Quem é Dorival Leitão?

Acordei um tanto desconfiado esta manhã. Sempre acordo cedo, por volta das seis, pra escrever minha coluna diária do “Manchetes Diárias dos Tiros no Rio”, mas desta vez foi ainda de forma peculiar. Do meu humilde apartamento na Lapa, desses minúsculos que você pode imaginar... Sala emendada com cozinha, um banheiro tão pequeno que é preciso sentar na privada pra fazer a barba, ou então tomar banho em perna de saci. Imagine todas essas acrobacias do alto dos meus 70 e tantos anos. Não revelo exatamente pra fazer mistério (quero ver o que vão inventar quando forem colocar meu nome na seção do obituário, apesar de que a minha coluna no velho jornal já fica mesmo ao lado desta). Mas isso não vai acontecer tão cedo, senhores. “Dorival Leitão”, acho difícil alguém sair imune depois de ouvir esse nome ou lê-lo em letras garrafais na assinatura de uma das minhas matérias.

Sei que tenho essa nobre qualidade de me delongar nos detalhes da minha intensa vida pessoal. Eu acordei hoje sob o som de uma agitação na vizinhança. Não que sons estranhos sejam novidade em um bairro como a Lapa. Mas eu estou sempre me mudando. Pareço um cigano que não pode ficar muito tempo em um determinado lugar, até mesmo porque quando resolvo me estabelecer em um ponto sempre vem alguém me trazendo bilhetinhos ou me mandando mensagens pelo celular (não tenho paciência pra essas coisas que não são da minha geração) pedindo para que eu faça a gentileza de me por para a rua. Parece até uma daquelas siglas “P.R.” que colocaram aqui nas casas do Rio quando a corte do Seu João com sua mãe louca tiveram que vir fugindo e derretendo (pra não dizer uma palavra mais rude) de medo das tropas daquele Napoleão. Acho que havia me esquecido de contar a vocês que quando eu finalmente somei minhas economias guardadas em colchões velhos, consegui comprar um humilde apartamento de um quarto no Leblon. Mas aí veio um telefonema do Manoel Carlos, aquele famoso autor de novelas melosas sobre o povo sem sal (sem contar a da praia) da zona sul, pedindo que eu fizesse o favor de não atrapalhar a imagem do cenário de seus enredos verborrágicos.

Mas vamos voltar àquela história que meus fiéis leitores anseiam sempre que folheiam o jornal ávidos por alguma observação cotidiana depois daquelas muitas páginas onde cadáveres são encobertos tão bem como que com aqueles tapa-sexos que as mulheres do carnaval andam usando pra não dizer que estão nuas. Por falar nessas mulheres, que sempre foram objeto de elogio em meu trabalho como colunista deste jornal mais apreciado que aquele programa do meu imitador Datena, preciso fazer uma crítica. Não ando gostando do que vejo hoje! Onde estão as cinturinhas de vespa, aquelas coxas de miss tipo Martha Rocha e as mulatas do meu velho camarada Sargenteli? Não suporto mais tanto músculo! Já está virando um açougue. Será que elas entram numa clínica de estética ou academia (não entendo desses assuntos de estética porque nunca foram do meu feitio) e saem pedindo a quantidade que desejam colocar no corpo? Imagina: “Hoje eu quero um quilo de coxa” ou “Desta vez vai meio de maminha”. Jesus, Maria, José! Diria a minha velha e falecida mãe. Dona Getrudes, que Deus a tenha em algum pedaço de terra que eu desconheço.

É que saí muito jovem de Resende, um moço de 16 anos que gostava de tagarelar e vivia a perguntar e anotar tudo que podia. Aí vim parar aqui no Rio, cidade grande, e o bolso do mais vazio, com apenas algumas economias deixadas pelo meu pai, Seu Francisco Leitão. Este aí era um pescador dos bons nas águas do Paraíba do Sul. Passava horas contando histórias pra iludir o coitado do menino de mente fantasiosa que outrora fui. Um dia contou pra cidade inteira e ficou tentando convencer o padre da Matriz dizendo que tinha achado uma imagem milagrosa de Nossa Senhora Aparecida. Só que em vez do rio ficar cheio de peixes como naquela história religiosa que um monte de gente conhece por causa do feriado de 12 de outubro, ele falou que começou a aparecer um monte de garrafas de cachaça da boa boiando. O padre, nem preciso comentar, não acreditou em patavina, ainda mais por causa daquele hálito de dragão que acompanhou o senhor meu pai até a igreja. Mas preciso esclarecer que cachaça nunca foi de faltar na nossa residência. Como é que vou me esquecer da primeira vez que entornei uma inteira? Foi inolvidável. Eu tinha 12 anos e fiquei o dia inteiro girando. Parecia que eu sentia os movimentos de translação e rotação da terra acontecendo a cada minuto com o meu corpo. Estava tão sem rumo que andei que nem um cavalo sem dono até o topo da Serra da Mantiqueira. Quando voltei, o meu velho também já havia saído pra dar uma volta. Não sei aonde a vida o levou, mas só voltei a vê-lo quando eu já era um senhor jornalista cobrindo o quebra-pau durante as Diretas Já, aquela década mais animada de todas. Mas aí ele já não era o pescador contador de causos e sim um bêbado delirante falando sobre a salvação do mundo, dizendo que tínhamos que queimar tudo e andar sem roupas e posses. Parecia até a música daquele cantor de uma banda de rock que foi morto por um fã na época.

Por falar em fã, foi só eu chegar jovenzinho e muito puro no Rio que comecei a ter contatos com umas moças que andavam por aí oferecendo seu amor aos necessitados. Era só eu falar que eu estava trabalhando como jornalista que elas achavam que ia levá-las pra estrelar uma daquelas comédias cheias de música da Atlântida. Mas eram mesmo umas gracinhas, formosas. Só que não duravam muito com você. Era só elas verem que o meu ofício na deixava ninguém rico, que acabava a doce ilusão. Mas uma delas me marcou muito, a Anabela. Era bonita até no nome. Tinha uns cabelos loiros (não eram naturais, mas isso não só descobri depois que ela esqueceu a peruca no meu quarto), aqueles lábios pintados de vermelho e uma pinta falsa pra imitar a estrela Marilyn. A gente saía pra passear no conversível que um colega mais bem remunerado me emprestava e, às vezes, passava da conta na cachaça que eu ensinei ela a beber. Aí um dia a Anabela me veio com a notícia de que tinha emprenhado de mim. Imagina só! Eu era um rapaz de uns 20 anos, que imitava o cabelo raspado de um militar pra impor mais respeito, dividia um casebre no Jardim Botânico com uns amigos atores na mesma pindaíba e ainda teria um gurizinho pra sustentar? Mas não tive tempo de me encantar com a ideia, já que minha amada conheceu um senhor lá do Oriente Médio e resolver seguir os passos de outra estrela do cinema, Rita Hayworth, a Gilda das luvas. O xeique se encantou com aquela que eu pensara ser minha menina, mas não sei o que fez ao se desmontar de todo aquele aparato de moda. Com um singelo bilhete, Anabela disse que precisava partir e oferecer um mundo mais digno à criança. Não sei até hoje o que isso significava, que tal mundo devia ser esse, repleto de petróleo, areia do deserto, camelos, mulheres que têm que esconder o rosto. Fico até imaginando como minha bela Anabela se adaptou a uma terra daquelas, que devia fazer o Rio de Janeiro parecer a Groenlândia e o colégio de freiras parecer uma casa de mulheres generosas. Mas me dei conta de que Anabela era como as demais e desde então resolvi seguir os ensinamentos de papai e só me envolver com as que não ofereciam riscos ao sentimento e ao ego masculino.

Posso dizer que nesse tempo fazendo minhas coberturas policiais, sempre tive dificuldade de dizer que lidar com o tipo de mulher forte e não estou falando só de “mulher-macho”, tipo Luzia Homem, ou uma dessas mulheres de açougue que eu havia falando antes. Elas queriam votar e conseguiram. Não satisfeita, ainda entraram pra política. Imagina que hoje tem mulher comandando peão de obra, empresas aérea (e confesso que ainda morro de medo só de cruzar com uma no trânsito) e até presidente da república. E não fosse suficiente, ainda tem mulher casando com mulher... Tem umas que ficam grávidas juntas. Acho que elas levaram aquela queima de sutiãs a sério demais. Teve uma vizinha dia desses, moça bonita, delicada, não olhava pra mim, mas eu não deixava de prestar atenção. Aí um dia ela estava com outra mulher num elevador, bonita também, só que eu tinha um jeitão diferenciado. Começou uma conversa e elas estavam acertando o dia pra fazer aquela tal inseminação, pra colocar uma semente de bebezinho na barriga. E ficaram quietas por um tempo, trocando olhares, até que começaram a juntar seus lábios, um vermelho carregado e outro mais pálidos que de criança anêmica. Não vou negar que deu uma alegradinha na minha mente anciã, mas depois eu parei pra pensar: será que elas fizeram aquilo pra me agradar ou realmente elas conseguiam gostar assim?

Fico imaginando se meu velho Chico andasse nesse mundo maluco de hoje. Acha que era por isso que ele dava o valor certo pra cachaça naqueles tempos. Sabia que era preciso abstrair pra não endoidar, mas um hedonista como ele não costumava perder tempo com preocupações.

Mas por que mesmo resolvi fazer este texto? Ah sim, uma “popozuda”, expressão estranha pra escrever, mas que dá prazer de ver. A vizinha nova, moça bonita, natural, a Gessilaine (não lembro se é com “G” mesmo ou “J”), conseguiu emprego por essas bandas, desceu do morro esta semana e veio morar aqui no apartamento de baixo. Acredita que o dela é até maior que o meu? E ela ligou uma música que os meus ouvidos veteranos não estão acostumados a ouvir. Esse tal de funk. Acordei ressabiado e fiquei acompanhando, enquanto preparava meu café. Mas não é que a batida é boa. Até Caetano já elogiou. Mas a letra é minimalista demais. Parece o futuro. Será? Mas chega de mim agora. O trabalho segue árduo na redação. Aqui é o Rio de Janeiro.

Renan Maia
Enviado por Renan Maia em 05/03/2014
Código do texto: T4716019
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