PARECE QUE É AMOR

Samia passou o dia inteiro no computador pesquisando música egípcia, tarefa que sua professora de dança decidiu dar as alunas e que vai ocorrer duas vezes ao mês para que possam compreender a essência da música árabe. A professora de Samia falou brevemente dos grandes nomes da música árabe, pois sendo ícones, o que não faltou foi assunto durante a aula sobre os inicialmente escolhidos para a primeira etapa de estudo: Oum Kalthoum, Abdel Halim Hafez e Mohammad Abdel Wahab do Egito e Farid Al Atrash do Líbano.

Samia recebeu uma lista com vários outros nomes da música nos países árabes, mas estes “quatro incríveis” eram memoráveis como Elvis, Beatles ou Ella Fitzgerald, grandiosos na voz e no legado musical deixado para o mundo.

O sorteado para a turma estudar e apresentar informações e músicas que mais gostaram foi Abdel Halim Hafez, “o rouxinol”. Samia deixou a pesquisa para o sábado, e adiantou a vida para ter tempo livre para ouvir e pesquisar a vida de Abdel. Chegado o dia lá foi Samia para o computador pesquisar “o rouxinol” e para ter uma idéia geral acessou logo a Wikipédia e leu um resumão sobre a vida dele, difícil na infância, sempre disposto a ajudar o próximo, um legado invejável de músicas belíssimas, um grande hall de filmes e infelizmente acometido de uma doença que o levou aos 48 anos em 1977, ano que Samia nasceu, e ela se perguntou:

— Gente, olha eu aqui sentada pesquisando um nome da música árabe. Qual seria a probabilidade matemática para este acontecimento? Eu, daqui do meu computador em “terra brasilis” pesquisando Abdel? A boa música não morre nunca, é fato!

Samia começou a pesquisar suas músicas que também se ligavam a alguns filmes feitos por ele, o que parecia ser comum no mundo todo, cantores e cantoras também sendo atores e atrizes em filmes com muita canção, histórias de amor e aventura, e por lá não era diferente, o cinema era a grande vitrine e Abdel era um galã, assim como foi Elvis e também Roberto Carlos.

Samia assistiu um pouco aqui e ali, filmes ainda sem tradução em português, mas os trechos disponíveis tinham a ver com as suas músicas, então Samia concluiu que o cinema também era uma forma de eternizar a música e fazer um “clipe” e mantê-lo pra história em segurança.

Já era noite e Samia não cansava de ler artigos, acessar páginas dedicadas ao "rouxinol" e traduzir reportagens que falavam de Abdel, em todas era consenso que ele era incomum, assim como difícil de encontrar intérpretes, poucos o fizeram e as versões instrumentais eram realmente fabulosas. Ela ouviu Mawood (Prometido), Ahwak (Eu amo você), Ala Hesb Wedad (Para onde meu coração me leva), Fatet Ganbena (Ela passou por nós), Sawah (Errante), Qariat Al Fingan (A Cartomante (borra de café)) e tantas outras. Samia ficou espantada com o esforço feito pelos fãs em todo o mundo para disponibilizar traduções de suas músicas e tantas outras árabes, a quantidade de admiradores dos “incríveis” pelo mundo inteiro era impressionante e agora Samia se sentia também parte do clube. Ela percebeu que suas músicas mais memoráveis não eram as curtinhas de cinco minutos, mas aquelas de quinze minutos até uma hora ou mais. Samia ficou espantada consigo mesma, pois ela estava ouvindo e adorando, e percebeu que boa parte das gravações da época era resultado de apresentações ao vivo sempre com platéia e orquestra, e foi interessante ver nos vídeos que Abdel muitas vezes regia seus músicos e brincava com o público. Uma diversão só.

Quando Samia se deu conta da hora já era tarde e ela ainda queria ver muito mais, mas o cansaço a tinha alcançado, ela ouvia a última música do “rouxinol” para ir dormir.

E lá estava Samia dormindo, quando alguém bateu em seu ombro:

— Acorda moça, valeu a espera na fila, a apresentação já vai começar!

— Ahn, o quê? Vai começar o quê?

— Olha, Abdel está entrando, Yalla, Yalla!!!!!

E foi uma gritaria generalizada, Samia tomou um susto e logo saltou da poltrona, ainda atordoada pelos gritos a sua volta e sem entender nada olhou em volta e não poderia acreditar no que seus olhos eram testemunha, ela estava num teatro imenso, lotado nos três andares e então ela ouviu um nome e olhou para frente... Era Abdel Halim Hafez e ela começou a pular e gritar Yalla (Vamos) junto com o público feito doida, e foi aí que...

— Minha nossa! Mas... Tá tudo em preto e branco? E eu também!!! O que é isso?

Samia ficou sem palavras, só olhava em volta e foi então que ela se deu conta que estava tudo em preto e branco, as pessoas estavam em êxtase, coisa de fã, pulando, puxando o cabelo, vibrando, era tudo uma loucura só digna de apresentação dos Beatles, mas Samia estava numa apresentação do Abdel Halim Hafez, e ela pensou?

— Não é possível? Hei, em que anos estamos? – perguntou Samia a um rapaz ao lado.

— Ahmm? Ficou doida? 1972... Ora! Já vi de tudo, mas perder a noção do tempo desse jeito é a primeira vez – o rapaz ria de Samia e ela estava sem palavras.

— Mas como eu vim parar aqui? Que loucura! – perguntava-se Samia que passou uns dez minutos sentando e levantando, olhava para os lados e só via gente cantarolando a harmonia que a orquestra tocava lá no palco e então ele cantou...

— Zay el hawa ya habibi, zay el hawa (Parece que é amor querida, parece que é amor)

— Uau – foi tudo o que saiu da boca de Samia, ela estava sem ação, era Abdel cantando e ela estava na quinta fileira do teatro e, de repente, toda a preocupação se desfez e Samia ficou ouvindo Abdel cantar Zay El Hawa (Parece que é amor).

Samia estava encantada, pois ela sabia que aquela música tinha aproximadamente cinquenta minutos, e diante dele não havia folhas para ler e ela não via ponto eletrônico, e nem sabia se já existia, era incrível o controle e troca com o público que Abdel era capaz de manter sem maior esforço. Ele dizia um refrão e o público respondia.

"O rouxinol" merecia a característica, pois estava magistral, uma voz sem igual e parecia que estava planando no palco, cantando, de braços abertos, mexendo a cabeça pra lá e pra cá, a sua característica marcante junto a um sorriso cativante, e a esta altura Samia não estava preocupada em como tinha parado lá, só sabia que ao contrário de Dorothy ela não queria sair de lá de modo algum.

— Não há lugar...como este aqui, por favor, eu não quero ir embora! - dizia Samia a si mesma. E repentinamente Abdel fez uma pausa.

O público bateu palmas e ficou à espera. Era o solo musical onde ele novamente regia a orquestra em compasso de pergunta e resposta, o público só poderia pedir mais e então fez-se um coro que não sabia se pedia mais ou deixava-se gentilmente maltratar por aquela espera ao retorno da música que foi recebida com grande alegria. Samia fazia parte do público, totalmente conectada e "cantando" já que de árabe não sabia praticamente nada, mas ouvir Abdel dava uma sensação boa e acompanhar a geral era como cantar enquanto se faz algo em casa, muita alegria e pouca sintonia de palavras.

Já próximo do final da música onde há um trecho mais denso, Abdel cantava de olhos fechados, impactante, cheio de lamento e energia, era uma loucura e Samia já estava pulando e fazendo cara de "espera" por cada momento da música.

— Ai, tá acabando, tá acabando, não! - dizia Samia querendo ficar mais tempo ali, mas não tinha jeito, era o final da apresentação e Samia pulava igual a uma criança quando se diz que é hora de encerrar a brincadeira e ela pula esperando que o tempo se estique para aproveitar mais, mas não tinha jeito...

A apresentação acabou. Samia bateu palmas enlouquecidamente e gritava o nome de Abdel como se esperasse que ele a visse e dissesse um oi, mas era tanta gente e ele agradecia a todos, jogava beijos e se retirou. Samia estava feliz da vida e então junto com o público seguiu para as portas de saída do teatro, não estava nem um pouco preocupada pelo detalhe de não ser dali, não ter casa, só estava feliz.

E então a luz do sol alcançou-a e Samia olhou para a rua, tudo tinha a atmosfera dos anos setenta, mas árabe como nas fotos de sua pesquisa, tudo estava em movimento, e então uma moça se aproximou dela e perguntou:

— Que horas são? - Samia olhou para o pulso, e foi quando alguém colocou a mão em seus ombros, e quando se virou ela tomou um susto:

— Ora de acordar moça, são duas horas da manhã! - era a mãe de Samia, ela despertou no susto, estava entre a sonolência e o estado de alerta e aí se deu conta de que não foi dormir, pegou no sono diante do computador, ainda com o fone de ouvido, a música Zay El Hawa do Abdel que tocava em seu sonho tinha terminado, e Samia estava de volta ao lar.