TAUROMAQUIA

TERCIO DE VARAS

Medo. Raiva selvagem. O touro se debateu dentro da escura câmara de madeira, enquanto uma algazarra clamorosa urdia ao redor, em um crescente, e anunciava que algo grandioso estava prestes a acontecer. O bicho atirava-se com ferocidade contra as tábuas, mas sem efeito algum. Incapaz de raciocinar, mal sabia o que aguardava além daquela claustrofóbica escuridão. O estalo das portas ao abrirem-se com violência fez com que o animal de meia tonelada de massa embrutecida disparasse na direção do picadeiro, onde foi recebido ao som de fanfarras e trombetas. Parecia ele o grande homenageado, mas, desconfiado que era: desconfiou.

Dotados de extrema destreza ao cavalgar e montados sobre cavalos que trajam armaduras, os picadores atacaram o touro com suas varas pontiagudas, espetaram-nas na sensível região em que o pescoço se une aos ombros. Do outro lado da arena, o bicho, ainda mais endiabrado, reconheceu o rosto do toureiro matador para o qual estava sendo preparado. Era Tomás Relvas.

Arrastou as patas e levantou o pó do chão. Pensou na fazenda em que nascera, que o preparara para aquele dia, após submetê-lo a exaustivos e dolorosos testes de bravura e ferocidade. Tomás Relvas estava ali, atento, a observá-lo como faria o psicopata ao estudar a vítima que apenas mataria alguns anos após o primeiro íntimo e pérfido contato visual. É normal que os toureiros venham de regiões próximas aos ranchos que criam os animais para as touradas. Eles crescem vendo os touros, aprendem desde cedo sobre seu comportamento para que, assim, obtenham sucesso quando enfrentarem o animal na arena.

Enfraquecidos os músculos do pescoço devido às estocadas que os picadeiros fizeram com suas lanças, a cabeça do touro inclinou-se para baixo e ele liberou um hurro de estranhamento e dor. O matador observou cada movimento do animal com uma curiosidade de aprendiz da morte do outro, assimilava o máximo possível sobre o comportamento e o estilo do bruto que lutava pela própria vida como faria qualquer um de nós, caso fôssemos submetidos à semelhante espetáculo.

Com seu capote de paseo bordado a ouro e fios de seda, leve e luxuoso, adornado com uma primorosa imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, o matador prestou cortesias ao público e, em seguida, sacou de seu capote de brega e, após o touro ser atingido por três vezes pelos picadores, o toureiro se aproximou da fera a fim de afastar o descontrolado animal de seus lacaios, manobrou com habilidade invejável o capote no ar. Distraído o animal, os picadores e o matador se ausentaram da arena. O touro, ao perceber que estava sozinho, hesitou por um instante, arfou, sem forças para erguer sua pesada cabeça. O público aplaudiu, satisfeito.

TERCIO DE BANDERILLAS

Os bandarilheiros, a pé, ganharam o picadeiro e arrancaram saudações calorosas das arquibancadas. Com agilidade e coragem sinônimas de covardia, cravaram três pares de dardos coloridos, com pontas farpadas, na mesma região do pescoço que os picadores haviam atingido o touro no primeiro terço do entretenimento de gosto duvidoso, o que enfraqueceu ainda mais o pescoço da fera. Sua cabeça ficou mais baixa e sujeita ao golpe que lhe arrancaria a selvagem vida de seu corpo enfraquecido e que, instantes antes, parecia impossível de se destruir.

Que espécie de sorte haveria tido o pobre animal, caso não servisse para a diversão sangrenta daquela tarde? Certamente, acabaria destinado às festas de rua, nas quais poderia ser reutilizado por alguns anos como objeto de perseguição e sadismo glorioso. Pisotear três ou quatro de seus acossadores talvez tornasse sua experiência menos mortificante, poderia morrer vingado caso suas características fisiológicas não o houvessem levado à arena na qual ele lutaria até a morte em uma batalha desleal e atroz.

TERCIO DE MUERTE

O matador retornou à arena sob os júbilos e honras daqueles que ali se encontravam a fim de testemunhar o premeditado crime. O homem estava elegantemente vestido em seu traje de luces, elaborado em seda e adornado com fios de ouro. Sobre a viril cabeça, trazia ele a montera, um tipo de chapéu confeccionado a partir de fibras semelhantes a cabelos, enroladas em uma espécie de cordel. Seus longos cabelos se encontravam juntos à base do crânio, presos por uma rede chamada coleta. Vestia na parte superior do corpo a camisa branca adornada de folhos na zona peitoral. Junto ao pescoço se encontrava atado o cobartín de cor preta, à laia de gravata. Por cima de sua camisa, o matador utilizava uma espécie de colete de nome chaleco e uma jaqueta curta bordada a ouro e seda. Sobre os ombros, encontravam-se as ombreras, das quais pendiam borlas como adornos, os machos. Na parte inferior do corpo utilizava o homem a taleguilla, um calção justo e que chega até abaixo do joelho, atado na parte inferior com machos que servem de enfeites. Debaixo do calção, o toureiro vestia meias de seda cor-de-rosa e, sobre estas, umas meias de algodão branco que facilitavam os movimentos da taleguilla sobre o corpo. Por último, suas sapatilhas, de cor preta e sem tacão, adornadas com um vistoso laço na parte superior.

Com uma de suas mãos, o toureiro empunhou o capote escarlate e realizou a faena como quem dança com o próprio diabo – tamanha a confusão que se faz a respeito do que seja realmente diabólico, quando se trata de uma arena de touros. Tomás Relvas driblava o animal bem de perto, perigosamente. Uma chifrada em suas virilhas, axilas, pescoço ou tórax seria suficiente para que sua vida terminasse antes do último resfolegar do touro que morreria por suas destras mãos. Aquele era o destino de ambos. A glória na arena é uma farsa, uma mentira, nela só resiste covardia e luto.

Olé! Olé! Gritava a plateia, encantada pela suspeita agilidade do toureiro, ao fazer ziguezaguear no picadeiro um animal tremendamente combalido. O público já parecia cansado daquela coreografia brutal, mas não desejava que ela cessasse, ansiava por mais violência e dor. Aos olhos do touro, seu próprio sangue e o vermelho do capote do matador adquiriam as mesmas nuanças de cinza, leitosas, espessas. Sua força havia sido mitigada pela constante hemorragia, a morte se aproximava como um grito eufórico: Olé! Olé!

Após receber uma espada de aço de quase um metro de cumprimento, o toureiro liquidou a fatura após vinte minutos de sua apresentação. Tendo o capote rente ao chão, como um adestrador, o homem fez com que o touro se colocasse de cabeça baixa e patas dianteiras unidas, posição perfeita para o golpe fatal. A inevitável estocada atingiu em cheio a aorta do animal, que caiu aniquilado sob os pés do vencedor que, valendo-se de seu direito, cortou as duas orelhas e o rabo da fera, erguendo-as acima da cabeça, agitando-as, como um guerreiro abanaria o escalpo do inimigo. Tomás Relvas saiu daquela arena carregado nos braços da galera, aclamado, como o matador dos matadores, um herói nacional. Olé! Olé!

Quanto ao touro, após o medonho espetáculo, sua carcaça foi arrastada para fora da arena e sua carne vendida aos açougues locais. Em pouco tempo, as pessoas compraram as partes mutiladas do imolado bovino: acém, paleta, fraldinha, filé mignon, bisteca, contra filé, ponta de agulha, maminha, coxão mole, lagarto, patinho, costela, alcatra, picanha, coxão duro e cupim. Passeavam pelas ruelas, orgulhosos, como se carregassem valiosos souvenires.

Comeram, no conforto e segurança de suas casas, ainda excitados, da carne que parecia mais sangrenta que o habitual. Na televisão, noticiavam o assassinato de Tomás Relvas, morto após a inesquecível tourada por um desafeto que o apunhalara covardemente. Perderam o apetite e atiraram os restos mortais do touro em suas pequenas lixeiras junto a pia da cozinha.

Deveriam ter enterrado as sobras dos pratos em seus jardins.

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 28/02/2014
Reeditado em 28/02/2014
Código do texto: T4709704
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