Bom dia, srta. Hachmann!

“Não. Eu não sou uma princesinha rimbaudiana de algum país europeu frio e chuvoso a viver meu ócio aristocrático, como sempre diz Giovana que, aliás, depois que se formou em letras, a única coisa que tem feito é transformar e identificar a família e os amigos em personagens...” Disse em pensamento Jéssica Hachmann, a judia, fitando-se fixamente no espelho enquanto media as dimensões de seu altivo nariz e uma lágrima lentamente contornava a cavidade negra e profunda a volta de um de seus olhos. Olhar marejado posto contra a própria imagem refletida; cotovelos apoiados na pia, mãos a sustentar o rosto exausto de modo a conferir-lhe formas grotescas; tinha os cabelos emaranhados, naturalmente ruivos e ressecados, mas já foram de muitas outras cores mais extravagantes.

Ouvia-se apenas o ruído das gotas que vagarosamente pendiam da torneira e estouravam na banheira transbordante... A claridade já inundava o banheiro daquele apartamento em Higienópolis, revelando o sangue escorrido nos velhos azulejos brancos... No chão, uma carta de John Stevenson, um maestro em ascensão no métier musical londrino, além de velho amigo da família, que a convidava para ser solista junto a Royal Philarmonic.

Apesar de ser ainda tão cedo, criancinhas brincavam lá fora, no pátio de uma escola ao lado; seus risos inocentes e agudos ecoaram e romperam o gotejar monofônico da torneira fazendo assim despertar Jéssica de sua profunda letargia. Desceu as calças do pijama que ostentava graciosos ursinhos estampados, examinou a genitália felpuda, igualmente ruiva, e fez xixi; limpou-se, levantou-se, enxugou as lágrimas, respirou profundamente e disse desabafando com seu ar teatral e levemente sarcástico de sempre: “É chegado o momento de viver”.

De fato, o emprego que Dna. Ofélia havia lhe angariado não era dos melhores, todavia, lhe servia como passatempo, como terapia (embora Jéssica duvidasse disso). As aulas de violino que ministrava em seu apartamento para fedelhos de classe média sem talento algum enfadaram-na, a reclusão a qual se acomodara permitiu que criasse certo limbo em sua mente. Passou a trabalhar na tabacaria de Herr Jürgen numa galeria entre a Barão de Itapetininga e a Sete de Abril, um emprego nada condizente com sua classe social, com seu intelecto e habilidade artística.

Por mais que tentasse esconder, a fim de inserir-se entre os pobres mortais, tinha evidentes modos de abastada, isso sem dizer o português impecável com um leve sotaque alemão. Jéssica era assim: uma menina que já nascera com cara de dama antiga (provavelmente mudaria muito pouco até chegar aos oitenta anos) e que tinha como destinação enfeitar a sala de algum banqueiro com seus traços clássicos esculpidos em seu rosto de mármore carrara. Rejeitou sua sina, preferiu um albergue em Praga, onde pintou seu cabelo de cor-de-rosa pela primeira vez depois de contemplar aquele pôr-do-sol único estando apoiada no beiral de um balcão no último andar de um edifício do séc. XVIII, herança arquitetônica do império austro-húngaro; lá também conheceu as drogas, a vodka e a solidão das noites frias, chegando até ser detida pela polícia por apresentar um comportamento agressivo aos bons costumes.

Jéssica já havia se curado. Poderia ir ao trabalho de carro, é verdade, mas queria sentir a vida pulsando, não somente a sua, mas a dos outros também. Escolheu ir de ônibus e metrô. Naquela manhã deveria passar pela Líbero Badaró a fim de ver o simpático tio Isaac, um relojoeiro que sempre sublimava suas más características. Certa vez, ainda quando criança, Jéssica roubou alguns cruzados novos do bolso do pai. O primeiro a saber do feito foi o tio que prontamente a elogiou aclamando-a como “uma grande estrategista, uma larapia sagaz”, porém, quando o pai descobriu e a castigou, Isaac a consolou dizendo que era uma boa filha por aceitar a penitência a ela imposta. Não havia más qualidades para aquele homem de barba fina e castanha, havia bondade naqueles olhos, bondade que, quando refletida nos olhos de Jéssica, não passava de inútil hipocrisia. Sim – Às vezes ela era impiedosa com sua família.

Optou desembarcar na estação São Bento do metrô...

Quando as portas dos trens se fecharam e uma voz feminina anunciou nos alto falantes que uma mãe procurava seu filho que havia desaparecido ao desembarcar, tudo ficou vazio e em silêncio, restava apenas o guinchar dos trens, já um tanto distantes, vindo ecoar daquela boca negra do túnel. “Estes são os murmúrios da metrópole”, pensou no exato momento em que, lá na outra extremidade da plataforma, saiu detrás de uma coluna uma cabecinha cor de chocolate. Ria, gargalhava! “Este deve ser o menino que sumiu da mãe”, concluiu. Saiu correndo atrás dele. Mas que nada! O moleque desapareceu nas escadarias e não mais fora visto por ninguém...

...Uma mãe chorava enquanto ela, ao subir pelas escadas rolantes, recebia o beijo frio da brisa e da luz. Com aqueles profundos olhos azuis, mirou com ar de misericórdia o mundo diante de si. O rosto pálido, um tanto doentio, parecia fresco, exalava lavanda naquela manhã de outono; numa observação mais ousada e próxima era possível notar pequeninos veios azulados nos cantos das pálpebras, além de pequenas rugas; os cabelos esvoaçavam ao impulso da aragem... Um tanto poluída, claro, principalmente para quem está a poucos metros do Largo do Payçandú, onde os ônibus exalam seu negro e fétido fumo.

Dentre outros arranha-céus de uma São Paulo fria e cinza, notou o prédio onde fora o BankBoston; lembrou-se de Pedro que um dia ali trabalhara. Pedro, aquele que sempre a acudia nos momentos mais difíceis. “O que tem feito aquele espírito resmungão, intocável e imbatível? Onde está vivendo aquele perfeito dandy? Numa redoma de cristal em Cornuales ou seria no sul da França? Não sei, aquela figura insuportavelmente adorável não escreve nem telefona; a última vez que me recordo ter falado com ele, estava todo esbaforido desembarcando no JFK. Disse que lançaria seu livro naquela semana numa livraria da 47° Avenida - não sei se lançou, não recebi a cópia prometida. Como chorei aquela noite! Que boba! Fiquei como morta estirada no sofá por não estar em companhia dele, bebi demais – talvez tenha sido uma garrafa inteira de Glenfiddich - e adormeci ao som de ‘Lush Life’ (1), música que provavelmente ele estaria ouvindo, sozinho também, em ‘some small dive in Manhattan’ (2) . Uhm, sobre o que ele escrevia mesmo? Ele escrevia sobre nós provavelmente, sobre tudo que podia escrever, sobre tudo a respeito de seu mundinho rico e triste. Tanto se esforçava para descrever a metafísica daquele sabor gelado de um chikabom saboreado na infância numa tarde florida em alguma praça de Poços de Caldas; queria falar sobre o frio na barriga que sentia quando brincava de esconde-esconde com os primos nas noites de verão; queria falar do prazer ao ouvir os gritinhos de crianças pulando em poças d’água ou sobre o conforto, a ternura daquele abraço que me dera enquanto, em silêncio, vislumbrávamos o mar numa praia de Cannes naquela manhã fria e nublada. A felicidade estava lá perto... Deus!” – Jéssica, com os lábios trêmulos, abaixa a cabeça, apalpa a testa e, com as pontas dos dedos, contorna o nariz, respira profundamente...

Quando já restabelecida, percebe-se parada em frente a uma livraria, vê na vitrine vários livros de capas vermelhas com letras douradas, e pensa:“A palavra tem seu poder, mas há lugares, sentimentos e momentos por ela inescrutáveis e indescritíveis. É necessário viver para usufruir tudo isso com intensidade... e depois guardar na memória. - Um ônibus elétrico estalando nos fios suspensos sobre a rua passa a seu lado ostentando uma enorme propaganda da Coca-Cola, onde alguém, com uma sede magrebina, suga o líquido com tremenda voracidade; o cobrador, atrás daquele ensebado vidro, com um olhar cúpido, a mede dos pés a cabeça e lambe os beiços, o que a deixa, de certa forma, constrangida. Apesar do aspecto esmagriçado que, segundo ela, beirava ao espectral diáfano, sabia que em si havia algo de exótico, afetado, plácido. – Enfim – voltou seus pensamentos novamente a Pedro – Ele lutava incansavelmente para imprimir o sabor e o cheiro da vida em folhas de papel, era como se quisesse tocar o horizonte com as mãos, sentir-lhe os choquinhos elétricos e quentes, o frêmito, a dor de um pôr-do-sol, justamente numa época onde a palavra já parece tão gasta, onde alguns que escrevem tentam reinventar a roda e acabam agredindo o bom senso... Pedro, ah, Pedro!”... Dirige o olhar para ambos os frágeis pulsos, vendo as ataduras ainda manchadas que recebera naquela madrugada. Fechou os olhos com pesar e não pode deixar de ver a trágica cena (que mais uma vez se repetira) do sangue por todo o banheiro. Lembrou-se também, com certo rancor, das palavras do médico que, com aqueles lábios secos e roxos, lhe proferira um sermão estúpido, moralista e inútil... "Nada profissional!" Caía também sobre seus cansados ombros o pesar da moral religiosa que tem como imperativo ético a vida. Aliás, há muito, srta. Hachmann se distanciara das sinagogas, e, por isso, se sentia penitenciada constantemente. Quanto mais ela agia de modo contrário aos preceitos que por anos a conduziram, quando então freqüentava a Mekor Haim(3), mais dor sentia, uma dor de consciência, uma eterna convalescença sendo amargada num leito de culpa; entretanto, ao mesmo tempo, sabia o quanto o excesso de religiosidade embota os sentimentos, sentia-se aliviada por desse mal não sofrer. No fundo, sentia falta daquela segurança que o hábito religioso a conferia, questionava a validade de sua existência sem um Deus cultuado formalmente segundo sua fé inata, via-se desviada dos valores da família... Vivia na constante dúvida se amaria ou odiaria constituir uma.

Caminhava agora pelas irregulares calçadas que davam frente para a agência central dos Correios, sentia-se só, mas, de certa forma... Segura (mesmo que por alguns instantes). Contemplava a grande multidão em tumulto seguindo sua marcha, era como a corrente sanguínea que preenchia os veios da cidade e que fazia pulsar o coração do monstro de concreto; esbatiam-na; via a estranha coreografia de papéis sujos rodopiando pelo chão e estapeando as pernas das moças. Parou na esquina com a Av. São João, quedou-se lá por alguns instantes, como uma antropóloga de calçada, degustando aquele momento, vendo cada um em sua singular insignificância seguir seu caminho inexorável, em silêncio, rumo as suas próprias solidões. Sentia os mais variados odores que se encontravam e se misturavam. E, ao mesmo tempo em que execrava, amava tudo aquilo que tocava seus sentidos naquele momento. Amava aquele espírito metropolitano, cosmopolita.

Avistou de longe Isaac na porta da relojoaria, como o velho Shylock(4) abandonado; coçava a barba distraidamente; correu em direção a ele e o abraçou com tamanho carinho, ao que ele reagiu todo atabalhoado com o chapéu caindo da cabeça e com os peiots(5) balançando: “não tenho dinheiro!”, em seguida, olhou-a interrogativamente, e disse rindo sem graça: “ah, é você, é? Quase me matou de susto, Jéssica!”. Logo notou que ele não havia escovado os dentes, mas trajava roupas limpas. Na verdade, não tinham muito que conversar, apenas combinaram algo acerca do Pessach(6) e falaram um pouco sobre o novo emprego dela na galeria; todavia, saciavam-se apenas em ver-se, ficavam segundos, e até minutos, se fitando e sorrindo timidamente... Logo se despediram.

Isaac jamais aceitara a idéia de uma mulher tão jovem e bela morar sozinha, sempre a achava apática, cada vez mais magra e recomendava para que ela seguisse a Kashrut (7). “Você devia vir morar com a gente”, era o que ele sempre falava, mas, tal idéia não era nada atrativa para ela: só de pensar na tia Sarah, já sentia náuseas; era desse tipo de mulher que parece ter demônios nas cavidades do sorriso, que acaricia apunhalando; com aquele rosto barbado e grotesco onde se desenhavam as mais ridículas expressões. Sempre sentada em sua cadeira (pois sofria de gota, além de ser demasiado obesa), toda empoada, pronta para endereçar a próxima maledicência. Apesar de tudo, Jéssica não tinha tantos motivos para rejeitar tanto aquela mísera criatura... mas a rejeitava, e muito! Já quanto ao rosto do tio, a sensação era totalmente diferente; lá ela podia ver a imagem de Salomão, seu pai, homem correto, distinto, de olhar inalcançável que partira tão cedo. Diante daqueles olhos amendoados do tio, impossível era não se ver ainda como aquela garotinha de apenas nove anos que era um espanto, uma promissora violinista; ou como aquela bonequinha de porcelana sentada sobre almofadas, trajando um vestidinho branco em musselina, sapatinhos de verniz adornando os pezinhos, sendo maquilada num dos camarins do Musikverein(8), em Viena, enquanto, só de brincadeirinha, tocava em pizzicatto um “parabéns a você” no violino (presente caríssimo do pai, diga-se), quando então alguém entregara um bilhete a sua mãe, onde constava a informação que o avião do mesmo havia se desintegrado num terrível acidente, logo após ter decolado em Orli, na cidade luz. Desde então, seu mundinho ruiu. Sua carreira artística também. Já Isaac vislumbrava em Jéssica, a menina Ruth, filha natimorta, ou seria sua mammy que desapareceu durante a guerra? Grande era a decepção daquele homem que perdera tudo na vida em investimentos malogrados e em agiotagem, menos a fé em descansar em paz... Em sair desse Egito.

Após a visita ao tio - passava pelo prédio da Prefeitura, quando olhou para o alto - “Bem que eu queria viver num prédio com um jardim suspenso na cobertura, com viveiros de pássaros, com palmeiras, chefleras e azaléias com flores vermelhas, brancas (perfeitas para as noites de luar) desfraldadas aqui e ali, nos galhos flexionados sobre a aléia... Tudo isso no meio de São Paulo e com vista para o Anhagabaú! Uhm, parece-me que pertenceu aos Matarazzo... Impérios familiares...” – pensava se aproximando do edifício enquanto, mais uma vez, dava-se por conta de que não tinha uma família, mas seu império permanecia (uma herança milionária advinda da venda das indústrias do pai), e ela o governava como uma princesa solitária (começava a dar créditos a Giovana). Não tinha primos; a avó, com quem vivera boa parte de sua adolescência, morrera recentemente; tinha apenas um tio, Isaac, (a tia não contava)... A mãe? A mãe havia desaparecido sem deixar vestígios logo após a morte do pai! Tamanho foi seu ódio ao saber que um testamento fora deixado por ele, onde constava que boa parte de seus bens seriam destinados a filha, exceto o que era de direto dela. É fato que nunca tiveram um casamento harmonioso, até sua relação com Jéssica era fria, incomum entre mãe e filha. “Nem visitando a Mikvá(9) todos os meses conseguiu trazer uma atmosfera de santidade e paz para dentro de casa.” Concluía Srta. Hachmann que agora sentia-se um tanto orgulhosa, pois, mesmo sendo órfã e passando por tantas adversidades, sobrevivera... Mas, certamente, carregava tudo isso em seu olhar. Todavia, não gostava de pensar na mãe, tentou se distrair pensando no novo trabalho e nas pessoas que lá freqüentavam... Todos tão excêntricos! Principalmente Oleg, um rapaz calvo de rosto angustiado e de fala enrolada que vendia artefatos militares que, segundo ele, pertenceram ao Exército Vermelho da antiga União Soviética. Numa dessas manhãs de calor insuportável, quando o sol parece queimar o senso de civilidade dos povos que vivem abaixo da linha do Equador, Jéssica, ao entrar na tabacaria, riu ao ver Oleg portando na cabeça um Ushanka(10) e protegendo a cara com uma máscara de gás; logo o russo lhe saudou euforicamente: “dobroye utro!”(11), ao que ela respondeu com voz manhosa: “gutte morgen, Oleg”(12). “Era o que me faltava: uma judia alemã e um bolchevique maluco... Não se ofenda, Fraulein Hachmann. É brincadeira.”, interviu rindo Herr Jürgen. – Mal acabou de dizer isso, Oleg desmaiou, virou os olhos, começou a convulsionar e espumar pela boca, afogava-se na máscara de gás, defecava-se, esfregava a ushanka no imundo chão... Jéssica ficou petrificada.

“Há algo de absurdo e macabro nessas decadentes galerias comerciais que cortam o centro da cidade”, pensou Jéssica quando o verde efusivo do farol de pedestres refletiu em suas retinas - após ter atravessado o Viaduto do Chá. Olhou para trás, contra o fluxo de pessoas que atravessavam a Rua Xavier de Toledo, viu uma árvore de tronco límbico, nervurado, cujas folhagens se metamorfoseavam em cores outonais que iam do amarelo vivo ao palha mais insípido; dentre estas, era possível ver fragmentos do céu onde estampava-se um sol borrado entre as nuvens, dispensando-lhe um raio a tocar-lhe o coração, o peito gélido, depositando lá uma fagulha de vida. Sentia paz agora, ameaçou até sorrir; manteve-se ali na esquina; da cimeira da mesma árvore notou que provinha o estranho e agitado pipilar de pardais; lentamente voltou seu olhar adiante e avistou... quem mais senão Herr Jürgen do outro lado da rua, tendo o Teatro Municipal ao fundo?! Lá estava ele como uma estátua erguida a meio fio na Praça Ramos de Azevedo, com seu chapéu atarracado, as faces rosadas, os óculos de aros redondos e dourados, o mesmo terno marrom de sempre, o colete, o Cartier no bolso, o cachimbo Dunhill. Jéssica imaginou Herr Jürgen quando moço, com seu porte atlético, um nazista inveterado, cheio de ímpetos incontroláveis, cheio de amor a sua espécie, vivendo uma vida abismal, ansiando desesperadamente o sentimento impossível quer fosse com mulheres, quer fosse na política; comendo almas e sentimentos como um animal bulímico... Tais pensamentos envolveram-na numa repentina conturbação hormonal que se misturava a um inexplicável e morno ódio, entendia que tal sentimento tivesse origem talvez em reminiscências de rusgas históricas. “Herança psicológica, inconsciente coletivo? Não. Não sei se dou mais crédito a Jung ou ás previsões do horóscopo". Perdida em pensamentos inúteis, repentinamente sentiu um delicioso aroma de maçã vindo de sua esquerda: “ora, uma gestante comendo um strudel de maçã a essa hora da manhã! Que delícia! Que delícia... estar grávida! Mas como? Eu, com essa vida?”, meneava a cabeça... Dirigiu o olhar para Herr Jürgen novamente, mas ao fixar-se nele, sentiu pena: “pobre homem, envelheceu na busca... Mas tudo isso lhe deu o direito de acrescentar-se um tom grave ao espírito... Todo velho fumando um cachimbo seja numa biblioteca vitoriana ou na porta de um casebre no nordeste do Brasil é, invariavelmente, o mais valioso dos volumes de filosofia. Em seus rostos, dizem, tem estampado o mapa do mundo: as rugas como erosões, as orelhas peludas e pantanosas onde habitam sabe Deus que criaturas e os olhos vidrentos, desérticos...”. Era exatamente assim o olhar que Herr Jürgen dirigia a ela naquele momento. Ela sorriu, acenou timidamente com os longos dedos; ele permaneceu olhando, sem titubear... Alguns segundos se passaram, e nada... Depois de mais uma longa pausa, ele solta um grito seco como uma estocada, levantando o braço direito: “Bom dia, srta. Hachmann!”. O vermelho do farol de pedestres cintilou em seus óculos e então deu o primeiro passo adiante, seguiu solenemente. Toda a algazarra dos ambulantes foi gradativamente esmaecendo. Era possível ouvir as solas de seus sapatos tocando o solo. Um oficial da Guarda Metropolitana, postado nas proximidades, bradou a todos pulmões, seu bigode de exageradas proporções parecia saltar-lhe da face. Jéssica estatelou os olhos, arqueou as narinas, comprimiu os lábios e cobriu o rosto com as mãos... Os pássaros saíram da cimeira das árvores em aborrascada revoada...

A judia ajoelhou-se no asfalto, seu rosto transfigurou-se, não chorava, não gritava, apenas gemia e flexionava seu tronco para frente e para trás, como se reverenciasse aquela estranha figura estendida no leito das ruas coroada com o próprio sangue que agora refletia um sol pleno e dourado.

Dia seguinte:

Fazendo uso de seu mimetismo natural, pegou o telefone e ligou para John Stevenson, aceitando seu convite.

“Agora, sim, é chegado o momento de viver!” – Disse Jéssica Hachmann sorrindo após desligar o telefone.

Otto M
Enviado por Otto M em 24/04/2007
Reeditado em 30/05/2010
Código do texto: T462191
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