Libélula

O cheiro suave das flores sobre a cômoda decaia como um rastro de morte pelo quarto amplo. As roupas espalhadas pelo chão lustroso confundiam-se com os lençóis bagunçados e rubros. Da porta entreaberta podia-se ver o reflexo de um espelho ricamente adornado, onde um homem estendia-se sobre a cama. Seus corpo, inerte, se banhava em grossas poças de seu sangue. Os dedos ausentes. A orelha direita faltando. E onde deveria estar seus órgãos genitais, apenas mais uma dolorosa mancha vermelha. E seus olhos... seus belos olhos... Quase saltavam em pânico.

Na noite anterior, a mansão fervilhava, era uma festa incomum para a maioria das pessoas, mas na família Merot, uma tradição. O baile de mascaras, mas agora as coisas eram diferentes. As musicas que agitavam a multidão cintilante não passavam de um barulho ritmado, as roupas cada vez menores e mais justas deixando a mostra a pele que exalava perfumes sempre encorpados e que faziam o salão pulsar em desejo. Já não era uma festa familiar, apenas um pretexto como tantos outros que Miguel arranjava há tempos.

Em seus anos gloriosos, se encheria de garbo, flertando com todas as mulheres presentes, levando uma ou muitas para um dos quartos da mansão como troféu, mas agora, em seus quase cinquenta anos, havia criado preferências, e ela estava bem a sua frente.

Metida em um longo vestido verde-claro com uma leve transparência, via o par de pernas mais bem torneados da noite, sua mente se encheu daquela doce futilidade ao notar o contorno arriscado da cintura da moça, ele jamaris poderia imaginar o tamanho do risco de perder seus olhos nas curvas fartas e bem feitas da deusa à sua frente. O cabelo se aprumava em um coque e a face se escondia atrás de uma mascara em forma de libélula nos mesmos tons de seu vestido, contrastando adoravelmente com sua pele negra que reluzia macia sob as luzes insanas do salão.

Ele não hesitou, não pensou duas vezes, pensando bem, não pensava mais. Seus passos lhe guiaram até a dama desconhecida e sem nenhuma dificuldade levou-a da confusão de corpos para o jardim silencioso. A grama, ainda molhada pela chuva que caíra incessantemente durante todo o dia, deixava as barras dos trajes úmidas, e ele passou a imaginar quão delicioso seria preencher aqueles lábios grossos com os seus, que sem nenhum convite selaram sua boca à dela.

Profundos olhos negros que ficaram incompreensíveis nos segundos seguintes aquele ato ato de petulância, poderia apostar-lhe os pensamentos enjoados que reverberavam pela mente deles.

Faziam seis anos que ela esperava por aquela noite, seis longos anos torturantes a procura daquele homem, o dono da mascara com a longa pena azul e carmim e agora ele ousava tocá-la.

Se ele desconfiasse quem era a senhorita, teria notado toda essa estranheza, mas qualquer mísera desconfiança foi anulada quando ela repentinamente o beijou, instantes depois ele já estava totalmente persuadido e caminhavam aos beijos até o ultimo quarto do terceiro andar da mansão Merot.

Uma taça de vinho se entornou em cada uma daquelas bocas, havia um amargor a mais na bebida, mas ele, já alterado, não percebeu e logo também tomava a moça, em seus braços, com avidez, tirando-lhe as roupa, enquanto ela sorria em um êxtase desconhecido. O vestido verde-claro já jazia no canto do quarto quando ele notou uma dificuldade em controlar a dobradura dos dedos, o franzir da testa, a curvatura das costas, o equilíbrio das pernas, e nada mais respondia aos seus impulsos e ela ao perceber o efeito, subiu as mãos ao longo de sua nuca, puxando a fita que segurava a máscara ao rosto do homem, liberando seus cabelos grisalhos e o rosto assustado. Na voz clara dela soou a sentença.

- Finalmente posso conhecer esse rosto – os delicados dedos dela desfizeram o laço que prendia a libélula ao seu rosto, revelando a belíssima e familiar fisionomia e fazendo o rosto se limpar de todas as cores. Não havia mais expressões, apenas o choque estampado em seus olhos claros e mimados.

A mente se debatia tentando sair da cama, mas as pernas não se moviam. Quem sabe gritar? Pedir ajuda, correr? Mas não havia voz, seu peito parecia feito de brasas e ela caminhou ate seus próprios pertences no canto oposto à cama, tomando nas mãos a adaga, seus passos até ele eram delicia aos ouvidos de deusa, sentia-se viva pela primeira vez desde que o encontrara pela primeira vez, desde a noite infeliz há seis anos.

- Eu sou aquela garotinha, a filha da empregada, se lembra? A pequena deslumbrada em uma festa dada pelo patrão.

Sim, ele se lembrava daquela menina, a garotinha mirrada e encrenqueira que ele pegara desprevenida naquele mesmo quarto.

- Fez de mim o que quis naquela noite, não? Hoje, trocaremos de papel.

Ela deslizou a lâmina pelo corpo do homem imóvel pela paralisia do veneno. Os olhos de Miguel gritavam o que seus lábios não conseguiam e ela continuou, sentou-se sobre ele beijando a face, que se banhava naquele suor gélido, satisfeita.

- Você não sabe como esperei por isso...

Cortou-lhe uma das orelhas, o dedo mindinho, o polegar, um por um postos sobre seu peito após serem extraídos lentamente. Pelo puro prazer, partiu então para seu objetivo.

Os olhos dele, perderam o azul e o brilho enquanto o metal rebrilhavam ao rasgar pouco a pouco seu tão cultuado órgão, tirando centímetro por centímetro, assistindo gota a gota escorrendo entre o vão das pernas e sobre o abdome, transbordando pelo umbigo e manchando magistralmente os lençóis alvos, não restando nada além da dor lancinante e todo o sangue que enrubescia os lençóis.

Ela se sentou sobre a cômoda, sorrindo para o homem que se esvaia em vida e mediocridade. Meia hora de agonia, parecia pouco perto da vida pela metade que ela havia recebido de presente naquela mesma ocasião, mas ainda assim seu sorriso triunfava nas feições de perfeição.

Quando o corpo parou de lutar contra a morte, ela vestiu o longo vestido e saiu daquele cemitério de lembranças, sentia tamanha leveza que, mesmo que suas asas de libélula fossem de mentira, ela podia voar.

- Com a participação especial de Raul Lima Guimarães e sua imaginação fantástica.

Thaina Chamelet
Enviado por Thaina Chamelet em 06/12/2013
Reeditado em 01/02/2014
Código do texto: T4601450
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