Prorrogação (série "Contos Agoniantes")

O pique pela areia fofa era adversário mais duro que qualquer um dos oponentes. O zagueiro veio correndo em direção contrária, com muito mais disposição. Eu sabia que não conseguiria alcançar a bola; ele ia chegar primeiro.

De repente, o chutão do beque atirou a bola pela lateral. Corri para buscá-la. Alguém que assistia ao jogo preparou-se para devolvê-la. Antes de passar a bola, ele me olhou, surpreso.

“O que você tá fazendo aqui?”

Foi aí que me dei conta. Não havia sol, o dia estava nublado. Ou seria um denso nevoeiro que se estendia sobre o campo, escondendo o mar?

Até ali, eu corria e driblava, a bola grudada no pé direito, com a mesma lealdade de sempre, uma velha e fiel amiga. A desenvoltura não era mais como antigamente; faltava o fôlego, que a idade implacavelmente tinha me tirado e eu nem percebia. A classe, porém, era a mesma, um misto de elegância e força, a fazer de mim uma espécie de bailarino; nem parecia que eu não jogava uma partida há tantos anos. Ainda dava para me destacar entre uma garotada que, mais novos e musculosos, se corriam mais, não conheciam a metade do meu repertório de fintas.

Eu estava na praia, depois de tantos anos de ausência. Jogando bola novamente, como há muito tempo não fazia.

Ele me olhou dentro dos olhos.

“Que foi que houve? Cadê tua mulher?”

Aos poucos, o passado foi se compondo e contando a mim mesmo minha própria história, cujos detalhes naquele momento, a névoa densa parecia ter-me feito esquecer.

Bati o lateral. A bola girou no ar, cruzando o campo, em direção à baliza do time adversário.

Eu tinha tido uma mulher e, pelo espanto do outro, por causa dela, estava longe da praia e de todos os significados que aquele lugar carregava - o ócio, o vício, o descompromisso, o grande dane-se nosso de cada dia. E se eu estava ali, na praia, jogando bola, reconciliado com tudo aquilo, então onde estava minha mulher?

“Ela sabe que você está aqui?”, ele perguntou.

Não soube responder.

“Deve imaginar”, pensei.

“Vocês terminaram?”

Desviei os olhos, acompanhando a trajetória da bola.

“Que foi que aconteceu?”

Com os punhos fechados, o goleiro rebateu a bola em direção ao meio do campo.

Tentei lembrar. Mas como um sonho, ao se acordar, a lembrança fugiu de mim, deixando apenas um rastro.

Apesar das nossas individualidades, parecíamos uma só pessoa. Como eu sempre pensava nela antes de pensar em mim, sem nem me dar conta disso. Ela era a resposta do meu ser, incluindo mesmo aquilo o que eu havia vivido antes de conhecê-la. O passado remoto, onde tinha havido uma praia, era uma lembrança distante, tão longínqua como se pertencesse a alguma outra existência, ou a uma passagem de algum livro lido muitos anos atrás e quase inconscientemente incorporado à realidade.

A bola veio descendo. Os jogadores todos, cada um mais vigoroso que o outro, correram na esperança de alcançá-la.

Não consegui lembrar o momento exato da ruptura, o preciso instante em que deixamos de ser um só. Eu sentia apenas a sua enorme ausência a me dissolver.

“Eu a perdi”, eu disse para mim mesmo.

“Perdeu? Como assim?”

Como se um breve facho de luz vazasse o espesso nevoeiro, por um segundo, eu entendi. Eu também achava que só a morte poderia nos separar.

Então, como se tivesse escolhido o único ali que a tratasse com carinho, a bola ofereceu-se a mim na rebatida.

A imagem de um rosto formou-se diante dos meus olhos. Lágrimas lhe escorriam dos olhos; seu pranto era tão desesperado quanto o meu foi naquele instante.

Os outros rapazes correram, saltaram, esticaram as pernas, distendendo músculos poderosos. Tudo em vão.

Súbito, um estampido seco fez o raio de luz se apagar.

Inclinei o corpo e desferi o chute.

Ao mesmo tempo, fui sentindo o imenso vazio se alastrar para fora de mim.

O goleiro voou no canto, ágil, a mão estendida, mas não adiantou.

Aos poucos a escuridão da noite foi me envolvendo totalmente.

Ergui os braços. A bola estufou a rede. E tudo em volta se apagou.