AS SETE VIDAS
® Lílian Maial



Um dia de plena atividade no escritório: papéis, telefones, documentos, lamentos, pessoas pra lá e pra cá, urgências e carências. Sílvia ainda estranhava esses sons, embora já estivesse nesse setor havia mais de dois anos. Vez por outra, concentrava-se nas tarefas de tal forma, que nem percebia as conversas ao redor, como se ficasse isolada numa redoma.
Estava num desses momentos, completamente absorta, quando é arrancada dos pensamentos por uma voz muito pouco amistosa:
- “Abre esse cartão aí!”
Ela custou a entender a ordem e reconhecer de quem partia. Voltou-se e viu José Renato com uma expressão de ira, rosto vermelho e contraído, olhos apertados, fixos na tela do computador.
À princípio, Sílvia não compreendeu o comando; olhou novamente para a tela e viu que havia deixado a caixa de entrada de seu provedor aberta, com a listagem de todos os e-mails recebidos, em seu microcomputador. Dentre eles, um cartão de Jader, seu amigo de longa data, colega de trabalho dos tempos do outro setor, com quem convivera por mais de 10 anos, e com quem mantinha correspondência desde que mudara para essa nova função. Não havia nada de mais, era apenas troca de gentilezas, notícias pessoais e das famílias, coisas de amigos que sempre se viam e se falavam, mas que as contingências haviam separado do espaço físico.
Nada de mais, poderia perfeitamente abrir o cartão, não tinha nada a esconder, porém, de repente, aquela invasão de sua privacidade, a falta de confiança, além da agressividade na voz e nos olhos de José Renato a tiraram do sério. Ela ainda tentou mostrar a bobagem que ele estava fazendo, insistindo que não havia maldade nos e-mails que trocava, mas nada parecia adiantar. José Renato ia ficando mais e mais autoritário, quase gritando:
- “Abre esse cartão aí!”
Sílvia, mais uma vez, como que tentando salvar a situação, dispara:
- “Você sabe bem o que está fazendo, José? Sabe o que isso significa? Sabe o que vai acontecer, se insistir nisso?”
- “Não me interessa!” – retrucou ele. - “Quero ver esse cartão!”
Muito decepcionada, vendo-se pressionada pela situação, Sílvia concorda em abrir todas as mensagens que ele quisesse, mas informou que tudo estaria acabado entre eles.
Mesmo assim, ele mantém a posição, e Sílvia sente o gosto de morte em sua boca, a morte de um sonho, de um lindo amor.
Ela se conhecia muito bem, sabia que a carne era fraca, que facilmente cederia a um beijo ou uma carícia de José Renato, como já acontecera antes, em outras demonstrações de ciúme desmedido, quando ele sempre a agredia e ofendia. Ela cedia depois, quando ele pedia desculpas, alegando fazer aquilo por ciúme, por “amar demais”. No entanto, o que talvez ele não percebesse era que, a cada vez, o amor morria um pouquinho. Como um gato, com sete vidas, só que ela não sabia quantas vezes mais sobreviveria. E aquele gosto na boca era bem conhecido, seguido da enchente muda nos olhos.

Obedeceu, como sempre.
Abriu o cartão, deixando que José Renato lesse as palavras de encorajamento, vindas do amigo fiel e presente, que sabia de sua alma inquieta e generosa, de mãe amorosa, de profissional séria, de mulher sensível.
Não satisfeito José Renato a obriga a abrir todas as outras mensagens do amigo Jader. Numa delas, bastante longa, falando de coisas espirituais, José Renato sequer lê o texto, e manda que ela desça a mensagem até seu final, onde ele pôde ler as palavras: - Que a Paz de Jesus lhe acompanhe em todos os dias de sua vida”.
Sílvia olha para ele, num misto de raiva, mágoa, dor e vitória, pela pureza do que ele acabara de ler. Entre os dentes, ela consegue dizer para ele deixá-la em paz, para sumir dali, que não queria mais vê-lo. Ele tenta falar, mas ela estava tão transtornada, que qualquer coisa ali cairia mal, e ele saiu. E ela sentiu uma espécie de alívio transitório, até que a dor do fim tomasse conta do seu coração.
- “Melhor assim” – pensou para si - “Ele não pode achar que faz o que quer e fica por isso mesmo. E a minha dignidade? E a minha palavra? E meu amor próprio? Não, dessa vez não vou ceder, estou disposta a ir até o fim (sabia que, se ele lesse seus pensamentos, duvidaria dessa convicção toda, tão acostumado estava com a falta de vergonha de Sílvia, que sempre voltava pra ele)”.

Por muito tempo Sílvia se questionara o porquê de aceitar esse comportamento condenável de José Renato. Achava um absurdo essas mulheres que se submetem a situações de agressão física, verbal e moral, em nome de amor. Sempre acreditara que “quem ama não mata” e que também não humilha, não ofende, não invade, não magoa gratuitamente. No entanto, lá estava ela, mulher independente, interessante, bonita e talentosa, atrelada a uma posição que combatia energicamente. O que acontecia? Por que não se livrava simplesmente daquele homem tão diferente de seus ideais masculinos de companheirismo?
Percebeu que aquele amor era como uma dependência química, como uma adição. O amor era a droga ilícita que era injetada em suas veias, em doses quase letais, que geravam uma overdose de paixão, uma alteração em seu comportamento, em seu juízo, seu julgamento. Sabia que era errado, mas não conseguia reagir.

Ainda naquela manhã ele tentou ligar, mas Sílvia não suportaria mais agressões, mais atrevimentos. Decidiu não atender.
Saiu mais cedo e notou que ele a seguira. Ela não parou, não titubeou, tomou seu rumo e se orgulhou disso. Estava firme.
No dia seguinte, à noite, já mais serena, recebeu um telefonema dele no celular, mas também não atendeu.
No outro dia, pela manhã, como de praxe, ele telefona para combinar de vê-la. Sílvia estava morta de saudade, sabia que não resistiria ao cheiro da pele de José Renato, ao seu calor, seu abraço, e pensou em recusar vê-lo. Porém, quando ia deixar quieto, imaginando que ele se desculparia, ele pede que ela vá para lhe devolver o talismã, legado de seu pai, que ele havia deixado com ela, como prova do imenso amor que sentia.
Ao fazer tal pedido, ela, que já se via perdoando aquele deslize dele, percebeu que ele não havia se arrependido, e que estava disposto a voltar ao seu lugar, como rei absoluto do pedaço, de maneira impune, “por cima da carne seca”.
Aquela atitude infantil e machista ela já conhecia bem: a última palavra tinha que ser a dele. Ele nunca admitiria ser deixado, inclusive já havia dito isso a ela, que ninguém o largava. Antes, faria com que ela tivesse esperança de voltar, para ele dar fim à relação. Não era a primeira vez, mesmo que a cada vez doesse igual.
- “Que fosse!” – pensou ela, mas negou, disse que não levaria o talismã (nisso ela foi mais infantil que ele, disputando quem surpreenderia quem).

No lugar marcado, lá estava ele e, pra variar, oferecendo o rosto para um beijo. Ela simplesmente o abraçou, saudosa, meio sem jeito, e verificou, ao menor toque, que se entregaria mais uma vez.
Sentaram e conversaram amenidades, como se não estivessem ali para a decisão mais séria dos últimos tempos em suas vidas.
Enfim, tocaram no assunto e ele confessa que não só não havia se arrependido, como faria tudo novamente.
Mais uma decepção. Ela o observava com tristeza, exatamente aquela tristeza de quem sabe como poderia ser tudo diferente, caso ele apenas a respeitasse como pessoa e acreditasse na sua pureza, bondade e capacidade de amar integralmente. Mas não, ele nunca entenderia essa avalanche de amor que havia dentro dela. Como se pode impedir que a avalanche avance pelas montanhas abaixo? Como se pode conter uma avalanche? Ele nunca notaria a nobreza de caráter e a generosidade do coração, os quais confundia com frivolidade, com necessidade de reconhecimento. Nunca alcançaria a singeleza de seus instintos mais primitivos, simplesmente por não querer admitir sua independência, sua liberdade interior e sua inquietude natural de mulher emancipada, que não aceita cabresto, ao mesmo tempo em que se desdobra em carinhos e atenções para com o amado.

Nesse momento, ela lhe entrega o talismã e percebe a surpresa habilmente disfarçada naqueles olhos tão seus, camuflados por tênues óculos escuros.
De súbito, ele se levanta e pede um beijo de despedida, como um teste para seu ego de macho. Ela sorri, entende que aquela era a consumação da sentença proferida há muito pelo Juiz dos Juízes, e consente. Aproxima-se dele, deixa que os lábios se toquem com a doçura e maciez das mais raras pétalas, e sente todo o corpo tremer. Ele levara seu amor naquele beijo, ela o queria de volta.
Beijam-se com a paixão de novos amantes e seu destino selado. Saem daquele beijo novamente namorados, como sempre acontecia quando faziam as pazes.
Contudo, o gosto de vida daquele beijo não conseguiu apagar completamente o sabor de morte, já tão impregnado em Sílvia. Ela sabia que viriam novas segundas-feiras, novos finais de semana, novas agressões, novas despedidas, novos beijos de trégua, novas mágoas e lágrimas. Sabia do desgaste e do veredicto, sabia das sete vidas.
Só não podia adivinhar com exatidão quantas vidas tinha ainda esse gato.


*****************