A NOITE DA ESBOSLÁVIA

Eu estava devendo esse conto a você meu irmão. Aquela foi uma das noite mais difíceis que tive, sei que jamais esquecerei o que passamos ali, os socos, os baldes d’água na cara, os bichos nas costas, os choques na língua e no pau, os enterros até o pescoço e toda dor que passamos. Um beijo cara, eu te amo meu irmão.

A NOITE DA ESBOSLÁVIA

Ao meu irmão Cláudio Rangel

O corredor era largo, de um lado ficavam as salas, do outro a vidraça. Ela percorreu o corredor até a saída que dava para o pátio, que estava vazio. No pátio sentou num dos bancos, retirou um papel em branco da bolsa e escreveu alguma coisa, ouviu passos em sua direção, dobrou o papel, colocou em um envelope de carta e guardou na bolsa.

- O ônibus está lá fora, já é hora de ir, não adianta mais esperar, não vem ninguém. – Disse uma amiga que chegou ao seu lado.

- O que você colocou na bolsa? – Perguntou a amiga.

- Umas palavras, durante a viagem deixarei em algum lugar.

- Não tem destinatário?

- Eu mesma.

Ela levantou, cruzou o pátio, saiu pelo portão e entrou no ônibus.

O carro saiu da estrada e parou. A estrada era deserta, vez ou outra passava um caminhão ou um ônibus para o meio oeste.

- Vamos descansar um pouco e comer alguma coisa filho – Disse o homem que dirigia o carro.

- Pai, eu posso andar um pouco? – Perguntou o filho

- Não vá longe, só enquanto preparo os lanches.

O filho fez sinal com a cabeça e caminhou ao redor, voltou alguns minutos depois com um envelope nas mãos.

- O que é isso filho?

- Não sei, parece uma carta, achei embaixo de uma pedra, perto de uma árvore.

O pai pegou o envelope e abriu.

- Está muito gasto – Disse ao filho.

- O que está escrito pai?

- Apenas algumas palavras que vou ler.

“A lua parece tão longe

Como faço para ir até lá?

Deus, meu Deus, onde está você?”

- Não tem mais nada escrito? Perguntou o menino.

- Não, não tem. Entre no carro e vamos embora. – Disse o pai.

Quando soube dos tiros em Lennon, era prisioneiro, prisioneiro do silêncio e nem sabia como colher azeitona das oliveiras, não sabia o que era ser livre, não sabia da liberdade que existia do outro lado do muro e que podia ver da guarita, onde ficava vigiando o mundo paralelo, mundo verdadeiro, pintado como submundo. Era obrigado a dar dez voltas no campo de futebol embaixo do sol do meio dia, vestindo a fantasia do monstro que destrói vidas, a besta do Apocalypse, mas tinha sonhos que cantava no violão todas as noites que podia, na varanda que ficava escondida, lá nos fundos, de frente pra guarda 2.

Naquela noite, solitária como as outras naquele "recanto", estavam uns dez companheiros, todos muito jovens, reunidos do lado de fora do alojamento, na varanda que ficava escondida, nos fundos, todas as noites que podiam ficavam ali, numa roda de violão, a tocar, cantar e jogar conversa fora.

- Olá meu irmão, pensamos que não fosse vir tocar um violão.

- Eu queria mesmo era estar andando de skate em Paranoid Park, sentido o vazio no meu rosto.

- Nosso paraíso é agora cara, é aqui.

- Aqui é nosso inferno.

- Passei a manhã dando voltas no campo, debaixo de 40 graus, com uniforme de combate. Aquele tenente filho da puta.

- Você parecia o monstro do Apocalypse.

- Nós somos o Apocalypse cara, pode acreditar.

- Senta ai logo, cara.

- Deixa eu dar um pega ai meu irmão.

- Não vá fumar tudo.

- Eles contam que os comunistas entraram num alojamento e mataram muitos.

- Mas não contam que nós, nós porque não temos direito de escolha, também matamos comunistas.

- E Deus onde fica nisso?

- Deus fica sempre em segundo plano.

- Como assim?

- Se você tiver que atirar em um inimigo para matar você vai pensar em Deus? Você pensa em Deus quando recebe seu dinheiro e vai trepar com alguma Maria batalhão? Não, não pensamos em Deus quando nos sentimos felizes, quando ambicionamos alguma coisa de outro, quando pecamos, você acha que os pilotos que jogaram bombas em Hiroshima e Nagasaki pensaram em Deus naquele momento?

- Só lembramos de Deus quando estamos sofrendo, sem esperança, quando precisamos Dele, essa é a verdade.

- É melhor dormirmos depois da hora do silêncio.

- Lembram o que houve semana passada? Quem estava aqui?

- Eu estava, éramos uns dez como hoje e estávamos conversando, quando por volta de duas da madrugada, ele subiu aqui no alojamento.

- Disse que não conseguia dormir com o barulho, mandou todos nós descermos para o pátio, depois mandou todos tirarem a roupa, chovia uma chuva fina e fazia um frio da porra.

- Ficamos todos nus, um do lado do outro, de frente pra ele, por quase uma hora.

- Ele estava embaixo da cobertura, sentado com sua garrafa de café quente e seus biscoitos.

- Em cima da mesa tinha um cassetete que ele levantou dizendo: "Se algum de vocês ficar de pau duro eu vou dar uma porrada bem dada."

- Ficamos ali até ele nos mandar subir e ir para sua ronda.

- Eu não vejo a hora de acabar meu tempo, ir embora daqui meu irmão, não vejo pessoas como inimigos, que eu devo abater como um animal.

- Eu também mano, não nasci para isso, não pertenço a esse mundo, não me identifico com armas meu irmão.

- Isso aqui é uma experiência de vida para nós.

- Desde o momento que você é obrigado, não é experiência de vida e sim cárcere privado, escravidão.

- Mas nós recebemos para estarmos aqui.

- Dinheiro é vida pra você? Compra sua liberdade, sua alma, sua dignidade?

- Que tal uma música? Estou prestando atenção nessa filosofia toda, a vida é foda irmão.

- Vou cantar uma do Belchior, "Velha Roupa Colorida"

Ficaram ali ouvindo a canção, uns dez companheiros, nem todos eram amigos, mas estavam juntos ali. Enquanto a música era cantada, um dos presentes escrevia no caderno que sempre estava com ele nas horas vagas.

- O que escreve ai irmão?

- Estou escrevendo uns poemas.

- Leia ai pra gente, faço o fundo musical aqui.

-Vou ler dois.

- Enquanto você lê os poemas irmão, farei um fundo musical com "Imagine" em homenagem ao Lennon que foi morto ontem a tiros. Nós dois não acreditamos na vida bélica, no militarismo, alguns aqui pensam como nós, outros não, mas sei que nunca esqueceremos os que convivem aqui.

- Vou ler.

"A SOMBRA, A CANTINA E O VULCÃO

Estou em coma

No campo de obstáculos

Tem um planeta chamado marte

Muitas voltas de suor, um disco de rock quebrado

E uma cadeia para execução dos condenados

Quantas noites eu morri?

Há quantas noites estou morto?

Que sou eu?

Quem somos nós?

Lá fora eu tinha alguns minutos no ônibus

Lá fora, pelo menos eu tinha...

Óculos de plásticos, um violão, uma bateria e...

Alguns minutos no ônibus

BOMBAS

Onde estão as casas

Que as bombas levaram?

Onde nasceram as bombas

Que os bombardeiros soltaram?

Os gritos das crianças chamando

Por seus pais com os olhos embaçados

Ainda vagam pelas luas

E os pedidos de ajuda

Ainda ecoam sem serem

Ouvidos"

- Silêncio, tem alguém subindo.

- O que é isso.

- Gás.

- Calma gente, deve ser exercício.

- Máscaras, onde estão as máscaras?

- Isso é real seu animal.

- Todos parados.

- Meu rosto está ardendo.

- Não nos matem.

- Todos para o caminhão em fila indiana.

- Por favor tenente.

- Vamos seus animais.

- Depressa seus merdas.

- Vocês vão conhecer a noite da esboslávia.

- O inferno verde vai cair na cabeça de vocês.

- Escolha um.

- Você ai, comigo, você será o coveiro..

- Andem, todos para o caminhão.

- Não nos matem, senhor.

- Vamos todos morrer.

- Mãe, socorro, mãe, mãe.

Arnoldo Pimentel