra gosto o recebeu, já lhe avisando de que dispunha apenas de alguns minutos, pois ele era um homem muito ocupado e não perdia seu tempo com crianças que vagabundeavam pelas ruas. O menino pediu-lhe que reunisse toda população, pois ele tinha o remédio para erradicar a epidemia que assolava a cidade e a solução para seu progresso e riqueza. O prefeito o olhou atravessado. Não gostou nem um pouco que uma criança abandonada na rua viesse ensinar-lhe a dirigir sua cidade. Falou duro com ele:

- Preste bem atenção garoto, ao que vou lhe dizer médicos renomados ainda não conseguiram debelar esta epidemia que nos assola. E eu sou um homem estudado, entendo bem de economia e administração, entretanto, não achei nenhuma formula milagrosa para tirar a cidade da pobreza em que se encontra e fazê-la progredir. Explique-me como um borra botas como você, diplomado nas ruas, sujo, fedido e maltrapilho tem alguma condição ou poder para ajudar-nos?

O prefeito triunfante certo de que o menino não tinha mais argumento lhe deixaria em paz.

- Reúnam a todos que lhes direi como.

O prefeito ficou vermelho de raiva com a provocação do menino, tomou por um atrevimento sua atitude, quem ele pensava que era para enfrentá-lo desta maneira? Afinal das contas ele era o prefeito, uma autoridade digna de respeito, o dirigente da cidade!

- Ai de você moleque se estiver tentando me trapacear vai passar muito tempo vendo o sol nascer quadrado! Ninguém me faz de besta, entendeu? - Esbravejava o prefeito!

Ponta de lança se retraiu assustado e assentiu com a cabeça.

A reunião foi marcada no pátio da igreja, domingo dia de missa todos estavam lá se espremendo para ouvir o que o menino tinha a dizer-lhes. Tão franzino e pequeno! Foi preciso ele subir numa cadeira para que todos lhes vissem e lhes ouvissem.

- Eu sou um enviado da Luz vim com a missão de ajudar á cidade e restabelecer a saúde da população. É necessário que todos...

Nem lhe deixaram continuar, vaiaram-lhe, xingando-lhe.

- Caia fora mentiroso, impostor, demônio! Ponta de lança é um impostooor!

- Gritavam em coro. Jogando-lhes frutas podres; algumas até lhe machucaram o rosto.

Ele teve que sair correndo para não ser linchado foi esconder-se no matagal. Chorou muito de tristeza pela ignorância daquele povo, eles recusaram a ajuda Divina, preferiu a escuridão á luz. Falhara em sua missão. Avisaram-lhe que seria difícil árduo, por ser um povo cético e arrogante e por ele ser jovem, sem muita experiência. Ainda assim, jamais pensou que falharia, será que ele também fora arrogante por se julgar infalível?

O prefeito e toda a população se encontravam irados e revoltados com o menino, o certo era expulsá-lo imediatamente da cidade. Imagine fazê-los de idiota era demais! Confabulavam os cidadãos. O prefeito vendo a manifestação do povo ficou muito preocupado; pois eram próximas as eleições; juntou-se a eles. E assim, uma comitiva liderada por ele foi procurar ponta de lança no matagal. O encontraram encolhidinho com a cabeça entre os joelhos, mesmo assim, não lhes foram solidários. Aproveitando a ocasião, como um bom político, o prefeito fez um pequeno discurso exaltando a moral dos cidadãos, logrado pela infâmia do menino. Demonstrou-lhes seu repúdio pelo falso forasteiro revestido de criança, que tentou aproveitar-se da bondade do povo. Condoído lhes ofereceu sua solidariedade pela traição do menino.

- Ponta de lança em meu nome e em nome de toda a cidade exige-se que a deixe imediatamente e nunca mais a retorne. Pessoas de sua estirpe não são bem-vindas por aqui.

O prefeito estufava o peito de orgulho pela sua ação.

Mas os céus não gostaram de como ele foi acolhido e tratado pelo povo. Decidiram castigá-los e a cidade. Começou uma tempestade ventos sibilavam por toda parte arrancando árvores, telhados e tudo que encontravam pela frente, algumas construções mais sólidas como a prefeitura e a igreja resistiam bravamente. O céu era riscado pela luz dos relâmpagos e os trovões retumbavam por todos os lados, as águas furiosas corriam pelas ruas levando com elas tudo que encontravam no caminho: gente, animais, móveis, carros, e os destroços causados pelos ventos, inundando casas, escolas, a igreja e a prefeitura.

O povo enlouquecido chorava em desespero por verem tudo que tinham construídos e seus pertences tragados pelas águas, não tinham para onde ir todos iam morrer. Clamaram por Deus, pela sua misericórdia, foi quando ouviu aquela melodia em sopro, doce, harmoniosa, calma, linda!

As águas recuaram mansamente, as chuvas cessaram, a cidade estava enxuta, fora um milagre, embora os estragos estivessem lá para que todos vissem. A população comovida quis ir á igreja para agradecer o milagre quando o padre apontou para o telhado da prefeitura. Lá estava ponta de lança soprando sua flauta. O povo emudeceu. Era ponta de lança sim. Não mais vestido com roupa curta e de couro, no entanto, de branco, com suas imensas asas abertas, Resplandecia. Todos se ajoelharam pedindo-lhes perdão. Ele os perdoou. Falou a multidão, agora contrita e envergonhada que ele era um anjo enviado por Deus em resposta as suas preces.

Após falar ao povo da cidade, o anjo desapareceu numa explosão de luz. A epidemia cessou, a cidade progrediu, mas a população ainda chora seu arrependimento e sua vergonha, na esperança de que outro anjo venha visitá-los.

Berná Fiuza
Enviado por Berná Fiuza em 24/11/2013
Código do texto: T4585222
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