A inocência do amor

A casa pertencera ao Conde de Vermont ¹, e se não fosse a fama que conservava e a imponência por estar situada na colina mais alta, seria considerada apenas mais uma casa antiga - como as demais na vizinhança, fora projetada segundo a tradicional arquitetura francesa com grandes jardins e ambientes bem iluminados em que se aproveitava o natural frescor proporcionado pela boa ventilação da região. Assim, é que quando decidiu comprar a casa não imaginou que assinava um contrato de futuras noites de insônia. E de certo, por um longo período, pouco se importou com os sons emitidos pela casa durante a noite, já que estes eram sufocados em meio aos gemidos de prazer da sua bela Marcela, da sua bela Joana, da sua bela Maria...

Chegou-se um tempo, porém, que já não havia mais Marcelas, nem Joanas, nem Marias e as noites em claro já não lhe davam tanta satisfação. Procurou, então, freqüentar mais assiduamente os bailes, o teatro e os eventos sociais da alta burguesia francesa. E foi em uma dessas festas, que conheceu a mais bela de todas as mulheres - que vira a se tornar sua esposa mais tarde.

Foi o casamento mais rápido que toda a França já presenciou. Nem bem completaram um mês de namoro e ele lhe pediu a mão em casamento - não só a mão, como os seus lindos pés e cada centímetro do seu belo corpo. E, então, foram morar na “Maison des Vermont”. Mas como tudo que vem rapidamente, se vai da mesma forma, o casamento não durou nem bem dois anos. Ela fugira e lhe roubara o irmão.

De todas as traições - já lembrara Cezar ² - a traição do ser amado é a pior possível. E ser traído duplamente é mortal. É condenar o corpo a vagar sem alma sobre a terra. E eles o transformaram em um zumbi. Um ser sem vida, um mero rabisco do homem de outrora.

¹ - O nome origina-se da expressão “Verts Monts”, que significa em português: Montes Verdes.

² - Imperador Romano que foi traído por Brutus.

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Estava com quarenta outonos em média - desde que morreu para o mundo, esquecera de contar os anos que passava. Ainda conservava certo porte, apesar dos ombros caídos que lhe davam um aspecto de fracasso. A barba cerrada escondia um rosto delicado com leve ar europeu dos burgueses "bon vivant" dos cafés de Marseille. Vestia-se com classe, mesmo não mais possuindo roupas a sua altura - deixara de comprar artigos de luxo.

Nada tinha o mesmo brilho de quando se ouvia ressoar por entre o salão principal a doce voz da querida esposa. E, por isso, perdera a vontade de cuidar de si.

Ela que com sua beleza cegava quem ousasse lhe dirigir o olhar, possuía lisos cabelos cor de mel a cair um pouco abaixo dos ombros, a meia altura das costas. Os olhos castanhos demonstravam toda a sua "pureza" e "bondade". E a boca parecia sob olhar do amante e dos admiradores, pêssegos suculentos que davam vontade de não parar de beijá-la, acariciá-la e despí-la. Assim como saborear o fruto proibido do seu sexo que pulsava intensamente sedento de amor, e a deixava molhada ao toque mais sutil. Aquele fruto que ele fazia questão de sorver até a última gota, de sentir o perfume e de, por fim, ter dentro de si.

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O ranger do piso atravessou a extensa passagem que dava acesso a todos os cômodos da casa, denunciando que já havia vida no andar debaixo. Enquanto, o vento cantava fazendo os cristais da sala de entrada dançarem ao longe. E a batida compassada da fina garoa em sua janela desafiava-lhe o sono. Esse soneto composto por diferentes instrumentos lhe trouxe à mente, a antiga constatação que a casa talvez fosse muita antiga para noites tranqüilas de sono.

Uma vez vencido o sono, abandonou o conforto e o calor de sua cama. E assim, a lua que antes iluminava o corredor por entre a porta semi-aberta, agora, deixava transparecer a figura pálida que levantara em meio a penumbra do quarto.

Essa mesma figura que lembrava ao longe o homem importante e bem sucedido que um dia fora, sentiu um sopro gélido, quase mórbido, a lhe afagar a nuca. Dirigiu-se, então, à janela que se encontrava aberta e contemplou o céu. O dia não tardaria a nascer - já se notava leves sinais de enrubecimento - constatou. Enfim fechou-a e deduziu que deveria ser quatro ou cinco da manhã - ainda não ouvira os sinos tocar.

Pegou a jarra de água que se encontrava sobre a pequena mesa de cedro ao lado da cama - em outros tempos, o local que mais freqüentava era aquele a poucos metros do criado mudo. Passava tardes e noites a bailar por entre as cobertas com sua amada. Eram os dias mais felizes que já tivera e, por isso, nunca pensou que estavam contados.

Finalmente, derramou a água na bacia crivada de brilhantes e lavou a face. Pegou ao lado da bacia uma pequena lâmina e o creme que a serviçal preparara. Passou lentamente em movimentos circulares sobre o rosto cansado aquela espuma branca, e finalmente arrancou a última lembrança que conservava dos tempos da aurora.

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Particularmente essa manhã, sentira certa euforia que não sabia explicar - era como se pudesse adivinhar o que o destino lhe reservara. Ao mirar a face desnuda sob o espelho jateado, percebeu que talvez uma parte de si ainda se mantinha viva. Desceu, então, a escada de mármore que ligava o andar superior a entrada da casa. E dirigiu-se a grande sala em que fazia as refeições diárias, para tomar o desjejum.

Como sempre, aguardava-lhe uma mesa farta em que não faltavam Brioches, Croissants e suculentos queijos franceses - a exemplo do

Brie, do Camembert, do Chèvres e do Roquefort. Assim como diversos sucos - por exemplo os sucos das deliciosas uvas francesas das regiões de Bordeaux, Borgonha e Rhone - que juntamente com o restante davam para alimentar uma família de onze membros.

Mas essa manhã sabia que algo não estava no seu lugar habitual. Chamou, então, os criados para que pudesse aliviar a sua angústia. Foi quando viu pela primeira vez a jovem Isabela.

Filha de uma criada da casa tinha os cabelos cor de ouro; a pele clara como as nuvens e lisa como a pétala de uma rosa; olhos azuis cor do mar caribenho; lábios carnudos e vermelhos cor de sangue; os traços finos e delicados que lembravam uma boneca de porcelana chinesa; a cintura fina de ancas largas e farto busto.

Não acreditou que se tratava de uma jovem de apenas dezoito anos quando a mãe lhe disse. Daria no mínimo vinte e cinco.

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A muito os tambores do coração não tocavam. Pela primeira vez, depois de já ter perdido a esperança em se apaixonar, sentiu as mãos geladas ao cumprimentar Isabela.

Como era possível que Afrodite tenha permitido tamanha beleza a uma pobre mortal, pensava.

Certamente, tudo não passava de um sonho e, por isso, piscou repetidas vezes a fim de confirmar que não era uma miragem.

Isabela, realmente "és bela"; dizia silenciosamente, enquanto, afirmava a si que a teria em seus braços a qualquer custo.

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Tratou de reservar o melhor quarto de hóspede a jovem, com a desculpa de que se afeiçoara a menina tão sempre prestativa.

A mãe que não suspeitava as más intenções do patrão, aceitou de bom grado o gesto bondoso. Isabela, no entanto, percebia que ele a desejava com os olhos sempre que chamava e pedia um pouco de chá. Mas não se importava e de certa maneira tinha orgulho em excitar aquele homem que tinha idade de ser seu pai.

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Com o tempo, passara a freqüentar, a noite, o quarto do patrão que estava lhe ensinando inglês sem que a mãe soubesse - ele diferentemente de outros franceses reconhecia a importância da língua anglo-saxônica. E por não ser um nacionalista de fato, não se importou em aprender e, hoje, falava um inglês fluente que quem não o conhecesse diria que era um nativo inglês e não um francês.

De dia, algumas vezes, sentava no colo do patrão - que voltara a tocar piano. Ele, então, lhe ensinava um novo acorde. Enquanto, se aproveitava da bela jovem que deixava ele passar a mão pela parte baixa de sua cintura e subir as costas, percorrendo-lhe o corpo.

E, assim, em poucos meses ela já falava inglês, tocava piano e começara a ler os grandes clássicos da literatura francesa.

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Por ser uma boa garota e por nunca ter dito nada a mãe, ele que voltara a freqüentar o teatro a levava sempre para assistir a uma nova peça. Voltara, também, a ir a bons restaurantes em que mostrava a ela a culinária do mundo inteiro. E, também, comprava-lhe vestidos e perfumes franceses.

De fato, em pouco tempo, ele a conquistara com os artigos de luxo que lhe dava de presente e a cultura que possuía - e que agora, também, proporcionava a ela. Assim, não foi difícil convencê-la a dormir em seu quarto até que o dia clareasse.

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Na primeira e única vez em que foi dormir no quarto do patrão, depois que ele a convidara, Isabela quis retribuir-lhe todo o carinho que ele demonstrara por ela. Então, despiu-se por inteira e o aguardou.

Ele que ainda não havia chegado ao quarto, quando viu Isabela como veio ao mundo, ficou deslumbrado com a beleza da jovem. E não conseguiu parar de admirá-la, passando a noite olhando para ela, que tinha adormecido antes dele chegar.

Pela manhã, pediu permissão a mãe da jovem para que pagasse os estudos da menina na Suíça. E, assim, tratou de enviar Isabela o mais rápido possível, para que não caísse em tentação.

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Sete anos se passaram até que um dia Isabela recebeu uma carta de sua mãe pedindo que retornasse rapidamente a França. O patrão estava doente e possivelmente não resistiria por muito tempo.

Isabela há essa altura da vida, já estava por concluir os seus estudos. E se casara com um jovem rapaz inglês de família rica. Mas ainda conservava o carinho e admiração que tinha por aquele homem que fizera tudo por ela e agora estava morrendo. Então, não pensou duas vezes, abandonou tudo que estava fazendo e pegou o último trem para a França.

A demora da carta e a viagem não deram muito tempo para que ela pudesse compartilhar mais do que poucas horas ao lado do patrão. E, assim, é que percebendo que a chama da vida dele já se apagava, ela deu um pequeno beijo em sua boca. Um beijo delicado, que uma filha dá em seu pai antes dele morrer. Um beijo coberto de lágrimas e de impotência diante do inevitável.

Ele, então, por poucos segundos abriu os olhos e conseguiu ver o anjo que lhe salvara das trevas quando mais precisou; a razão de ele ter vivido todos esses anos desde que a conhecera.

Sempre quisera dar tudo do bom e do melhor para Isabela. Tratou-lhe com verdadeiro amor e se um dia não ousara tocar nela, não se arrependia.

Percebeu, enfim, que a vida havia valido a pena. Tinha realmente amado alguém e agora sabia que ela o havia amado. Assim, pôde morrer em paz na certeza de que não seria esquecido. E que sua história seria lembrada através das gerações.

Bruno Pondé
Enviado por Bruno Pondé em 29/04/2007
Reeditado em 14/09/2007
Código do texto: T468668