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Jesica Rabbit
(ruiva - tanto faz)
 


 
LURDINHA
 
     Lurdinha era o que se poderia dizer, uma perfeição de mulher... Ou quase. Corpo escultural, tudo no lugar, cabelos louros e compridos, olhos azuis, um par de seios que desconhecia a lei da gravidade e, contrabalanceando, uma derrière generosa, delicadamente esculpida sobre o prolongamento de um bem torneado par de coxas; uma deusa do pecado... Mas como nem tudo é perfeito, com Lurdinha não seria exceção: ela nascera com fissura palatina. Fizera operação quando criança, mas o problema não fora totalmente resolvido, deixando-a longe de ter uma voz sensual; era fanha. Quando nervosa então, apenas as pessoas mais próximas e, que estavam acostumadas, conseguiam entender o que dizia.
     Mas esse pequeno problema não foi empecilho para que Lurdinha tivesse uma vida social ativa. Nunca tivera vergonha e parecia aceitar bem as brincadeiras que ouvia. A natureza lhe pregara uma peça, mas a recompensara em outros atributos... E como! Desde cedo aprendera a arte de amar. Nem bem se descobrira mulher e já encantava os rapazes.
     Aos vinte anos resolvera tirar proveito de seus atributos. Aliara-se a duas outras colegas de infância e alugaram um pequeno apartamento onde passaram a prestar assistência a senhores carentes de afeição. No bom português: Tornou-se garota de programa. Tudo de forma bem discreta, afinal Lurdinha apenas “trabalhava” no local, mas ainda morava com seus pais, que de nada sabiam da vida da filha. Para eles, ela saia à noite pra se distrair, após um dia exaustivo como vendedora em uma relojoaria. Vez ou outra viajava pra capital ou pro nordeste, passando temporadas inteiras. Uma vez foi a Nova York, ficou deslumbrada com a agitação. Culpou a escola em que aprendera a língua inglesa por não se fazer entender direito. “Ôh ovo uhrro. Uintende ñada o heu halo sô!” Naquela ocasião ela viajara na companhia de um empresário e de sua esposa que tinha certa inclinação pela fruta. Ora com ela, ora com ele, depois tudo misturado... Como profissional, dançava conforme a música sem questionar. Foi nessa ocasião que alguns hóspedes das suítes vizinhas se viram preocupados, e indignados, com os maus tratos a animais, exigiam uma providência e o gerente do hotel se viu obrigado a entrar no quarto pra ver o que estava acontecendo. O difícil foi o empresário explicar, em inglês, o (único) problema de Lurdinha: Quando ela gemia parecia uma foca assustada. O sujeito que não sabia e era pego desprevenido chegava a perder a moral com a expressiva demonstração de prazer daquele monumento. Problema que não era compartilhado por todos, sendo que alguns a procuravam justamente por isso, um som exótico, diferente do “bbééééé”. Sentiam-se realizados. “Ada um om hua tãra!!”
     A fama de Lurdinha correu longe. Como morava em uma cidade turística, muitos aproveitavam e davam uma esticadela em companhia daquela deusa. Sabia ser discreta; tanto que seus pais nunca desconfiaram. Nem mesmo quando o Presidente da Câmara Municipal, de tão encantado com os serviços prestados e, fascinado por aquele corpo perfeito, resolvera homenageá-la, em sessão solene, como patrimônio do município, incluindo no projeto o custeio de todas suas despesas, completando com o oferecimento do cargo vitalício de Secretária Honorária para Assuntos Especiais e Estratégicos. Para tanto, numa prévia da sessão, quando o proponente entrou com o pedido de homenagem e, sabendo que metade dos adidos ali presentes não entenderiam sua proposta e qual exatamente seria a função desempenhada pela deusa, ou melhor, a função daquele cargo, o presidente da sessão fizera questão em que Lurdinha estivesse presente. A futura homenageada comparecera trajando um vestido simples, verde-negro, suspenso por uma fina alça, tão fina que dava a impressão de que não resistiria à pressão daquele par de seios, o qual se fazia notar por um generoso decote, o comprimento um pouco acima dos joelhos, um colar e um par de brincos de esmeraldas contrastando com seus olhos azuis, um sapato de salto alto fazendo com que sua bunda ficasse mais empinada. Melhor argumento não houve. Só não contavam que a esposa do Presidente da Câmara, acompanhada de outras três esposas de vereadores aparecessem justamente na hora em que todos torciam pelo rompimento da frágil alça e aclamavam estarem de acordo com a merecida homenagem. No meio de tantos “não-sei-de-nada”, “bando de sem vergonhas”, “Uh hê i hoi, hente!?”, guarda-chuvas descendo daqui e dali, um ou outro tentando proteger a loura, todos foram saindo enquanto a imprensa, convocada pela zelosa esposa, chegava pra registrar o evento. Após alguns hematomas e telefonemas pra diretores de jornais e televisão, e revolta de todos os jornalistas, conseguiram distorcer o evento alegando haver uma infestação de roedores.
     - “E ómu fi-ha o eu argo”?
     - Fica pra depois, meu anjo, fica pra depois... Vamos deixar a poeira abaixar.
     Mas a maioria dos jornalistas era séria e deu um jeito de vazar a notícia, sem dar nome aos bois. Lógico que pela descrição, aqueles que conheciam Lurdinha sabiam exatamente de quem se tratava; tanto que ela recebera por email e celular, centenas de mensagens de solidariedade e promessas de afagar-lhe o ego.
     Mesmo não havendo a solenidade oficial, Lurdinha passou a ser considerada um patrimônio municipal, tendo acesso à maioria dos eventos oficiais. Vez ou outra era agente estratégica em negociações complicadas, com missão de amolecer(?) a parte adversária. Missão que ela desempenhava com maestria. Cem por cento de sucesso em suas missões.
     Cada um tinha uma façanha diferente pra contar, histórias presenciadas por eles ou que ouviram de outras pessoas, exageradas ou não. Os casos eram tantos e de tanto serem repassados de boca em boca e, como diz o ditado “quem conta um conto aumenta um ponto”, não se sabia serem histórias verídicas ou não. Como já dito aqui, sua fama corria longe. Suas histórias são muitas e algumas inusitadas, como a que me foi contada por Miro, um carioca quase setentão, e que era um dos que costumavam usar a desculpa de aproveitar as águas termais da região. A última vez em que esteve na cidade, trouxe a tiracolo um sobrinho, já na casa dos vinte anos, que se chamava Stênio, mas todos o conheciam por Foen. Esse sobrinho também era fanho e tinha dificuldade em arranjar alguém pra namorar ou mesmo resolver um pequeno probleminha de status: ainda era virgem. Miro logo teve a idéia: “Fanho com fanho se entendem. É pra já que resolvo o problema”. Como de costume havia reservado um chalé no Recanto Cisne Branco. Tão logo chegou foi logo tratando de armar um encontro entre os dois. De memória discou um número. Não era louco de guardar aquele número no celular, ainda mais com a mulher ciumenta que tinha. Após três toques:
     - “Aô”?
     - Alô, Lurdinha? É Miro... Eu também, meu anjo, morrendo de saudades suas... sim, sim... claro, mas, olha só, lembra que te falei daquele sobrinho meu que queria que te conhecesse?... Sim, esse mesmo... é... Como assim, iria adorar? ... Mas a gente precisa voltar amanhã cedo pro Rio. Tem que ser hoje... Deixa essa aula de equitação pra depois... tá bem, tá bem, venha assim mesmo, pode até servir como um fetichezinho, mas vê lá hein?... Certo, às oito então.
Miro desliga o celular e entra no chalé. Foen está arrumando cuidadosamente suas roupas no armário. Miro se irrita.
     - Mas para com isso, Foen. A gente vai embora amanhã cedo.      Vamos dar uma volta, beber alguma coisa.
     - “Oe afbe eu um osto ada esaumado”.
     - Vamos dar uma volta, beber alguma coisa. Lurdinha vai aparecer aqui lá pelas oito horas. Mas vai ficar pouco tempo.
     - “Omo aim”?
     - Ela trabalha de dia e só tem tempo livre à noite. E hoje ela tem aula de equitação. Antes da aula ela vai dar uma passadinha lá no chalé.
     - “Ensei que osse iar ais tempo”.
     - Relaxa. Vai dar tempo.
     Foen termina de arrumar seus pertences, e pouco antes das oito, os dois estão sentados a uma mesa rente à calçada, numa área aberta de um barzinho, que fica em frente à entrada do hotel. De onde estavam podiam ver, ao fundo, os chalés, compondo o lindo cenário montanhoso. Mais perto deles, transitando pela calçada, lindas paisagens ambulantes de lindas turistas; outras nem tanto. Foen estava animado, reforçado com o Jack Daniel’s sobre a mesa, pela metade. Miro preferia puro, mas pedia de tempos em tempos que o garçom servisse pedras de gelo de água de coco, ao ansioso galã, que vez ou outra, e outra também, olhava pro relógio.
     - Calma... Relaxa... – Aconselha Miro – Ansiedade só prejudica nessas horas.
     Sabia que o conselho era inútil mas tentava tranqüilizar o candidato a garanhão.
     - Até que você pegue um pouco de experiência, deixe que ela te conduza. Ela saberá cuidar muito bem de você – continuava aconselhando... – confie nela.
     Já passava das oito quando Lurdinha desce dum taxi, em frente à entrada do Hotel. Miro havia combinado de se encontrarem ali. Calça e jaqueta de couro, bem justas ao corpo, botas de cano alto, e um chicotinho para equitação com um pedaço de couro numa extremidade, e na outra um cabo de borracha. Ela balança a cabeça e arruma o cabelo louro. Miro logo acena pro garçom enquanto joga o dinheiro sobre a mesa, ele nunca usava cartão. Ele passa a mão no que sobrara do whisky e saem às pressas, indo ao encontro dela.
     - Minha querida... Finalmente o encanto pra alegrar meu dia!
     Após cumprimentá-la, Miro puxa Foen que se escondia atrás dele para apresentá-lo. Pode perceber que apesar do reforço do destilado o rapaz estava um pouco trêmulo.
     - “Oe”! – diz Foen estendendo a mão em direção dela.
     - “Oe...”
     Ela não estende a mão e sim o puxa pra abraçá-lo, beijando-o no rosto e trazendo de encontro ao seu peito. E ele meio sem jeito:
     - “Õce é uito uinda”!
     - “Oce ãmbém éh um ahto. Ua hracinha”.
     Miro pensa que o melhor é deixá-los a sós o quanto antes. Diz, estendendo a mão com a garrafa de whisky:
     - Desculpem-me mas não tenho nada melhor pro momento.
     - “Oce abe He eu um ósto êh-er ada esti-ado”.
     -Relaxa. É só pra quebrar o gelo.
     Ela pega a garrafa, “Omo zeu hrecisasse”, passa a mão pela cintura de Foen e se dirigem pro chalé.
     Há um detalhe que eu não disse sobre Lurdinha: Era “fraca” pra bebida alcoólica. Poucos goles a deixavam fora do eixo, ou como ela mesmo dizia, “hôltiña, hôltiña”.
     Antes mesmo de chegarem ao chalé ela já havia “virado” boa parte da garrafa.
     - “Êh-er o ar-alo éh u-a euicia” – diz sorrindo pro tenso rapaz.
     Ele senta-se na beira da cama, olhando ao redor. Ela senta-se ao seu lado e dividem o restante da garrafa, enquanto ela fala coisas amenas. Ele respondia com monossílabos – “Éh... ôh...”.
     Termina da garrafa de whisky, ela se levanta, coloca um pen drive no aparelho e escolhe uma música county romântica que ela achou apropriada para aquele momento, diminui a claridade e acende algumas velas querendo deixar o ambiente mais agradável. Dança enquanto vai se despindo e jogando pra ele. Toda nua, volta a calçar as botas, pega o chicote de equitação, olha pra ele:
     - Ai hser i-ês-ecível!!!
     Ele sente seu corpo gelar. Rapidamente também se despe, sentindo-se um pouco intimidado. E ela:
     - Eu a-habo oéssa imi-êz.
     Pouco depois ele tem sua confiança restaurada. Conforme ele vai se sentindo confiante, nela, o efeito do álcool começa a dominá-la. Ela começa a cavalgar batendo de leve com o chicote – “Êu arañ-ão...”. Foen se sentia tão confiante que nem ligou quando ela começou a gritar igual a uma foca assustada. Experimentou todas as posições, até que Lurdinha teve a idéia:
     - “Humm... Ôce abe ôh hi éh om”?
     - “Ém ais!? Uhdo ê hém de ôce é uh-a eu-ícia”.
     - “Ai sêh élhor se nlingar. Õce ai a-horar”.
     - “Se dês-ningado é uh-a eu-ícia, i-hágina ningado. Eu éro”!! Ninga, linga uhdo!
     Lurdinha meche em sua bolsa, passa um creme no cabo do chicote e volta a abraçá-lo. “Êhuacha”!! Foen percebe as intenções dela e reage assustado:
     - “Ê ihsso!!! Ihsso ããooo... Disninga, disninga!!!
     Lurdinha agarra-se mais forte em seu garanhão. Ele consegue se levantar com ela entrelaçada em seu corpo, pernas cruzada às suas costas. Ele tenta se desvencilhar daquela situação, com ela se agitando à sua frente, tentando “ligar” Foen... E o chicote agitando pra cá e pra lá. Ficam rodopiando pela suíte até que o chicote derruba uma vela sobre a cortina. Ele continua gritando sem perceber o início do incêndio.
     - “Dsninga, disninga. Eu um éhro...”!!!
     Sorte ou azar, passava por ali, um funcionário do hotel que teve sua atenção voltada para aquele barulho e pode perceber que alguma coisa estava errada. Pensou em não intervir, pensando ser alguma briga de casal, mas ao ver o princípio de incêndio não teve dúvida. De longe ele acena pra dois colegas mais à frente e resolve ele mesmo entrar no chalé. Diante daquela cena inusitada, um frangote que dançava com uma loura abanando um chichote pra lá e pra cá. Os três se assustam. Refeito, o funcionário do hotel apressa-se em apagar o fogo, o outro, verdadeiro. Lá fora, entre o grupo de curiosos que se formara, estava Miro, tentando entender o que se passava. O casal de namorados estava tão assustado que demora a perceber que estava nu, diante daquela pequena platéia. Lurdinha, de modo inconsciente ainda agitava o chicote olhando atônica para todos.
     Ao recobrarem o susto, Lurdinha esconde o chicote. Miro pega uma toalha e entrega pra Foen, pra que ele se cubra. Miro pensa em sair logo dali. Seria muito ruim ter que explicar toda aquela bagunça. Afinal, fora ele que alugara aquele chalé. Puxando o sobrinho pelo braço, é logo detido pelo funcionário do hotel.
     - Nada disso!!! Vamos esperar o gerente do hotel. Se entenda com ele.
     Não tinha jeito. Teria que exercitar sua lábia pra cima do gerente, além é claro, que arcar com todo o prejuízo. Enquanto aguardavam a chegada do gerente, um dos funcionários certificava em não haver mais risco de incêndio e outro procurava afastar os curiosos. Miro senta-se numa cadeira, preocupado mas achando aquilo tudo engraçado. Sentado na cama, Foen não parecia nem um pouco preocupado. Apesar do desastre, estava contente. Olhar de satisfação, olhava serenamente pro vazio enquanto cantarolava:
 
               “... Êu ou a uâmpida...
               E as uhié  é as mari-ôsa...
               Êh hica dando folta em folta ê him
               Hô-a nohite ó pra e êi-ar”
 
     Miro, olha pro jovem... Olha pra cima e balança a cabeça. Mal acreditava que, apesar de tudo, o jovem sobrinho ainda ficara contente, a ponto de cantarolar Adoniran.
     E a Lurdinha!? Bom... a Lurdinha, no meio daquela confusão toda, dera um jeito de pegar sua bolsa, seu chicotinho, e, mesmo saindo quase pelada daquele local, pouca gente percebeu quando ela entrou em outro chalé.
     Dizem, não sei se é verdade. Como disse antes, quem conta um conto aumenta um ponto. Não sei exatamente a veracidade do que vou contar. O que se comenta por aí é que ao entrar em outro chalé, Lurdinha dera de cara com o Deputado Estadual Pascoal Neto. Dizem que os dois saíram logo em seguida num carro oficial do município em direção ao aeroporto de onde rumaram pra capital, deixando pra trás a digníssima esposa que havia saído pra fazer compras com a filha. Na recepção, ao pagar a conta, Pascoal deixara como recado a desculpa de uma reunião de emergência do partido. Não se sabe se ela engoliu tal engodo.
     Lurdinha ficou quase um mês sem retornar à sua cidade.
     Hoje ela vive lá e cá. Às vezes passa a semana por lá ou em viagens a serviço da assembléia, a qual tinha como presidente o Deputado Pascoal Neto.
     Dizem também que a partir daquele dia, Pascoal Neto começou a se destacar como um bom negociador do partido, costurando acordos favoráveis, revertendo outros tidos como perdidos. Muitos atribuem essa mudança à nomeação de uma Secretária para Assuntos Estratégicos muito eficiente.
     Encontrar-se com Lurdinha!? É preciso estar bem relacionado com as altas esferas políticas e ter um bom fundo de investimentos. Vez ou outra é possível vê-la desfilando por aí, balançando os quadris... pra lá... pra cá... pra lá... pra cá...









 
Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 11/03/2014
Reeditado em 11/03/2014
Código do texto: T4724347
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