Meio Bobo

Sempre levara uma vida “meio boba”. Acordava às 6h e pegava o ônibus de uma forma “meio boba”, com pessoas “meio bobas” para chegar ao seu emprego “meio bobo”. Lá socializava com tantas outras pessoas “meio bobas” sobre assuntos “meios bobos” enquanto preenchia todos aqueles papéis “meio bobos” também.

Almoçava algo “meio bobo”, tomava alguma coisinha “meio boba” por ali e voltava ao seu serviço. Por fim, às 18h estava de volta a sua casa, decorada de maneira “meio boba”. Jantava algo “meio bobo” também, assistia algumas coisas “meio bobas” na televisão e por fim ia dormir. Sono leve e “meio bobo”.

Houve o dia em que perdera seu emprego “meio bobo”. Tão feliz quanto quando arranjou outro emprego “meio bobo”. Finalmente algo para voltar à sua rotina anestesiantemente “meio boba”. Sentia-se perdida quando estava desocupada. Sentia mil coisas dentro de si fora de seus lugares, mas camuflava todas com muito menos que uma coisa passageira. Um mal-estar.

Eis que um belo dia “meio bobo”, enquanto digitava alguma coisa “meio boba” no computador, um jovem entrou. Parou por um momento olhando-a de forma curiosa e indagou:

- Quem é você? Cadê a Mariana, a moça que trabalhava aqui?

A pergunta foi singela, mas explodiu na cabeça. Explodiu como mil fogos de artificio nada bobos.

Ela fitou ele por um momento e então respondeu:

- Meu caro... Eu não sei quem eu sou. Eu realmente não sei quem eu sou.

O jovem “meio bobo” (sim, ele também era) a olhou de maneira desconfiada e saiu sem dizer nada.

Ela então pode ver seu reflexo no monitor do computador que havia desligado durante o curto diálogo com o moço “meio bobo”.

Ela pode se ver.

Ela viu a menina que queria ser economista, mas não foi porque disseram que era “curso pra rico”.

Ela viu a jovem que deixou de usar saias porque disseram que tinha pernas grossas demais.

Ela viu a mulher que sempre tivera muitos amigos do sexo oposto mas nenhum namorado, porque sabia que falharia se tentasse se declarar para qualquer um deles. A mulher que cultivava amores platônicos como se cultivam rosas em um jardim e que depois chorava em silencio ao ver seus amores em outros braços.

Ela viu em si todas as frustrações do mundo. Todos aqueles papéis impecavelmente bem atuados e aquelas vidas medíocres. Todos aqueles sorrisos e conversas sem relevância que aconteciam em barzinhos mundo a fora aos fins de semana. Todo aquele vazio camuflado por remédios tarja preta ou por placebos mentais. “Tá ruim, mas tá bom”, não era isso que diziam as pessoas? Não era esse o teatro do mundo?

As lágrimas começaram a rolar. Não havia nada de “meio bobo” nelas. Lágrimas de quem agora sabia exatamente tudo aquilo que não era, lágrimas de quem encontrou todos seus sonhos quebrados caídos como cacos de vidro à sua frente. Era pisar para se machucar.

Suspirou mais alguns instantes. Secou as lágrimas. Levantou-se meio cambaleante e foi ao bebedouro. Pegou um copo d’água, tomou-o e respirou fundo. Teve tempo de ver uma aranha enrolando pacientemente em sua teia uma mosca que até então a importunava. A natureza dava um fim “meio bobo” para as coisas com certa frequência. Nunca se sentira atraída pelas aulas de biologia, afinal.

Sentou-se novamente em sua mesa “meio boba” e retomou seu trabalho “meio bobo”.

De tempos em tempos olhava para a porta, ver se o moço “meio bobo” não voltava. Queria responder a ele a pergunta que ele fizera.

Queria dizer que havia enfim se encontrado. Era uma mulher “meio boba”, que tinha tido algumas ambições “meio bobas” quando jovem, mas que por fim viera ocupar o lugar da Mariana, aquela menina “meio boba” que ali trabalhava antes dela. Talvez ele não soubesse, então contaria que a Mariana-meio-boba tinha ido fazer intercâmbio nos Estados Unidos com algum dinheiro que guardou por muitos anos. “Meio boba essa menina né? Onde já se viu secretária estudando artes cênicas fora do país? Essa gente não te parece meio boba da cabeça?”. Aí perguntaria para o garoto onde ele gostaria que batesse o carimbo “meio bobo” e pra que ele tomasse cuidado que esse tempo “meio bobo” estava com cara de quem ia virar uma chuva. Aquelas chuvas “meio bobas” passageiras de verão.

Era apenas isso que tinha a declarar sobre sua vida “meio boba”. Nada mais que isso.