Veridiana - Final

Trago. Assopro a fumaça cinérea no vazio. Da banda aberta da janela, uma aragem. Chispa a ponta do cigarro. Escuro.

A senhoria me proibira o fumar no cômodo.

Alumiam o cubículo três por três, intermitentes, rubras fagulhas: principia arder o néon do estabelecimento rente.

A vazante despeja mareados pescadores. Vêm soçobrar noutras orlas. Resgatam-nos magras putas tristes. Denso o ruge nas caras envelhecidas. Meninas.

A noite sempre traz, bem abertos, os olhos de Veridiana. O lusco-fusco lhes dá nuanças. Choram esses olhos, hemorragicamente, com o céu crepuscular.

Trago. A fumaça tem feições. Examinam-me.

No que se seguiu à prima vez, possuí-la tornara-se chrisma necessária. Carecia ungir-se sempre e mais.

Estivesse o velho ausente, adormecido, buscava-me para mitigar a miséria de anos servis.

E era em seu leito onde supremamente gozava. Desvairava-a o odor carvalho da enorme cama avoenga. Nela fora deflorada, por contrato. Dar-se ali desagravava-lhe o coração de lembrança e mágoa.

Aconteceu descobrir-se mulher; descobrir-se magoada.

Inundou-se.

Quis afogar-se em minhas águas, levar-se no sumidouro...

Antes do fim, porém, precede a calmaria aos caprichos do mau tempo.

É certo que o hábito termina lançando de si confiança, mas desleixo.

A ama ia e vinha em sua faina. Quase cega, sua presença não nos acautelava. E pouco falasse, decidíamos-lhe quase muda.

Sem recear alcagüetes, evidentes olhar e sorriso carregavam promessas de delícia, como bem desaparecer à luz das tardes, repentino, para reaparecer com arejamentos de graça e fartura... - Não! A velha não perceberia!

Míope, sim! Presumi-la imbecil fora funesto engano.

E se deu, tardinha, haver surpreendido ligeiro colóquio entre ela e Ciro, nem bem ele chegara da Secretaria.

Adentrava a copa. Atentando referir meu nome, "ingrato" e "traidores", recuei, recôndito pela grande antiga arca.

Não lhes pude precisar a palestra como teria querido. Entrementes, prescindíveis as palavras. Ver duro vinco formar-se na fronte do marido, o sobrolho cerrado, uma ira contida - feroz caldeira - a rubificar seu rosto pregueado e terminar num sestro, ao canto da boca seca, como prova de algum esforço que refreia e calcula: suficiente para resolver acerca do que falavam - ou, pelo menos, eu nisso queria crer.

- Tudo perdido!

Fazer mea-culpa tanto mais reforçava a impressão.

Tomassem rumo da copa, abandonei, célere, meu posto. Corri a ocupar assento à mesa da cozinha, como se lá já estivesse, à espera do jantar.

Ele passou por mim sem volver-se, fleumático, pesado. Saía a fumar no quintal, como usava, antes das refeições.

Escurecia. Uma réstia de lua me deu entrever, sob o Jatobá, seu recorte tosco, enfumaçado. Olhava para cima, cada tragada. Parecia perquirir o céu nevoento; dissipar, a um sopro, a cerração... poder ver.

Veridiana banhava-se. Recendiam pêssegos. E era o que me abria o apetite. Não naquele dia... Ao invés, enjoou-me, tal quando muito doce se come.

Em criança, minhas estripulias resultassem num vaso quebrado, numa qualquer arte, sentia o coração escapar-me. Temia o castigo. Por mais evitá-lo, disfarçando, sumindo mesmo com o corpo de delito, alguém sempre dava conta. Sobrevinha invariavelmente o açoite ou a privação de regalias.

Sabia-me com oito anos. O coração no prato. Não um vaso o que eu despedaçara, porém...

A sensação de ter procedido mal, minava-me. Hoje, sei... quero crer... bem e mal são só conceitos. E pecado, uma invenção necessária.

Muito pouco eu vivera para assimilar e decidir.

Possuir Veridiana não me atestara força.

Afligia-me a incerteza. - A velha sabe? Apenas suspeita? Entregou-nos a bruxa? Serpente!

Absorto, não percebi Ciro passar de volta.

Um baque surdo no soalho me arrancou de conjeturas, tornadas certezas.

Gritos. Gritos medonhos.

Imaginei Veridiana ao rés do chão, sendo fustigada. Ouvia sua súplica, em meio às vergastadas.

- Chega, por favor! Por que faz isso, homem? Por quê?... Não!

Quis acudi-la. Dispunha-me a medir forças com o facínora! A ama me barrou a passagem: - Quer apanhar, também, moleque?

E zunia no ar o som do chicote, incessante. O mesmo silvo que me apavorara, em menino. Depois... depois... a pele se ia queimando...

- Monstro!

Apertei os olhos. Grossas lágrimas verteram. Chorei copiosamente.

Foram talvez uns dez minutos de expiação. Já não distinguia a voz de Veridiana.

Estertor.

De repente, o algoz troveja. A velha atende.

Em instantes, ela retorna com uma trouxa de panos. Arremessa-a sobre a mesa. Minhas roupas.

- Vamos! - limitou-se a ordenar a delatora.

Da janela do trem, a noite era tão negra quanto a substância de que eu era feito, então. Os olhos de Veridiana estavam lá fora. Eram a escuridão.

Por dois meses inteiros, esperei pessoalmente a correspondência. Se a carta que ansiava - e carta houvesse - caísse noutras mãos, decerto lhe dariam termo, sem conhecimento do destinatário.

Faz calor, agora.

Abro a outra banda da janela.

Lá embaixo, dois bêbedos arengam por alguma palha. Um terceiro quer intervir. A dona do estabelecimento xinga-os e mais atiça.

Garrafas e cadeiras alavam-se, ali.

Guardo a carta, um bilhete. Encerra uma circunstância que ignorava. Ainda tem o cheiro...

"Anjo de mim,

"Hoje, perdi nosso filho. Perderam-se as razões.

"Minha vida começou e acabou ao tempo de tua estada. Pensei que continuava, aqui dentro...

"Deste-me luz. Mas cuidaram na treva maior conveniência.

"Não te desalentes. Fui tua e tua só. A ninguém me havia dado.

"Escorrem do meu ventre lágrimas que não tenho mais.

"V."

- Ah! Veridiana!... minha Veridiana!

Como a Providência ainda a quisesse bela, também a conservara fértil!

"Pensei que continuava, aqui dentro..." - A Vida estaria, agora mesmo, andando e saltando pela casa. Contaria onze anos duma vida plena!

No mesmo dia em que recebi a carta, soube do incêndio...

2007, 27 Abr